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nas entranhas de um — relato1
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"eu estou aqui
e não tenho nada a dizer
e o estou dizendo
e isto é poesia"
(john cage)2
i - uma onda
a inteligência foi o início de todas as mazelas.
desde então, o mundo tornou-se cópia da literatura e vice-versa.
a vida definiu-se como conseqüência, algumas vezes inteligente...
pariram-se textos e muitas verdades...
dá-se que um texto literário carece de pontos-de-vista diversos.
e como criadores e criaturas, duas atitudes (ou mais verdades)
devem ser consideradas:
· o texto é a representação ativa de um desejo, ou
· o texto é a representação de uma cumplicidade passiva
se tratamos a palavra ativamente, cumpre-nos
· interpretar entranhas e externar signos convincentes aos nossos
primeiros olhos
· e aniquilar as igualdades de temperamento entre as palavras...
desaforadas idéias,
nesse caso — ou se desejamos, caos — paixão e cérebro são fundamentais!
pois assim, julgamo-nos prosadores, tentamos ser poetas...
e seguimos, desbravadores da própria obra
quando ela nos deve mirar como severos e poderosos críticos
mas que peleja!
cioran anuncia: "salvo poucas exceções, somos juntamente
carrascos e mártires da palavra"
3
quando nos colocamos passivamente, mas não subalternos, ante a palavra
esbarra em nós o leitor
— e recriamos a revelação das vísceras do outro.
roland barthes, admite que "não há por detrás do texto ninguém ativo
(o escritor)
nem diante dele ninguém passivo (o leitor)"
4
e avisa: "o texto que escreve tem de me dar a prova de que
me deseja"5
apesar dele, creio que
ativa ou passivamente somos co-responsáveis pelo texto.
e não convém corrompê-lo com atavios, descuidos, "insights" extras,
olhares de soslaio. isto é traição!
do texto, cabe-nos ser cúmplices, empreendedores, compenetrados.
deixar
em nós a árvore, já que "entender é
parede"6,
no modo de dizer de manoel de barros...
o texto, ora direis, deve tomar de assalto os nossos sentidos.
cada sentido arrebatado é uma aproximação do valor literário...
cada texto deve dar uma tapa na nossa cara, quer seja um de kafka ou de
gertrud stein;
cada texto deve ser um rimbaud traduzindo cores de vogais;
cada texto deve se enfronhar em palavras poderosas, seguindo lezama;
cada texto deve transtornar a memória como um biscoito proustiano;
cada texto deve desenhar o cheiro das árvores, como em manoel de barros.
octavio paz instiga: "a poesia é metáfora, mito e símbolo;
mas também é acaso e é linguagem de todos os dias.
a poesia é jogo; e no jogo, a grande potência, o elemento essencial,
é a casualidade"
7
o crítico wilson martins sugere: "ser poeta é também inventar poesia,
e não apenas escrever poemas, isto é, escrevê-los como jamais haviam sido
escritos"
8
enquanto jean cocteau ressalta: "o poeta não inventa.
ele escuta" 9
nos textos em prosa, a vida se prolonga e se desfia:
desafiam-nos as narrativas de osman lins!
incomodam-nos as proezas de julio cortázar!
e pulamos nas veredas de redemoinho de guimarães rosa...
barthes, para citar ainda o teórico: "no fundo, o escritor, intimamente,
acredita
que os signos não são arbitrários"
10
esses artíficios e pequenas verdades nos aproximam do objeto-texto...
prosa ou poesia.
que não bastem na escritura da boa gramática
na transmissão de conteúdos esdrúxulos
na encenação de perfis radicais ou desestruturais...
os recriadores do imaginário devem valer-se de suas mimeses:
seja por enfrentar desvios e queimar musas nas piras consagradas
seja pela persuasão apolínea ou pelo arrebatamento dionisíaco...
o que vale é tratar do trágico, do belo, do lírico
do mágico, do inefável, do inevitável...
ante a certeza da porta batida ao fácil, banal e descompromissado.
calvino propôs leveza, rapidez, visibilidade, exatidão, multiplicidade
e consistência aos textos deste milênio.11
digo um quê mais: estranhamento. e justifico:
estamos tentando sempre decifrar mitos, para a nossa própria sorte
de nos decifrar. o estranho é o que somos,
quando textualizamos o pensamento.
um texto deve decifrar-se para não causar espanto,
mas apenas estranhamento.
o texto deve nos tornar amantes dele... para que se dispa de suas intenções!
pois a literatura é expressão de desejos incontidos...
ii - um ardil
por isso, comunico-me por meio de relatos: fragmas, contemas.
o que represento e apresento como transporte de veleidades.
eis o castigo. sísifo em mim.
e relato, o objeto, é a expressão de todas as provas.
a reprodução da memória, do imaginário perverso.
arqueologia da palavra em seu estado de mente e dicionário.
uma folha, toda fragmentária...
que ousa destratar o simplismo. é o ato-ler.
uma nota só soando até o sussurro,
na visão do todo recriado, re-lato...
aquilo que foi e será... "é uma iniciativa particular e sem fins específicos,
onde o importante é a literatura, a arte, a cultura,
os caminhos deste mundo improvisado"12
o relato é a ambigüidade do presente daquilo que foi dinossauro.
(nada mais, nada menos que subterrâneos,
meandros inconscientes — experiência e desvendamento).
ele escuta ezra pound: "repetir para aprender" e "criar para renovar"
e vislumbra mário faustino: "aprender para criar".13
o relato parece que em tudo finge nesse estado.
relato fala. relato falo.
quer-se yin & yang. contraria os contrários.
e esvazia o vazio concêntrico do zen.
relato é conspiração do que pode ser escrito
do que pode ser lido
do que se é quando leitor de todas as entidades escritas...
antonio porchia adverte: "o que dizem as palavras não dura. duram as
palavras. porque as palavras são sempre as mesmas
e
o que dizem não é nunca o mesmo"
14
assim, um relato. uma experiência clara.
literatura é uma forma de autoconhecimento.
a literatura é a disciplina comum de todas as coisas.
em relatos, me considero um animal do mínimo,
do omisso, do contido, do lapso temporal,
do antro, das frestas...
por isso me estimulam a geometria de uma gota,
o rapto do relâmpago, as formas que contêm esses mínimos episódicos.
neles, o tempo é estreito. espaço e tempo são a mesma coisa.
assim, vou me aplicando na arte de arremedar a realidade.
wilson luiz sanvito, neurologista, afirma: "a melhor maneira de polir
o nosso cérebro é esfregá-lo no dos outros"15
replico: a melhor maneira de esfregar o nosso cérebro
é sofrê-lo no dos outros...
iii - este prozac
como ativos descobridores da panacéia literária, ou dela cobaias,
o aprendizado pela palavra é a busca eterna e infinda da perfeição.
criadores ou criaturas somos os seres mais imperfeitos.
barry deck, um designer, institui: "acho que a imperfeição
é
que torna as pessoas interessantes"16
relatando essas insinuações, quero apenar fragmentar
o mais-que-imperfeito...
somem-se os contrários desse prazer!
(Este texto-pensamento não é nada. Apenas um alívio. Colagens. Resquícios do que não quer ser. Apenas isto. Tudo.)
Indefinidamente...
junho, 2006