o sertão das memórias, de josé araújo
 
 
  
                                                                     
  

 

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imagem e poesia inundam a contemplação de um José
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"bendito é o lugar onde não somos"

                            jorge pieiro

 

 

 

Em certo sentido, as manifestações artísticas representam o desejo coletivo da humanidade, impulsionadas pelas metáforas que concretizam uma possível experiência de futuro ou a transformação vigorosa do passado. Nesse conceito, reúnem-se os espíritos da inovação e da tradição, convergindo para uma realização do tempo presente.

Como afirma George Steiner, em uma das conferências reunidas no livro No castelo do Barba Azul, "as imagens e sínteses mentais do passado são impressas, quase à maneira da informação genética, em nossa sensibilidade". Se tratamos da sensibilidade que se transforma em Arte, podemos encontrar a certeza dessa informação no trabalho que vem sendo desfiado, pacientemente, pelo premiado cineasta cearense José Araújo (1952).

 

(Sim, este artigo em sítio de literatura, para alguns, talvez possa parecer uma disfunção ou uma transgressão. Não importa. Afora as nomeações e as armadilhas dos gêneros e das linguagens, aqui vamos pontuar sobre cinema... e a literatura que a alimenta. Ou, não bem assim, revelar ou resgatar a superfície da poética que há nas vozes imaginárias ou reais do mundo de um José. Não pensamos em descobrir a pólvora, senão lembrar da manifestação desse (des)escritor de imagens...)

 

Há mais de 30 anos entre Brasil e Estados Unidos, José Araújo nunca se distanciou do simbolismo salutar e eficaz do espaço da sua infância na cidade de Miraíma, Ceará, e da adolescência segmentada entre o Seminário da Prainha, em Fortaleza, e a perseguida sobrevivência em um Banco do Nordeste do Brasil.

A sensibilidade poética do artista sempre o deixou à vontade naquela terra mecanizada, perversa, cosmopolita, estranha, ao mesmo tempo futurista, hipócrita e conservadora, permitindo-o representar as imagens e a síntese do seu povo brasileiro, nordestino. Se ali sobreviveu, também se graduou, tornou-se mestre em cinema, transferiu-se para sets como técnico de som em filmes internacionais (Salmonberries e Younger and Younger, dirigidos pelo Percy Adlon de Bagdad Café; Minha Família, de Greg Nava, produzido por Coppola; e Mallrats, de Kevin Smith), entre outros, e perfilou-se também como exímio observador no aprendizado prático da arte cinematográfica. Com um sutil delírio de predestinado, roteirizou e dirigiu seus primeiros documentários e curtas, repletos de poesia, dentre os quais o Salve a Umbanda (1987), premiado nos festivais Margaret Mead Film, Nova Iorque; San Antonio Cine, Texas; e Film Arts, São Francisco.

Até que O Sertão das Memórias (1996) desafiou e deu novas forças ao Cinema. Sim, ao Cinema!, basta pesquisar as loas da crítica mundial — uma ínfima amostra no final — e o resultado dos grandes festivais internacionais, sem contar que por esta obra de poesia cinematográfica, José recebeu a honra de tornar-se como cineasta uma das cem inteligências geniais de Nova Iorque. Mesmo que isso não signifique para quem quer que seja, o que presenciamos na obra — e isto talvez também não importe — foi a grande descoberta do nocaute pelo silêncio, da pancada na cabeça pela lentidão da leveza, da mesma forma que a reprise do estranhamento adolescente diante do verbo transgressor.

 

(Quem teve a oportunidade de assistir a essa película pode repetir a impressão como refrão ou nunca mais acreditar na vida. Na verdade, O Sertão das Memórias nasceu cult; uma obra que não interessa ao mercado, da mesma forma que algumas obras literárias dão-se às traças por não servirem ao lucro. Mas isso é outra história...)

 

Vale dizer, em se tratando de José Araújo, que a grande metáfora não está na ficção, no roteiro, nas alegorias, mas no fundamento que antecipa a sua criação, no argumento e na tese de que o mundo todo é a memória perenizada, é a vivência com os seus. Assim, quem precisaria de atores globais para uma revelação, se por si bastava transformar em heroína — Jesus de saias — a sua própria mãe? Ou o silêncio mascado do pai, enquanto ator, juntamente com o verdadeiro Prefeito, o verdadeiro Padre e a população da sua Miraíma, desconhecido sertão cearense, e que num passe de mágica sensibilidade, passara a ser repetida nas telas do mundo?

Houve, depois dos triunfos, rumores de discórdia e defesas passionais. (Dessa maneira a vida não deveria imitar a arte... ou seria o inverso?) Mas o importante é que o resultado dessa poética, aplaudida por poucos, porque para poucos, demonstrou o seu poder de tal forma, que muitas vezes se dissociou do seu autor, do José Araújo, roteirista — poeta! — e diretor. Ou, de outra forma, instituiu-se a probabilidade de que, provavelmente, o cineasta em seu primeiro longa metragem, premiadíssimo, jamais poderia repetir a façanha. Inócuas constatações. A glória dessa memória e obra, ninguém pode renegar. À parte isso, polêmicas são sempre benéficas.

 

(Aparte genérico: Não fosse a gama de dinheiro necessária à produção de um filme, por mais enxuto que seja um orçamento caso o do José , em grau menor, o quanto de percalços escritores e suas vaidades não sofrem diante das incompreensões, em relação à edição mesmo luxuosa e baratíssima em relação ao custo de um filme de suas obras literárias? Quanto orgulho derramado... Ironia à parte, fundamental é a labareda queimando falsas esperanças... se isto quer dizer algo...).

 

E o que veremos no próximo longa-metragem, filme nas latas, à espreita dos festivais internacionais? A partir de um roteiro, cuja poesia traduz a infinita dimensão da fantasia crucificada pela supra-realidade, em profusão de imagens — mais de 150 minutos de filme! — As Tentações do Irmão Sebastião (2005) têm todas as condições de ampliar a trajetória do cineasta, embora nela já esteja encravada a marca, a atração pelo recorrente, pelo passado, pela história que se ficciona e se recria metaforicamente.

 

(Não vou estragar a surpresa. Apenas direi que o novo longa traz um amálgama de caos e infinito. Umbanda e catolicismo. Sexualidade e perversão. Vocação e conflito. O futuro apocalíptico. A irmandade e o submundo. O silêncio e o duro troar. Enfim, a voz e o espasmo; o desejo e a penitência. Poesia.)

 

O que podemos, então, dizer de José Araújo e de suas aventuras, se não a mancha apenas daquilo que não podemos precisar em originalidade e exatidão? Talvez este seja o ponto de interseção com o que se quer vislumbrar neste sítio: o cineasta nos demonstra ser um verdadeiro poeta — poesia de sons, de imagens, de vozes —, e como tal, um estranho nesse universo de imposições e grosserias burocráticas; e como tal, um saudável arlequim de Deus cumprindo sua missão de transformar a sua aldeia e memória no grande universo mítico; e como tal, o homem que permite o vínculo com a miragem e sua realização.

Ao considerarmos este José também um poeta é porque nos detemos na lucidez da sua perseverança como criador e criatura, portanto um ser mais que imperfeito e que interessa. É essa representação que ele reflete nas telas de cinema, que nos instiga a perseguir o itinerário da ilusão e da profecia, sem vender peixes em templos ou consumir-se de néons. Afinal, a poesia deve ater-se também aos limites da ética e da infinitude, como descritas nas "ima®gens" das ilusões do cineasta.

O José de Araújo de O Sertão das Memórias e d’As Tentações do Irmão Sebastião nos homenageia com uma poesia plena de mistério, como se proclamasse versos de Píndaro, para quem "na glória da poesia a realização dos homens floresce longa; mas disso a realização a poucos é dada”.

Quem poderá e saberá contemplá-la?

 

fragmentos da crítica a O Sertão das Memórias

 

"(O Sertão das Memórias é uma) narrativa poderosa, (tendo em vista) o lirismo de seu imaginário, a utilização econômica de recursos e o rico uso da alegoria."

Júri do Sundance Festival.

 

"Esse é daqueles filmes que quando você dá conta, está totalmente tomado por ele".

Alfonso Cuarón, cineasta mexicano.

 

"O Sertão das Memórias é um daqueles raros filmes que se prolongam por muito tempo depois do seu final na mente dos seus espectadores, fazendo com que todos formem suas interpretações individuais sobre aquilo que viram. (...) É um maravilhoso testemunho da cultura do José Araújo, seu amor pela terra seca e suas memórias, poesia e espiritualidade."

Ramiro Puerta, cineasta colombiano.

 

"Sem concessões às exigências do cinema entretenimento, trata-se de abordagem erudita e rigorosa levada às últimas conseqüências em termos de estilo e de conteúdo filosófico, méritos reconhecidos pelo prêmio Wolfgang Staudte (Festival de Berlim)"

José Tavares de Barros, da Organização Católica Internacional de Cinema.

 

"Profundamente fincado no solo nordestino, O Sertão das Memórias é um dos filmes brasileiros menos provincianos (leia-se colonizados) dos últimos tempos." José Geraldo Couto, jornalista e crítico de cinema.

 

"Dado o seu tom místico, ricamente tecido em preto e branco, em partitura de Naná Vasconcelos, O Sertão das Memórias pode bem conseguir o status cult de Koyaanisqatsi."

B. Ruby Rich, the village voice.

 

agosto, 2005