do outro lado do vidro

 

 

Pela janela, um rubor de nuvem,

alguém sem articulação, rabisca,

do outro lado do vidro, lá em baixo

observo-o como quem não entende

 

Sinto falta de mais árvores

a calçada tem um dono

que não gosta das folhas

e o rapaz rabisca como quem marca

um território fictício

 

 

 

 

as mãos

 

 

ardes em febre de eletricidade

por esconderes almas

de ti e por ti desenho

contigo aprendi a desejar

o que só dentro de mim existe

as palavras crescem,

em teus dedos amáveis

para depois esquecermos

o silêncio triste

 

 

 

 

 

 

 

pedras que nos cercam

 

trazia nos bolsos um punhado de pedras

acariciava cada uma delas, deu-lhes nomes

mas sempre se esquecia qual era qual,

ficaram nos bolsos até o tecido ceder

o teu nome foi com uma delas

as letras escritas na memória

sabem ao teu olhar, transformador de riachos

 

 

 

 

 

não me habituo

 

Vejo-te dentro de mim

inventei-te em dias dourados

caminhas nas minhas almas divididas

não sei do que são feitos

os meus amores

mas sei que não me habituei

a saber dar-te um abraço

que ficasse para sempre

sacudo-me, torço-me,

espero os ventos, afasto os dias

não sei do que se trata

a realidade lá fora

mas sei que não me habituei

 

assim sabendo sem saber

vou falando o que o meu peito grita

a minha voz aquecida tenta

não sei da cor

na amargura do tempo

mas sei que não me habituei

nos meus desenhos

as canções soam

em ritmos atávicos

não sei se existes

mundo de cantares solidários

mas sei que não me habituei

a esquecer-me de ti

 

 

 

 

 

tens sido

 

Tens sido um ás nessa de protocolos

acho que me contagiei

Vales pelos sorrisos provocados

pelas tuas e pelas minhas palavras

não de entrelinhas, sem linhas mesmo

cada palavra escrita

talvez não fossem nunca ditas

Vales pelas provocações

dos conhecimentos de mundos

onde o convencional perde lugar

mas está presente

Vales pelo pedaço de coração

que roubastes

sem saber onde o colocar

anda no firmamento

Vales assim nesta amizade

que sem tempo vive

sem lugar cresce

com carinho segue

Vales pela liberdade

de conhecer e não concordar

Vales pela diferença

num mar de águas comuns

Valho por assim sentir,

mesmo assim saber dizer-te

sem medos demasiados

mas com a vida pulsando

neste mundo tão torto

Oiço is a beautiful day

de bem com os meus sentimentos

saberás dizer-me mais de ti sem protocolos

 

 

 

palavra

 

Perdi-te sem nunca te saber

envelhecemos os sons

cansada de maus usos

embarcou para terras velozes

não soubemos cochichar

nos abraços que ardiam

por inventamos alguém

para sabermos perder

perdi-te vontade de falar

nesta cadência muda

 

 

 

 

 

desenhar

 

hoje desenhei-te em memórias de palavras

o que me dizes ficou na sombra da invenção

assim aquecidas, serão esquecidas

neste desenho, vejo-te num olhar interno

tombada sobre mim mesma não te sei

também não me reconheço somos outros

desenhar de esboços cheios de salinas

dessas paisagens partilhadas no silêncio

 

 

 

 

 

as conchas

 

Os sons que não ouvimos

para não sabermos

das conchas soltas

em mares e areias

de terras estranhas

tão próximas

e tão alheias

ao que nos sentenciam

nas manhãs das prosas

em cantares de vozes

aflitas do saber

que ao silêncio

nunca ficamos alheios

As conchas que nos dizem

olha o mar

parte e sente

sente a amargura da partida

e a saudade do futuro

 

 

 

 

 

 

 

por que é que

 

Por que é que o tempo passa?

Por que é que a vontade existe?

Por que é que a água não pára só?

Por que é que há as cores nas nossas peles?

Por que é que o beijo não é sempre doce?

Por que é que as nuvens se movem?

Por que é que o sol queima?

Por que é que tu me amas?

Por que é que nos esquecemos de cantar?

Por que é que o vento nos dá alegria e tristeza?

Por que é que há quereres sem futuro?

Por que é que choramos salgado?

Por que é que suamos quando sentimos calor e amor?

Por que é que bocejamos e não gostamos?

Por que é que adoro comer chocolate?

Por que é que é que há sempre solidão?

Por que é que é que me tiras o sono?

Por que é que gostamos tanto do mar?

Por que é que o corpo envelhece?

Por que é que a saliva pode ser boa e terrível?

Por que é que ler é um dos maiores prazeres?

Por que é que as palavras nos fazem sonhar?

Por que é que é que tenho de te escrever com tinta invisível?

Por que é que amanhecemos sempre diferentes?

Por que é que os aviões não nos trazem carinhos das nuvens?

Por que é que gosto do vôo dos pássaros?

Por que é que tenho cócegas infinitas?

Por que é que os sonhos são tão intensos?

Por que é que a amizade nos dá tanto prazer?

Por que é que não nos desvencilhamos do orgulho?

Por que é que a morte faz parte da vida?

Por que é que os pensamentos de amor ardem?

Por que é que os cravos tinham de murchar logo?

Por que é que a terra me abraça em cânticos?

Por que é que é que oiço a tua voz no meu peito?

Por que é que é que nascemos misteriosos?

Por que é que a cereja é tão doce de sabor e cor?

Por que é que é que penteamos o cabelo?

Por que é que é que o nosso coração palpita?

Por que é que é que só sossego a desenhar?

Por que é que é que temos de escolher?

 

 

 

escrevo para saborear as palavras

 

escrevo para saborear as palavras

letra a letra, ecoam dentro e fora

quero-as tão livres, como o olhar

no ardor de ser, sentir em tudo

olho os animais abraçados

no silêncio escutado, perene

murmúrios de carinhos imersos

nas águas onde vemos

as nossas imagens desconhecidas

 

 

 

 

 

sonho

 

Escuta este sonho

não desisto do meu medo

da minha alegria

da minha amargura

não cabe a realidade

tudo me cansa

tão profundamente

quando me querem invadir

ver o mundo

mandar a realidade mudar de cheiro

deixar de me perseguir

nesta angústia de nada poder

Sonho nas noites

de dias sem tempo

acordada ou mesmo a dormir

sempre num parque

de cores caídas

abraçadas às palavras

 

 

 

 

 

 

 

lembranças

 

Algumas lembranças beijam a luz

em jardins de flores do campo

Algumas lembranças guardam as figuras

desenhadas no papel amarelo

Algumas lembranças repousam

nos sonhos criados na varanda

Algumas lembranças são frágeis

mas sorriem como amigas

Algumas lembranças são dores

golpeadas em madeira

Outras lembranças são inventos

inventos da nossa alma

 

 

 

(imagens ©constança lucas)

 

 

 

 

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Constança Lucas (Coimbra, Portugal, 1960). Desde 1978, vive em São Paulo, onde trabalha como ilustradora, professora e artista visual. Formou-se em Artes Plásticas pela FAAP–SP e é mestranda em Poéticas Visuais pela ECA-USP. Os seus poemas, os seus poemas visuais e as suas ilustrações já foram publicadas em livros, jornais e revistas. Expõe os seus trabalhos de arte desde 1982 em diversos países. Adora desenhar e é leitora voraz desde muito menina. Tem site na Internet desde 1997: http://www.constanca.lucas.nom.br. E blogue: http://constancalucas.blog.uol.com.br.