f l u x u s
pensas que sou feita de carne, ossos, sangue?
não
sou vento, chuva, fogo, nada
às vezes é bom sentir fome para só depois morrer de saudade
meu último poema:
insuportável a perfeição do gozo
sangue vejo somente sangue
e chuva
para que a introspecção? para que ver o obscuro?
me ama mas não me olha com a profundidade dos olhos que não vêem
sinto a falta de suas mãos
é como se no mundo já não existissem nem um pai nem um deus
escrever pode ser um ato de amor mas também o suicídio das palavras
alguém canta ao longe alguém canta em meus ouvidos surdos
náuseas eu que estou quase morta da vida e do silêncio
escrevo para ser porque estou e ainda corre o vermelho da vida
escrevo num fluxo dinâmico de estrelas num quase-escuro do quarto para não ver as letras para ver somente para ver
a perfeição
infernal o calor do corpo suando sob as roupas
sei da angústia de Virginia Woolf e dos hormônios da mulher que explodem como vulcões
tenho medo dos terremotos; sou filha destes movimentos que moram desde sempre em minha paisagem
jamais escrevi tanto a um só tempo talvez esteja pronta para a mensagem cifrada; amanhã compreenderei as frustrações do hoje como tu, Carlos, compreendes somente no agora tuas palavras e filhos do passado
que graça, leveza e peso carregam as palavras e os filhos que hão de chegar um dia
poeta-escultor-de-silêncios-e-pedras que doçura e amargor suportam os fonemas e os versos
a morte e seu duplo vêm seduções e mistérios marmortemar a morte vem a morte que habita em mim a morte e seus ecos
queria tanto ser homem e talvez assim pudesse ser menos morte
abandono é o meu nome meu ser gestado pelo tempo
cicatrizes no rosto muito mais que as rugas
cicatrizes na cara em que o mundo bate e bate e bate como o vento nas janelas de uma casa abandonada
escrevo como se fosse um só grito na noite
escrevo, escrevo e escrevo energia escura do multiverso
pluriversa-se a noite e anoitece ainda mais
(Poema escrito em 24 de setembro de 2004 na cidade de Castro, Ilha de Chiloé, Chile; revisado pela autora, traduzido ao espanhol e ilustrado pelo poeta Leo Lobos em outubro do mesmo ano no Jardim das Artes, Cerquilho-SP-Brasil. Traduzido ao inglês por Levana Saxon e ao francês por Espérance Aniesa e Cristiane Grando.)
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o poeta tem um único dever sagrado: partir
partir em busca de lucidez e de luz e flores do bem e do mal e cantigas sem palavras e anjos sem asas e
quanto silêncio é preciso para fazer um poema?
A Artur Gomes
o silêncio da solidão e das portas da imaginação, do mundo do vento, das águas e dos gatos
o silêncio do branco
muito barulho para nada
silêncio, silêncio, o silêncio e algumas palavras
?
A Taylor van Horne e em homenagem aos poetas do desassossego
há uma parte da vida que me apavora este desassossego entre árvores e águas segredos, sinos, mistério
um não sei o quê calmaria e turbulência
sair e ao voltar querer sair querendo ficar
para os braços ou para o ventre?
é noite, noite o vento no rosto em alta velocidade vento, nuvens:
o júbilo, o Nada, o sem nome, o Nunca Mais
os amores de Edgar Allan Poe
Valéry amava Mallarmé que amava Baudelaire que amava Allan Poe que amava Virgínia dos cabelos negros como o corvo
Valéry morreu depois de ter projetado o Anjo, sua última inspiração poética Mallarmé ainda procurava "O Livro" essencial quando encontrou a Morte Baudelaire sofreu uma longa agonia antes de morrer e ser enterrado no cemitério de Montparnasse em Paris e Allan Poe casou-se com Virgínia que morreu aos 25 anos
embriagados de poesia
A Christiane Lejeune
o amarelo e o vermelho invadem o verde das folhas de vinha no outono
o amarelo encanta e faz brilhar os olhos de fogo de uma jovem pinta a luz em folhas de idéias-poemas em noites dançantes
vida e poesia liberdade, desejo força inquietante do vinho em nossos hálitos
beleza dos lábios úmidos e do céu sobre um barco
o azul o vento
amanhece
cinco mulheres, uma amiga
A Patricia Klinck Na ocasião da exposição Matisse-Picasso, Paris, 2002
às margens do rio um velho tapete verde escuro e de um suave vermelho e amarelo evoca um cenário de beleza:
uma mulher nua sobre um fundo vermelho, branco e rosa — matinal —
três mulheres cubistas fundem-se ao verde-alaranjado do cenário
uma gata, um cavalo e uma mulher cantam imagens e palavras
em liberdade
no espelho do tempo
A Leo Lobos In memoriam de Roberto Matta
arte, palavras, ar, amor a que mais um homem pode aspirar?
asas translúcidas azuladas sonhos que tecem um novo tempo
um vôo de seres luminosos, flutuantes
a essência do amor: aquilo que verdadeiramente amas permanecerá doce e eterno na lembrança
(Do livro Caminante)
(imagens ©nanette hooslag) |
Cristiane Grando (Cerquilho-SP, 1974). Poeta, fotógrafa, tradutora e
pesquisadora. Laureada UNESCO-Aschberg de Literatura 2002. Idealizadora do
espaço cultural Jardim das Artes, Ciências e Educação (Cerquilho-São
Paulo-Brasil). Autora de Caminantes: poesia em francês,
português e traduzida ao espanhol por Leo Lobos (Santiago-Chile, 2003). Defendeu
mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP): estudos da obra e dos
manuscritos de Hilda Hilst. Na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
desenvolve pós-doutorado sobre crítica genética e tradução de Hilda Hilst para o
francês, além de realizar um trabalho de divulgação da obra hilstiana na França,
Chile, Peru e Argentina, com os poetas Claire Bustarret, Espérance Aniesa, Raúl
Artola, Francisco Véjar, Leo Lobos, Reinhard Huaman Mori e Cinthya
Torres.
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