©carlo carrá
 
 
 
 
 
 
 
 

        Havia um escritor que morreu jovem. E só de sacanagem, como não podia mais fuder, como não podia mais fumar o seu fumo, tomou de assalto o corpo e a mente de um velho e até então respeitado médium. Aí, do além túmulo, passou a ditar textos tão incrivelmente falsos que o velho médium foi acusado de puro charlatanismo. Ele não queria escrever aquilo, mas quem disse que podia não fazê-lo? Assinava os escritos tortos de próprio punho, isto é, fazia perfeitamente a assinatura do escritor sacana morto, mas o texto, todos que liam, logo diziam: É falso! Fulano, tão genial, jamais escreveria algo tão ruim. Não, não tem o estilo daquele brilhante escritor que morreu jovem... E o médium velho resolveu então estudar profundamente a obra daquele espírito obsessor que o levava ao ridículo. Leu todos os treze livros publicados pelo defunto; leu toda a crítica sobre o defunto, e gostou. Gostou até demais, passou a reler tudo, indefinidamente. Não mais cardequi, não mais gaspparetto, agora o velho médium se desmediunizava embebedando-se com a tinta forte utilizada pelo outro, o que desencarnara na flor da idade. Como pode? Como pode? Falava em voz alta pelas ruas da cidade, cismando sozinho o adivinho vencido. Não falava mais com os espíritos, não recebia mensagens da outra dimensão, não acreditava mais em porra nenhuma! Deu para beber, evidentemente, e para fumar também. Afinal, pensava ele já em estado de decrepitude, tremendo enquanto segurava um poema curto do seu ex-obsessor: Como pode!? Os antigos colegas de mesa branca fizeram várias tentativas caridosas de resgate. Caridosamente decidiram, por fim, internar o velho louco, antes tão médium, em um hospício do governo. Hospício não, uma casa de horrores, como só o governo pode construir e manter funcionando. Eletrochoque, fome, tortura, drogas impuras. Foram cinco anos de expiação e dor, até que um dia, antes do café de milho com pão azedo de todas as manhãs, o homem — agora já um fiapo de gente, um caco de pessoa — voltou a apresentar sinais de mediunidade. Pôs-se a falar em línguas estrangeiras, pôs-se a escrever celeremente. Os guardas do hospício então puseram-no livre, leve e solto por ai. Mas ele realmente estava lúcido agora. Sabia qual o ônibus tomar, sabia o seu antigo endereço, sabia onde ficava o centro. Retomou a sua vida, virou escritor mundialmente conhecido e atualmente vende textos falsos pelo planeta dizendo que são seus...

 

         Se a história terminasse assim, belezinha, tudo bem, essas coisas acontecem. Mas não. O escritor morto, ninguém explica como, ressuscitou. Voltou da sua tumba novinho em folha, só um pouquinho pálido. Mas nesse ninguém acreditava. Diziam que era um sósia perfeito de um falecido e saudoso escritor que morreu jovem, apenas isto. Ele mostrava os seus dotes, repetia textos antigos que fizeram tanto sucesso, e nada. Isto não passa de reles tentativa de plagiar o velho médium, diziam os poucos que aceitavam ler os textos que ele exibia em troca de comida e bebida nas portas de restaurantes e churrascarias baratos...

 

Cadê a ironia da história? Ora, ora, caro leitor, gentil leitora, não perceberam ainda que os textos do velho na verdade foram escritos pelo novo? Não leram nas entrelinhas o momento em que ele, fingindo-se de louco, invadiu a antiga casa do àquela altura ainda falecido escritor que morreu tão jovem e furtou originais de páginas e páginas não publicadas que estavam escondidas embaixo da escada do sótão? Aliás, na verdade ele não estava louco coisa nenhuma, o velho. Fez o que fez apenas para poder recuperar a sua credibilidade, já que estava sendo considerando um farsante, quer dizer, pior ainda, um médium farsante. Então, na sua mediúnica cabecinha de velho médium uma idéia tremeluziu. Livro-me de dois coelhos de uma só cajadada, disse como só um velho médium ousaria dizer. Livro-me desse espírito chato na base da cachaça e ainda purifico-me na base do choque elétrico, depois volto, reabilitado, e publico essas histórias como se fossem da minha autoria...

 

Ah, além de sacana, como vimos todos, era poliglota o velho e se chamava, no começo da história, Gurmercindo A.  Cunha. Como esse nome não era muito atraente, adotou o pseudônimo de Paulo alguma coisa...

 

 

 

 

março, 2007

 
 
 
 
Fabiano Cotrim (Mano) é poeta e cronista amador. Professor, mora em Caetité, Bahia.
 
Mais Fabiano Cotrim em Germina
>
Crônicas e Poemas