A LITLE THING CALLED LOVE

até que foi interessante. tava de bobeira na vida, ela chegou, passo duro, cabelo sobre os olhos, bafo de vodca barata, puxou-me pelo colarinho e disse: — vá se foder. foi lindo! ali mesmo nos agarramos e rolamos pelo chão da avenida ipiranga e continuamos a rolar até a júlioprestes, quando então paramos para retomar o fôlego e fugir do carro da pm. no entanto, parece mentira, demoramos muito até transarmos pela primeira vez, pois ela não queria nada convencional, havia de ser different, baby, different, clean, sem neuras, algo fim-de-milênio, sabe meio matrix mas sem esquecer um lado sério ou até cafona, podendo rolar um roquinho, uma bossanova, ou em caso de desespero, um xitãozinhoexororó mesmo. perdemos a paciência no meio de um almoço na liberdade. cutucando os pauzinhos, ela gritou AH, CHEGA DESSA BABAQUICE ou coisa assim, tiramos a roupa e trepamos que nem loucos, o suor e o esperma se misturando com os sushis e os saquês e os peixes crus e essa merda toda. ah, meu deus, se deus existisse e existisse um paraíso este seria os cinco minutos finais daquela trepada. houve outras vezes, muitas outras, creio que em toda sãopaulo tem uma marquinha nossa; naquela, além de pagarmos os prejuízos, fomos presos e sofremos processo, porém ?E DAÍ? nunca mais tivemos aquela mesma sensação. quando ela foi embora, natural: brigamos, xingamos, nos batemos, choramos, fizemos amor, ela fez as malas e sumiu. ligou para mim de novaiorque a cobrar alguns meses depois, sua voz tremia de medo, falou durante três horas, disse que estava fugindo da vida, não a compreendia mais e o culpado de tudo era eu. ?o que eu podia fazer? aproveitei a situação, me masturbei enquanto ela reclamava. bateu o telefone na minha cara quando percebeu e agora estou assim: uma casca vazia que perambula pelas ruas paulistas desesperado para que ela volte.
ou pelo menos ligue de novo

 

FINAL DE TARDE, PRAÇA DO CORREIO

Ao Charles

Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida.

Sônia considerou as razões pelas quais tudo dava errado e concluiu que eram todas. Era assim. Vida besta desde o nascimento. Cota comum de pais recalcados, ignorantes e opressores, namorados estúpidos e violentos, empregos insípidos e sem futuro. Igual, um patrão/galinha/obsceno. Seu casamento durara exatos um ano e dois meses: o tempo suficiente para  ficar grávida e descobrir que seu marido mantinha outra família desde antes ainda. Mulher e três filhos! E foi Sônia a pagar a maior parte das despesas da cerimônia e da festa. Mulher e três filhos! Isto é, nada fora do normal. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Desavergonhada. Moça  da vida. Vaca.

Sua mãe dizia Culpa Dela, protegia seu ex-marido e lhe dava razão, tratava-o como injustiçado. Seu pai adorava a situação, demonstrava o quanto seus filhos eram idiotas e tapados. Maior orgulho chegar pros amigos do bar Viu Como Aquele Desgraçado Se Fodeu? É Meu Filho O Peste e gargalhava de gosto. E era Sônia a colocar dinheiro em casa, única com salário fixo, fosse lá! contar com a aposentadoria dos velhos ou a displicência dos irmãos. Puta semvergonha.

A cabeça rodava, não entendia as risadas. Não havia nada dentro da bolsa. Nada de importante. Nem originais os documentos, xerox autenticada. Marmita suja que não tivera tempo de lavar, horário da loja muito rígido. Dinheiro... ridículo, moedas miúdas, troco pra passagem (dia de pagamento nem mesmo passava pelo Caixa, tudo já comprometido), uma nota falsa de um dólar, passe de ônibus acabara (seu irmão mais velho roubava da bolsa).

Carregava um gravador. Coisas da vida, amiga trouxera de presente. Rádio-gravador velho antigo parecia deslocar o ombro. Em tempos de cd, valia mais jogar fora, mas e coragem? Nem. Adiou dias para levar pra casa, sabia da trabalheira, do cansaço. Atravancava o armário pequeno, fazia volume, tirava do uniforme. Resolveu levá-lo.

Foi o que atrapalhou o trombadinha ('trombadinha' de uns, sei lá, metro e oitenta): subestimou o peso. O instinto de Sônia agarrou a bolsa, foram parar os três no chão. Bateu a cabeça, tentou levantar, as pernas não obedeceram, como quebrado o ombro por martelo, a dor subia e descia dos pés á cabeça, o desespero e o medo não a deixaram gritar. Nem não precisava gritar, estavam na Praça do Correio horário do rush (fila do Jardim Irene tinha quatro). Gente não faltava. Mas gente não se movia, não falava, começou, inclusive, a rir da posição ridícula da queda.

Trombada sondou terreno, se sentiu com moral, tomou respeito, ficou com ares de ofendido. O Que Ela Pensava Que Era. Sônia não entendia mais nada, as risadas aumentavam. Ela sabia o que tinha que fazer: deixar rolar, largar a bolsa, engolir o fel, voltar chorando pra casa. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida. Perdida.

Levantou. Estou Ficando Zangado, Tem Medo de Morrer Não? Passou a bolsa para o outro ombro. Desinfeta, Vadia! A alça caiu, segurou com a mão. Pegou do braço dolorido, sem precisão, pura maldade. Sônia É Isso? Toma! Girou a bolsa. Ouviu dois sons perfeitamente distintos, a cabeça do malandro quebrando com um ruído abafado. E ouviu! o sangue colando no couro.

Perplexa, entrou no ônibus sem olhar para trás, mãos trêmulas quase perderam a moeda da passagem, o cobrador olhar esquisito Não Tem Troco, sentou no banco também estranho e sorriu. Tinha certeza absoluta de que quando abrisse a bolsa, o gravador não teria soltado nenhuma peça. Era antigo, daqueles pesados.

 

ALEGRIA GERAL
Conto de Carnaval

Lembre-se de Cunhantã. É uma cidade
Não
Lembre-se de Cunhantã. É um povoado, uma vila, um conjunto merrequento de barracas reunidas quase que por acaso em um mesmo espaço físico, localizada no mais profundo do interior da Amazônia, longe da civilização dita civilizada e próxima de algumas localidades que, em plena posse de sua felicidade inconsciente, ainda nem tiveram contato com homens brancos.
A televisão de Cunhantã fica bem no centro de uma área de terra batida que se convencionou chamar de praça, afastada alguns metros das 'residências' de madeira-de-lei, restos de barracões onde haviam morado técnicos ingleses e americanos de uma antiga excursão cientifica. Protegida por uma lona preta amarrada em quatro estacas compridas de bambu verde. Dependendo de qual lado você estiver chegando terá que contorná-la, pois apesar da entrada do campo ser ampla, a televisão foi colocada no ponto em que deriva a trilha para a estrada. Desligada a maior parte do dia, permanece solitária e observada pelos olhos covardes das crianças sufocadas de poeira branca e vermelha, e mormaço verde.
As pessoas chegam devagar. Poucas possuem emprego fixo, mas quase ninguém fica em casa. Tomam um banho no rio, tomam uma caninha na tenda das pingas, às vezes brigam e tomam uma bala ou uma facada. Mas, quando não acontece nem balada nem facada, todos ao cair da tarde se jogam em frente à televisão, alguns com um banquinho, ligam o gerador de energia e alguém aperta o botão. O normal é ninguém se mexer até terminar o telejornal e a novela, mesmo porque na tevê só passa um canal. Assim, podem perceber a realidade das pessoas que vivem no Sul Maravilha e sentir o drama do filho do dono do cafezal em São Paulo que não sabe como conquistar sua amada.
Este é o normal.
Mas hoje é Carnaval! Bundas, desfiles, globelezas! Atrizes, vedetes, escolas-de-samba! Ouro, brilho, purpurina! Comentaristas, salões, gala gay! Alegria, alegria, alegria! Foliões, carros-elétricos, samba-de-rua! Samba, suor e lágrimas.
Cunhantã, lembre-se, assiste calada. O gerador não dura muito, precisa ser economizado. Quem não for beber mais um trago prefere dormir logo, pois o aparelho é desligado até o dia seguinte.

 


Claudinei Vieira. Escritor, roteirista e poeta. Professor de roteiro de cinema. Resenhista de literatura e humanas em sites como IgLer, Paralelos, Patife, Desconcertos. Tem artigos publicados na Folha de São Paulo e um conto premiado pelo jornal O Estado de S.Paulo. Curador e fundador do Cineclube Pandora, que atuou, originalmente, no Departamento de História da USP e realizou mostras e eventos relacionados com cinema em bairros de periferia de São Paulo. Organizador e professor no workshop online de roteiro de cinema Cidade dos Homens, projeto conjunto Educine — O2 Produtora. Realizou o documentário Só Podia Ser Mulher, de 2003, sobre a situação da mulher na região norte de São Paulo. Editor do Desconcertos.