DÓI. PODE?

 

 

Os gritos chegavam com a noite. Vinham do lado de lá, ultrapassavam os muros cinzentos e atravessavam a rua, invadindo a vila, assustando as crianças e atrapalhando a novela, fazendo com que se aumentasse ao máximo o volume da televisão. Não que eles só começassem à noite. Pelo contrário, não tinham hora. É que, durante o dia quase não se percebia nada, porque os ruídos da cidade eram muitos e variados. E, além disso, durante o dia não havia as novelas exigindo concentração e silêncio. Por isso é que parecia que os gritos só vinham à noite, nunca se acostumando de todo as pessoas, apesar de ouvi-los há tanto tempo.

Reclamações, mesmo que tímidas, haviam sido feitas, verdade seja dita. Algumas pessoas chegaram a escrever aos jornais. Cartas apócrifas, é claro. Mas aquele era o estranho tempo das receitas de bolo conquistando espaço nas primeiras páginas, um tempo em que pensar — mais do que viver — era muito perigoso. Nas seções de cartas só se publicavam amenidades.

Naquela noite houve uma reunião de moradores. Não foi nada previamente programado, nada planejado. Foram chegando ao acaso, quem sabe aproveitando para esticar as pernas naquele lapso vazio e inútil entre a novela das sete e a das oito, reservado ao noticiário da TV. E o assunto veio naturalmente, sem prévio ajuste, mesmo porque aquela era uma noite sem outros ruídos e os gritos soavam particularmente dolorosos.

Surpresos, acabaram descobrindo haver entre eles um insuspeitado consenso: não era possível que tal situação continuasse. Era necessário que se fizesse alguma coisa. "Todos somos responsáveis", alguém justificou. "Nossa consciência cristã-ocidental", outro completou. "O que não dirão nossos filhos um dia, diante da nossa omissão, da nossa covardia?"

Mas fazer o quê? Reclamar ao bispo? "Reclamar ao comandante", alguém sussurrou, num excesso de audácia. E enquanto alguns sorriam, balançando a cabeça em face de tamanha ingenuidade, outro dentre eles deixou escapar o que era apenas para ser pensado em silêncio: "Mas não é mesmo? Quem mais poderia dar um jeito nisso?". Aí ficaram olhando algum tempo uns para a cara dos outros, e depois, sentindo-se progressivamente mais seguros, balançavam a cabeça concordando: a idéía tinha seu valor.

"Reclamar é uma palavra muito forte", jogaram um pouco de água na fervura. "Nós não somos extremistas". A ressalva foi encampada por todos, com veemência. Ficaram novamente em silêncio, cada um tentando desesperadamente encontrar uma palavra que definisse o que buscavam, sem risco de colocá-los em confronto com qualquer autoridade.

"Pedir?" "Pedir é perfeito!", comemoraram.

Bom, eleito o gato, faltava agora o mais importante: o voluntário disposto a representar a comunidade na delicada missão de colocar o guiso em seu pescoço. Aquele que iria, em nome de todos, à presença do comandante pedir-lhe as devidas providências.

Como na fábula antiga, no entanto, todos imediatamente começaram a socorrer-se de um impedimento pessoal qualquer que tornava definitivamente impossível a aceitação do espinhoso encargo. E, consequentemente, a descobrir no vizinho do lado qualidades até então insuspeitas que o tornavam a pessoa mais indicada para o honroso mister. Correu-se seriamente o risco de que aquela primeira manifestação de consciência coletiva abortasse no nascedouro.

Foi quando alguém lembrou-se daquele senhor que morava na casa número 32 e, de repente, todos bateram a mão na testa e também lembraram e concordaram e ainda disseram "como não lembrei antes?" E foi perfeita tal lembrança, pois o referido senhor, consultado, declarou-se francamente favorável à idéia e ainda agradeceu a honrosa indicação, apesar de, como fez questão de ressaltar, ser capitão reformado e anti-comunista confesso.

Com facilidade o capitão conseguiu uma audiência com a autoridade e, conforme explicou, para demonstrar que aquelas pessoas do lado de lá dos muros não eram nenhum bicho-papão, fez questão de ser acompanhado na entrevista por alguns daqueles que tinham tido idéia tão oportuna.

E no dia marcado lá estiveram, em embaixada, e tudo correu bem demais, e até foram convidados a participar de uma pequena solenidade, e cantaram o hino, e confraternizaram com todos aqueles gentis funcionários, e ouviram o eu te amo meu brasil executado por uma vibrante bandinha, e, afinal, tiveram que dar razão ao capitão, pois, de fato, agora podiam ver com os próprios olhos, eram mesmo gente como a gente, e gente muito legal, pessoas realmente simpáticas e educadas, cumpridoras de suas obrigações, patriotas credores de nosso eterno reconhecimento.

Recebidos polidamente pelo comandante, numa deferência toda especial ao líder da comissão, daquele ouviram a simpática promessa de que a reivindicação da coletividade seria devidamente examinada e atendida no que fosse possível. Ah, e que, por gentileza, se evitasse dar maior publicidade a tudo aquilo, pois, "como os senhores sabem, esses comunistas não perdem uma oportunidade para fazer barulho, para fomentar a discórdia e espalhar a cizânia...". E todos imediatamente assentiram, e balançaram gravemente a cabeça, e concordaram "sim, sim, como não".

No dia seguinte, como havia sido prometido, bem cedinho chegaram dois engenheiros que, imediatamente, passaram ao estudo da situação. E na parte da tarde já um caminhão descarregava material, ferramentas e operários.

Naquela noite, é verdade, ainda se ouviram os gritos, parece que até mais desesperados, de nunca se esquecer. Isso foi bastante comentado, porque aconteceu justamente numa sexta-feira, dia do último capítulo da novela das oito, e nem deu para prestar atenção direito, restando prejudicada a mensagem explícita que foi passada na televisão, de triunfo final da Justiça e do Amor, de opróbio e rejeição aos maus e de júbilo pela vitória final dos bons, dos honestos e dos pobres porém limpos.

Mas, para alívio geral, no dia seguinte o capitão do 32 convocou a comissão de moradores e comunicou que, graças a Deus, tudo estava acabado. Finalmente a vila poderia dormir em paz. Fora simplesmente, como explicou, um reles probleminha de acústica, coisinha de nada, café pequeno frente à incontestada competência da nossa engenharia. O capitão até deixou escapar uma inconfidência, sem deixar, no entanto, de mostrar que era proposital, o que se revelava no seu gesto de piscar cumplicemente o olho enquanto revelava: "Imagina que a sala de interrogatórios não tinha qualquer revestimento acústico! Coisas do Brasil...". E todos riram com ele, alguns ainda comentando "é mesmo, só no Brasil...", e, se despediram com alegria, parabenizando uns aos outros, e se sentiram mais leve no caminho de volta para casa, para o seio de suas famílias, onde chegaram com a gratificante e definitiva certeza do dever cumprido.

E, para coroar final tão feliz, a televisão ainda concedeu a dádiva de reprisar, no sábado, o último capítulo da novela.

 

 

 

 (Rio, 1973)

 

 

 

 

 

ESTÁGIO ACADÊMICO

 

 

          Esperei ele na esquina do beco, bem em frente ao antigo ponto de bicho. Tuca, Nego, Fredinho, a corja toda escondida me observando. A chuva tinha parado um pouco, agora só um chuvisco. Estava escuro que nem breu. E eu lá, me borrando de medo. Tremia tanto que acabei me cortando com o punhal que tinham me dado. Antes tivesse queimado um fumo, pelo menos um pouco de coragem dava. Mas melhor, mesmo, definitivo, era ter ficado calado, mosquito agora não entrava nessa minha boca grande. Bêbado, não devia ficar contando bravatas de fazer e acontecer. Agora era tarde, não tinha retorno. Se eu não fizesse era bem capaz de me cobrirem de porrada. Ou, até mesmo, coisa pior, Deus proteja! Fredinho, então, não gostava, nunca gostou, de mim, seria o primeirão. E aquela navalha dele, Santa Bárbara, que trovão! Ai, meu Deus do céu, queria mesmo era estar na casa da minha mãe agora. Porrada do namorado dela, melhor do que essa agonia.

          Chovendo de novo, noite mais triste, até a cidade, lá embaixo, parece que está morrendo. Mas morto mesmo, no duro, sem remédio e sem perdão, quem está é ele. É só chegar aqui e morre, eu mato! Tenho que matar. Falei que furava e furo mesmo. Não vou me desmoralizar na língua desses filhos da mãe.

          Demorando tanto. Deve ser a chuva. E eu rezando para chover mais, pra ter havido enchente, para ele ido pra casa de algum filho, ter perdido o trem, ter ficado doente, ter sido atropelado na cidade. Demora mais um pouquinho e a turma já-já perde a paciência, deixa para outro dia.

          Ai minha Nossa Senhora!, passos molhados, ploc ploc, e-vem ele! O velho!

          Olhei de esguelha, o sangue gelando, o velho curvado subindo a rua escura, uma chuva dos infernos agora, ploc ploc.

          Quando me viu, de repente, cara a cara, vulto a vulto na escuridão, escorregou na lama. Com o susto o guarda-chuva caiu. Meu Deus! ele gaguejou, compreendendo de estalo.

          E eu ali feito besta, o punhal na mão e um corisco relampejante corcoveando pelo céu. Com o clarão do raio vislumbrei a lágrima e o pavor no rosto do velho. Um pobre coitado de um velho, cujo único crime era receber sua aposentadoria sempre no mesmo dia de cada mês. Um velho inofensivo e sozinho, apavorado demais até para pensar em correr. Meu impulso de confortá-lo, de começar a rir, dizer é brincadeira seu bobo! E uma vontade de abraçá-lo, chamar de avozinho, de tio, sei lá. Até mesmo de pai, um nome que nunca tive oportunidade de usar.

          Virgem!, a turma deixando o esconderijo e vindo num tropel pro meu lado, Fredinho com aquela navalha carniceira na mão, vai acabar deixando o homem escapulir seu merda, seu veado. Tuca me deu um chute no saco, me esquivei mas ainda acertou, ai que dor do cão, a navalha me pegando de raspão, o velho me olhando branco de medo e a raiva nascendo dentro de mim, com a certeza definitiva de que era ele ou eu. Não vi mais nada. Pulei em cima dele, a primeira punhalada pegou no pescoço, bem em cima da veia artéria, esguichou um tufo de sangue na minha cara, aí me deu mais ódio ainda. Quantas não sei, mas ele não gritou, não deixei, não dei tempo, ele só dava um ronco abafado, que nem um boi no matadouro, depois caiu, quando o soltei, mais parecendo uma peneira.

Reviraram os bolsos, tinha uma mixaria, uns poucos trocados, não era o que se esperava: falha de informação. Como se a culpa fosse minha, Fredinho me xingou, Tuca me deu um pé na bunda, de raiva Nego ainda chutou o corpo caído no meio da enxurrada. Depois, é do que me lembro: a gente correndo desembestados pelo morro, eu com um nó desse tamanho na garganta e o capeta ricocheteando dentro do peito.

 

 

 

 

 

 

OLHOS VERDES MOVEDIÇOS

 

 

Misereatur tui omnipotens Deus, et dimissis peccatis tuis, perducat te ad vitam aeternam.

 

Morto, só acredito porque vendo. Pele do braço vermelhinha de beliscões: bem acordada? Pensar que ele ainda ontem berrando no truco. Hoje viúva desamparada. Escrita de mão torta de Deus? Eu, quem sempre desenganada por doutores, garrichazinha luxenta de tão debilzinha... Três vezes em coma, massagens no coração, diabética e asmática: vela e fósforo de plantão na gaveta da penteadeira. Lembrança de João doente? Bodas de prata já em maio e nem um chá de erva-cidreira lembrança de preparar para ele. Prevenia resfriados era com remédio de alambique. Sessenta anos, ainda derrubava boi pelo focinho, desarmava peão abusado com a arrogância do grito. Quando dava o murrão na mesa declarando vale seis! sete-de-copas corria de figura de paus. Não acharam até um certo exagero, no meio do berro caindo bem morto em cima da mesa? Foram me chamar na cozinha: com muito orgulho, apesar da fraqueza, preparando o quentão e fritando tira-gosto. Desgosto da pouca saúde nunca me vestiu desculpa esfarrapada: esposa desmazelada é vergonha que João não curtiu.

 

Indulgentiam, absolutionem, et remissionem peccatorum nostrorum tribuat nobis omnipotens et misericors Dominus.

 

Às vezes penso que ele vai começar a rir e saltar do caixão. Com o demônio, tudo possível. Tranquilo, sossegado mesmo, só quando conferir: bem coberto por sete palmos, muito capaz ainda de colocar tonelada de peso em cima, para maior garantia. Suando frio como em jogo final de campeonato, medo do gol nos descontos. Razão nenhuma para velório tão demorado. Parente algum esperado? Escaldado, com ele não vacilo. Já uma vez, cinco balas no corpo, caixão pronto e pago, cova aberta no cemitério, rodada de cachaça na venda em brinde de seus inimigos, não foi ele mesmo quem saiu do hospital arrotando injúrias contra os doutores? Pecado, Deus que me perdoe, pelo alívio. Nojo é ter que receber fingidos pêsames: não era ele o cão odiado? De pai, só da boca pra fora: marcas de chicote ainda aqui, ó, até hoje.

 

Aufer a nobis, quaesumus, Domine, iniquitates nostras: ut ad Sancta Sanctorum puris mereamur mentibus introire.

 

Em dúvida se choro mais. Sogro não é pai nem irmão. Satisfações já dei: vestida de preto e olhos mais vermelhos. Motivo para maus comentários não hei de ser. Discreta, em hora tão solene. José nem liga, dar um jeito de disfarçar o alívio: tanto ódio pelo pai! Fico até meio assustada, pouca mas certa semelhança com o velho, agora se nota. O mesmo brilho de maldade nos olhos verdes movediços. Sobrancelhas, tais quais: demoníacas. Mesmo sabendo-o morto, ainda muito o medo de José. Não lembrar sempre do rebenque de couro? À sua sombra os filhos sufocados, erva mirradinha e seca. Juquita fugiu de madrugada com o dinheiro do colchão e nunca mais deu notícia. Ana não sumiu com o nortista comprador de gado? Joaquim, coitado, culpa não tinha de sua diversa natureza. Vinte vezes pedi a José: mudar para outra cidade, trabalho na fábrica melhor do que vida de escravo. Vinte vezes meu marido pensava ter coragem: o velho segurava a gente com a força do olho.

 

Genitum non factum, consubstantialem Patri: per quem omnia facta sunt.

 

Quatro filhos lhe dei, nenhum chegando nem perto: profundo desgosto de João. Culpa dele se a mim puxaram em fraqueza e doenças? Joaquim, o que mais apanhou, tamanha vergonha não atirou sobre João? Coisa vestida de mulherzinha, lábios pintados e peruca loirinha, não veio assim no retrato em carta anônima de inimigo político? Logo o João, homem de tamanha força, garanhão sempre no cio. Querer exigir dele macho de uma fêmea só? Pedido de perdão é música que nunca ouvi, em anos. Também, perdidamente apaixonada, culpada de não ouvir conselhos é pecha que nunca aceitei. No primeiro dia, mão de leve no cabo do revólver, não foi ele, pelos conformes, invadindo minha casa, comunicar a meu pai decisão irrecorrível de casamento? Desgostos foi colheita que nunca me faltou, com sol ou chuva. Seca em ossos assim, do tanto que chorei, no começo. Com o tempo, aprendendo regra de bem viver. Na cama, até que muito carinhoso, às vezes. Amante mais comentado da cidade: evitar o orgulho? Em público, como deve ser: sempre soube meu lugar. Homem lá de abracinhos, beijinhos, essas coisas de pouquíssima vergonha na presença dos outros?

 

Et sic fiat sacrificium nostrum in cospectu tuo hodie, ut placeat tibi, Domini.

 

O canalha parece que ri... Gozando minha ansiedade? Mandar fechar o caixão, ver quem pode mais, agora. E esse padre safado que nunca mais acaba essa missa? Se ele se levantasse agora e desse um grito daqueles, todos ficariam gelados.   Esse que encomenda o corpo, escolhendo tanto as palavras, é o mesmo que o excomungava do púlpito, aos domingos. Possível acreditar nisso, o Diabo arrepender-se de seus pecados? Naquele último momento, naquela fração de segundos, na hora da verdade, na certeza e no medo da morte, renunciar a toda uma vida de luxúria e maldade? E o hipócrita desse padre, rebuscando qualidades inexistentes em defunto de tão pouca valia: para agradar a família? Mas não foi ele a desgraça de todos nós? Joaquim não veio, nem Juquita, nem Ana. Bela família ele gerou: um pederasta, um ladrão e uma puta. Eu, que não sou nada, o pior de todos: verme rastejante a seus pés, vida toda lambendo suas botas e me cagando de medo dele.

 

Ne perdas cum impiis, Deus, animam meam, et cum viris sanguinum vitam meam.

 

Às vezes penso que José vai levantar-se e bater no defunto: sabendo o que seu João fez de mim? Culpa não tive: resistir ao precipício dos olhos verdes? Culpa foi do José, sem coragem de ir embora. Não sabia sempre que perigo para a rã é a proximidade da cobra? Seu João era dono das nossas fraquezas.

 

Lavabo inter  innocentes manus meas: et circumdabo altare tuum, Domine.

 

Mulheres demais sei que ele sempre teve: porém, qual o marido, pai ou namorado disposto a pedir satisfações? Cinco entalhes no cabo do revólver, de pura exibição. Quando ele saía, com a brilhantina no cabelo e as pontinhas do bigode voltadas para cima, era como um leão passeando pelas esquinas. Voltava de madrugada, cansado mas alegrinho. Sempre encontrou cama quentinha, dormir até quando bem quisesse. Certa ou errada, não cumpri com minha obrigação? Por minha causa, ódio dos filhos João não merecia. Enquanto fui mulher, nunca me faltou.

 

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: dona eis requiem.

 

Raiva maior é ver mãe tão sentida, e saber que vem lá do fundo. Pele e osso, enrugada, acabada, diabética, sifilítica, o filé o cão não comeu? Sempre o defendendo contra os filhos, dele as melhores razões, mais de uma vez não a encheu de doença de rua? Espelhos, quebrei todos: nojo de ser tão parecido. Raspei o bigode e as costeletas, joguei fora o vidro de brilhantina. Mas, desgraça pouca é bobagem e injustiça quando vem é a cavalo: meu único filho não é a cara dele?  Outros  filhos  não pude ter, seqüelas de uma caxumba arruinada, em criança. Quase um milagre, enorme não foi o espanto do médico quando minha mulher embarrigou? Vai se chamar João, como o avô, exigência do velho. Afeiçoou-se demais ao menino, o filho da puta. Carinhos que nunca deu a nenhum de nós. Esse vai ser macho como eu, gabava-se na porta das vendas. Que nunca lhe falte lenha no fogo do inferno, cão!

 

Per ipsum, et cum ipso, et in ipso, est tibi Deo Patri omnipotenti, omnis honor et gloria.

 

     Quando ele chegava, era sempre como se fosse a primeira vez: não era a tentação em pessoa? Quando me queria mandava José em serviços urgentes e distantes. Essas mesmas mãos, cruzadas sobre o corpo, como resistir? Tão diferente do José, gostava de se exibir todo nu, suas grandezas à mostra. Quando se deitava a meu lado, não mais gelada e morta de medo: cumpria depressinha exigência soprada na orelha de beijos no peito cabeludo. Inventava brincadeira de bezerrinho novo: primeiro ele, o seio todo cabendo na boca, a língua roçando delícias. Depois vinha descendo, quentura gostosa de formiguinha lava-pés: adorava que eu gritasse, ofendendo-o com nomes. O que mil vezes recusei ao José: nojo de sua timidez. Com seu João, desavergonhadinha! Prazer doido de cumprir suas loucas vontades. De mim fez o que quis: possível suportar o José, depois de tê-lo conhecido?

 

                    Requiescant in pace. Amem.
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Poema triste

(plagiando Drummond)

 

A mão do destino

pousou em minha face

e saiu, sorrateira,

a pousar em outras faces.

 

O rosto no espelho

nem pensa em sorrir:

está triste o rosto

no espelho em frente a mim.

 

Lá fora é a rua

a cidade

a vida fremente

de corpos se roçando

na superlotação dos lotações.

 

Lá fora é o mundo

a multidão anônima

envolvendo você

que de mim já se esqueceu.

 

A mão do destino, querida

pousou em sua face também

e vendou seus olhos:

confinou o trem da sua vida

num desvio secundário

eternamente paralelo

ao meu.

 

 

 

 

 

O outro

 

No fundo do espelho

Percebo teu rosto

Sombra invertida

— Avesso do oposto

Visão expelida

De outros espelhos

Que ninguém vê

 

Girando anti-horário

Meu olhar se perde

Nas falsas promessas

Dos teus olhos vagos

Tristonho eu definho

Feito um rio seco

Temporário

 

Não sinto teu cheiro

Não toco teu corpo

Nem sei mais quem sou

(Me perco em desgosto)

Inútil minotauro

Neste obscuro labirinto

Em que estou posto

 

Fim de um túnel sem luz

Um barco sem porto

Sou águas de março

Perdido em agosto

— Inútil minotauro

Neste obscuro labirinto

Em que estou posto

 

(Belo Horizonte, 2008)

 

 

 

 

 

Besta-fera

 

Eu estava preso entre quatro paredes nuas

e havia um bicho

debaixo da cama.

Eu via os seus olhos

da cor da morte

acariciando o meu medo.

Dentes   virgem! vampirescos.

Ameaçador

em sua postura informe.

Me encheu de pavor

a maldade

no seu risinho bifronte.

O bicho debaixo da cama:

mole

balofo

imundo trípode.

O fedor de carniça

exalava, bifendido,

do esgar de carniceiro.

E eu,

para sempre sozinho

com o bicho debaixo da cama.

Engoli meu grito

regurgitei meu pânico.

Cobrindo a cabeça

fechando os olhos

fugi.

Asilei me

num refúgio

brizomântico.

 

(Rio, 1973 — anno IV mediceo)

 

 

 

 

 

Suburbana

(Imitando Gullar)

 

Um homem acocorado

na tarde baldia:

paisagem de bananeiras

e um farpado

arame de cercas.

 

O homem mascando a tarde

com suas gengivas vazias

e o sol   um vassalo 

na eterna

elipsoidal sina

de evoluir

em torno do humano eixo:

preguiçoso ponteiro

de relógio.

 

Um homem de cócoras

pode ser o centro do mundo.

 

O homem:

acocorado na vida baldia

perde a conta das trepadas do galo índio

naquelas sôfregas galinhas

carijós.

 

 

 

 

 

Poema caipira com final bobo

 

Tibúrcio encostou a enxada

enxugou o suor do rosto

puxou mais uma tragada

ouviu a cantiga do vento

passeando pelo milharal

e o murmúrio das juritis

seguindo em busca do ninho

em idílico vesperal

e desejou estar mais cedo em casa

nos braços de Rosaura.

Ah! os fogosos braços de Rosaura

 

Na curva ele se assustou

(alvíssaras de sinal trocado)

com a visita sem cabimento:

na porteira amarrado

o alazão estrelado

do fazendeiro Garcia

padrinho de casamento

 

Ante fato tão anormal

rompendo a certeza do dia

Tibúrcio olha pela janela

da alcova conjugal

e diz que só se recorda

da bigodeira do Garcia

mais parecendo uma vassoura

varrendo o alvo corpo de Rosaura.

Ah! O alvíssimo corpo de Rosaura

 

A enxada relampejou três vezes

que nem raio de chuva malsã

quando chega forte, temporã

 

Garcia morreu na hora

Rosaura se aleijou

e Tibúrcio foi pra cadeia

(condenado a mais de vinte)

onde até hoje bebe, come e dorme

às custas do contribuinte

 

 

 

 

 

Réquiem para uma poeta

 

Voraz e necessário, o tempo nos ilude, consome

e redime. A vida opera em círculos: perpétuos

redemoinhos. Lá e cá, no espaço/tempo,

você e eu, agora e sempre. Doce caminhada, paisagens,

cores, cheiros, nomes, e um Amor: inesgotável!

 

(Belo Horizonte, 6 de dezembro de 2006)

 

 

 

 

 

O esquife

 

na minha mortalha de almirante

navego este rio de barro

subindescendo

entre rebojos e sumidouros

mui valiente e hermoso

capitão piloto

desta minha canoa de pau

 

as cicatrizes das margens

são como hieróglifos

há muito decifrados:

não guardam segredos

para mim

que sou bom leitor

(um pingo é letra)

e revelam

nas suas entrelinhas

perdidas histórias

insepultas na memória

 

(galhadas flutuam

encoivaradas

sob as garras pestilentas

dos urubus)

 

Bambuí rio das águas sujas

Bambuí rio das borboletas

Bambuí rio tupi

 

nas barrancas

mastigando o silêncio

um povo triste me encara

com seus olhos de peixe

 

 

 

 

 

Laranja

 

A laranjeira

vergada de amarelo:

um amarelo quase alaranjado.

Mil seios dourados

despertando desejos

no menino.

 

Entre o menino

e o sonho

um muro de tijolos.

Em cima

fragmentos de vidro

traiçoeiros

cortantes:

crudele offendiculum.

 

Na janela

um cano enferrujado:

tiros de sal.

 

A luz do poste esparrama sombras nos becos.

Gatos histéricos miam

frementes.

Um cheiro de laranja

deflorada com os dedos

inunda o ambiente.

 

 

 

 

 

AI 5

 

Grito

em negrito

nas manchetes

do pesadelo

 

Encruzilhadas:

síntese

da dúvida

proibida

 

Acordar

é mergulhar

em pânico

deliqüescente

 

Sonâmbulos

vagamos

felizes

e crentes

 

(1971 — anno II mediceo)

 
 
 
(imagens ©dominika)
 
 
 
 
 
 
 
Danilo Fernandes Rocha (Belo Horizonte/MG). Advogado, roteirista, cineasta e escritor. Autor de Mortemática (poesia, Editora Nativa, 2004) e Viagem ao Fundo do Poço (romance). Participou da antologia Novos contistas mineiros (Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1988). Um dos vencedores do concurso literário Estímulo às Artes — Auxílio Edição — Literatura 2005, promovido por Palácio das Artes/Suplemento Literário de Minas Gerais, com o livro de contos Mea Culpa (no prelo). Escreveu, sob encomenda, o roteiro para longa-metragem intitulado Lagartas também voam. Finalista do concurso de contos da revista Bravo (2007), com o conto "Portal da Percepção". Escreveu e dirigiu os curtas Sic transit gloria mundi e Em terra de cego.
 
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