Acordei e tava em Amsterdam, num youth hostel chamado Sam's, na cama de baixo da beliche, e ainda por cima devia ser umas duas da tarde, e eu havia perdido o almoço, o café da manhã... e olhei para meu lado, ao meu redor, e havia tantas camas no salão onde eu estava — aquilo que alguns chamavam de quarto — sim, era um salão com mais de vinte beliches, e estava repleto de gente e suas respectivas backpacks.

Certamente durou mais de dois minutos até eu me recuperar como gente, e me dar como gente e ver onde eu estava, o que estava fazendo, onde estive na noite anterior e qual seria meu destino dali então. Pensei repetidamente, após ter me dado como gente, sou o Louis, sou o Louis, ontem fiquei a noite inteira jogando xadrez com meu amigo local holandês no coffe shop da esquina, até chegar aquele velho indiano que ganhava de todo mundo, com sua abertura karo khan que todos desconheciam e morriam de vontade de aprender, e fumando o super skunk de meu amigo local holandês, e depois ainda fiquei bebendo umas Hannikens com ele, e voltei a pé, sou o Louis, sou o Louis, estou no Sam's, estou cabulando aula em Paris, do meu curso de francês na gloriosa Sorbonne, e estou em Amsterdam faz já duas semanas e todo dia eu faço essa maldita rotina de jogar xadrez com esse meu amigo local holandês, que tem os cabelos compridos como um metaleiro, que joga bem pra cacete, e que eu ganho uma e ele outra, e sou o Louis, meio sem rumo mas certamente com uma definição sobre onde e o que quero fazer com minhas viagens pelo mundo. Certamente.

Olhei para baixo da minha cama, e para meu corpo. Meu corpo estava vestido de meias, calça jeans, moleton — havia apenas um simples cobertor surrado e fazia muito frio à noite no Sam's — e eu não tomava banho fazia dois dias, de modo que peguei minha backpack embaixo da cama, e eu precisava urgentemente tomar um banho e ver o que eu iria fazer nas próximas horas ou dias, eu precisava voltar para Paris urgente, porque senão o Sil iria ficar desesperado sem minhas notícias, e a Ka também, e eu tinha perdido o telefone de onde eles dois estavam, e peguei minha toalha azul da minha backpack, quando eu vi então que... minha câmera fotográfica, que meu pai me dera antes de eu viajar, havia sumido, ela que tinha abertura, obturador, velocidade, lentes com zoom, e tudo mais, e roubaram tudo, inclusive os filmes que estavam dentro da capa que protegia a câmera, e imediatamente olhei para dentro da backpack a fim de saber onde raios estava meu passaporte e minha carteira, e me deu um gelo pensar nisso porque eu não encontrava nenhum dos dois, daí que eu me liguei que — ufa! — a carteira e o passaporte estavam dentro da minha cueca.

Levei tudo e fui tomar banho num chuveiro gelado que não tinha água quente, e fiquei embaixo do chuveiro pensando na minha suíte que eu tinha no apartamento de meus pais, no Brasil, em São Paulo, e pensando no chuveiro e nas comodidades que eu tinha na minha casa, que era o melhor lugar para se ficar e justificava tudo aquilo a que nos referíamos como "lar".

Depois de guardar tudo, me trocar etcetera e tal, desci para reclamar com o dono do Sam's a respeito de minha câmera, e ele deixou que eu colocasse minha backpack num armário com chave, mas disse que não poderia me ressarcir e que eu já deveria saber que sempre há esse risco, dormindo em youth hostels, de ser roubado e coisas afins, e eu não simplesmente apenas disse que sim, mas fiz uma cara de bravo e descontente, para eu não ser assaltado de novo. Se você apenas diz sim, sim, você certamente é roubado de novo, e podem não deixar nem roupas para você usar.

O pessoal todo estava na parte de baixo do Sam's, conversando e bolando cigarros de skunk. Como era diferente, eu sentia toda manhã quando acordava lúcido, como era diferente estar o dia inteiro drogado e se drogando de maconha, e estar lúcido como nessa manhã que já era tarde... e o pessoal todo, a Frida, o John, o Peter, o Kuhn, o Briet, menos a brasileira Tatiana, como eles ficavam o dia inteiro fumando e bolando cigarros de skunk e maconha, o que dava na mesma. Até onde eu sabia, nenhum deles, ao menos, passava desse tipo de droga — como heroína, cocaína e afins. Essa era a turma que literalmente vivia no Sam's. Uma ou outra vez apareciam os transeuntes que queriam achar heroína e cocaína, mas até onde eu sabia, nenhum deles se interessava por drogas pesadas. A não ser, obviamente, por ecstasy e ácido ocasionalmente.

Menos a brasileira Tatiana. Ela tinha vinte e sete anos, era professora de inglês num curso no Brasil, num curso renomado, e estava fazendo backpackin' na Europa, ela tinha passaporte italiano, e queria conseguir um emprego qualquer pois não queria voltar ao Brasil mais, havia cansado, eu tinha um pouco menos de idade, e por isso talvez que eu não estava tão ansioso para tanto, apesar que se eu arranjasse um emprego qualquer lá em Amsterdam eu provavelmente ficaria por lá mesmo, o foda é o visto de trabalho que eu não teria, eu teria que ir e voltar do Brasil toda hora, e aí seria loucura demais, eu pensava. Ela era bonita a Tatiana, mas não dava muita bola pra mim, na verdade achava eu que ela não dava bola mesmo era pra brasileiro, queria distância de brasileiros, ela que morou, até onde eu sabia, a vida inteira no Brasil, e agora tinha nojo de brasileiros, eu não julgava ela, eu até entendia ela, os brasileiros que viajavam e faziam backpackin' e só conheciam e ficavam com brasileiros era de uma falta de imaginação incomensurável. E ela evitava falar muito comigo, e era a segunda vez que eu a encontrava em Amsterdam, a primeira vez foi logo quando eu cheguei para estudar em Paris, e vim no fim de semana com o Sil para cá, e ela estava aqui, e apenas nos cumprimentou, talvez porque dessa vez eu estava sem o Sil, sozinho, e já era bicho de mato de ficar viajando, que ela me respeitava um pouco mais. E via também, claro, que eu falava inglês muito bem e tinha amigos e fazia amigos de todas as nacionalidades. Apesar de que ela não fumava maconha — sequer cigarros — todos achavam ela totalmente natural, mas eu a considerava um pouco estranha... pois se não fumava maconha nem cigarros, o que ela afinal fazia no Sam's?, eu pensava.  

Cumprimentei a todos lá, e depois eles começaram a me oferecer um monte de Heinnekens e skunk, e eu não estava mais conseguindo falar as coisas com fluência, porque eu não sabia direito, mas já devia estar lesado da noite anterior, ou melhor, das noites anteriores, já fazia quase duas semanas de maconha ininterrupta, e então aceitei alguns tragos de super skunk do Peter, que era um escocês que ninguém entendia muito bem o que ele falava — para mim, era seu sotaque muito carregado — e pouco tempo depois eu já estava muito louco e me controlando para não ficar mal, ou ter um surto psicótico, ou ficar falando abobrinha sem parar — que era o usual que acontecia comigo, essa coisa de ficar falando sem parar.

E como, no embalo das drogas, eu ficava cada vez mais querendo ficar mais e mais louco, mas também ao mesmo tempo eu tinha um pouco de vergonha de ficar pedindo maconha para meus amigos, decidi, entre uma conversa e outra, dar uma volta e ver o sol de Amsterdam, talvez porque também a Tatiana havia saído pouco tempo atrás e eu queria bater um papo agradável com ela, apesar que achava que ela não devia gostar de falar com gente drogada, também.

Saí do Sam's e realmente fazia frio, mas com um sol gostoso de verão — aquele era o ano de 1998. Fui até um lugar onde tinham máquinas que vendiam salgados por um preço razoável — eu ainda tinha dinheiro guardado, algumas goudas, uns dólares, meu cartão de crédito e meu Europass — comi andando, indo ao coffe shop que eu sempre ia, gastar algumas goudas. Em geral, eu acabava comprando algumas gramas de super skunk, e um pouco de papel para fumar, apesar da variedade de produtos que eles tinham, eu ficava no tradicional também, como quase todos os meus amigos do Sam's. O cara, meu amigo local holandês, não estava lá jogando xadrez, e perguntei para o vendedor onde ele estava, e ele disse que ele só passaria durante a noite. Fumei um cigarro que fiz na hora, com uma piteira e misturado ao tabaco, e daí saí  extremamente atordoado para a rua, e daí aquele sol de agradável ficou de lascar, e comecei a ter algumas vertigens e achava a toda hora que eu iria desmaiar, o que não acabou acontecendo. Fui até o Parque da Cidade, a pé, inicialmente, depois peguei um bonde amarelo que me deixou na porta do Parque — porque realmente não tinha condições de ir a pé, e eu estava procurando a Tatiana, havia ouvido que ela iria ao Parque — e dei uma volta lá, mas ela não estava lá, havia apenas um monte de jovens sentados na grama fumando seus respectivos cigarros, de tabaco e maconha, e me deitei na grama, cansado de tanto procurar a Tatiana, e acabei dando um cochilo de vinte minutos. Só fui acordado porque, aparentemente, o John estava passando por lá e me viu encostado numa árvore, na sombra, dando uma cochilada, e ficou preocupado e me acordou. Por alguma coincidência, ele me perguntou se eu havia visto a Tatiana, e eu disse que não, mas que a procurava. Ele me disse que ela havia conseguido um emprego no dia anterior, num coffe shop perto da redlight district. Fiquei feliz por ela, pois como ela tinha passaporte italiano, estava com pouca grana, não iria enfrentar problemas ademais, a não ser que não fosse registrada, o que era comum nesses coffe shops. O John estava dizendo, enquanto eu pensava nesses assunto de empregados ilegais, que havia um americano lá no Sam's, que acabara de chegar, chamado Josh, e que parecia ser um americano... atípico. Pois em geral, essa era a impressão de todos, os americanos eram sempre iguaizinhos, sempre com o mesmo estilo de se vestir, falando com o olhar para o alto, nunca abaixavam a cabeça para nada e não conheciam porcaria nenhuma a respeito de nada, muito menos das culturas das cidades e países que visitavam. Mas esse Josh, pelo visto, era um cara diferente, segundo John contava: ele tinha várias teorias sobre os Estados Unidos, que eles precisavam ser mais altruístas, tinha noção de que a maioria dos americanos eram ignorantes culturalmente, e ele falava muito a respeito dos árabes e da questão de Israel com a Palestina, e que os Esados Unidos deveriam resolver esse assunto antes que fosse tarde demais, e falava tudo isso, segundo John, sempre com um tom apocalíptico. E, pelo visto, ele chegou no Sam's e já havia feito amizade com todos, e experimentado todo tipo de maconha que se vendia em Amsterdam. Depois o John me perguntou se eu não queria ir a Heinneken com ele, na fábrica da cervejaria, degustar um pouco, ou seja, beber de graça umas cervejas, e como eu não havia ido, ainda, aceitei seu convite. Saí da sombra da árvore, me levantando, e pegamos um bonde, dessa vez colorido, com umas propagandas sobre  Copa do Mundo de futebol estampadas no exterior, e voltamos ao centro, onde ficava a fábrica da Heinneken.

Desse dia, me lembro até aqui. Ou melhor, houve um lapso na minha memória, e só me dei conta de quem eu era quando eu já estava no Sam's novamente, jogando xadrez com o Peter, um escocês que ninguém entendia nada do que ele falava, e já era onze da noite, mais ou menos, daí que eu me dei conta de que havia bebido um monte de cerveja com o John e depois voltado para o Sam's, fumado um monte de super skunk, e dormido na cama de baixo do beliche durante algumas horas, até acordar ainda meio chapado e encontrado Peter, que me convidara para uma partida de xadrez. Sou o Louis, estou em Amsterdam, estive na Heinneken à tarde, minha backpack estava no armário com chave, estou jogando xadrez agora, e o Peter dava um lance semi-fatal no meio do jogo, e eu olhava o jogo e não entendia direito o que estava acontecendo, nem quais jogadas se sucederam até esse momento. Perguntei para o Peter se ele sabia a abertura karo khan, no xadrez, que todos queriam saber, ele disse que também gostaria de saber, mas não sabia. Apenas aquele indiano do coffe shop deveria saber essa abertura, se é que ele não havia inventado que existia tal abertura.

O Peter bolou um cigarro de super skunk com piteira de papel e tabaco, que retirou de seu cigarro, e eu não queria de jeito nenhum voltar a fumar mais maconha e me drogar mais ainda, eu iria voltar para Paris no dia seguinte, na manhã seguinte, provavelmente eu nem dormiria aquela noite porque eu estava exausto de Amsterdam e de me drogar e de fumar maconha, e eu joguei um lance que acabei perdendo meu bispo branco, e o Peter começou a rir e a falar naquele sotaque que só ele entendia, e me deu uma raiva ter perdido meu bispo branco — apesar que eu tinha um cavalo preto dele — que aceitei um trago do seu cigarro misturado, e daí começou a doer minha cabeça, nas têmporas, de um jeito que eu achava que iria morrer ali mesmo, sentado naquela cadeira de madeira que tinha no Sam's.

O Josh, o americano atípico do qual John havia falado, descia das escadas e vinha em direção a nós, eu e Peter. Ele trazia uma câmera fotográfica Nikon modelo 601, e então lembrei que eu tinha uma exata câmera como a dele até o dia de hoje, quando me assaltaram, fiquei desconfiado alguns segundos e meio preparando para abordá-lo, mas quando ele chegou perto — não sei se eu estava tão bem, também — vi que a Nikon dele tinha um negócio vermelho ao lado da sigla, e a minha não tinha, de modo que voltei a me concentrar no jogo, em meio a alguns tragos do cigarro do Peter, e Josh perguntando a nós dois se poderia tirar uma foto, pois estava querendo mostrar para sua namorada dos Estados Unidos que ele fizera muitos amigos. Eu comecei a rir, e Peter me olhou chapado e sorrindo, afinal de contas, esses americanos eram uns idiotas, mesmo, e eu falei para ele, o Josh, que se quisesse fazer amizade conosco era só conversar com a gente, éramos inofensivos, e daí a foto dele seria de legítimos amigos feitos na Europa, mas disse também que, caso ele não quisesse, e só quisesse a foto, também, por mim, tudo bem. Daí que o cara sentou, puxou uma cadeira e ficou puxando papo conosco, e eu só devia ter deixado ele bater a maldita foto dele e nem ter dito nada, mas ele ficou falando como éramos legais e gentis, na língua dele, e que éramos diferentes dos rednecks que havia nos Estados Unidos, e daí que eu tive que dar outros tragos no cigarro de Peter, enquanto o Josh fazia um cigarro seu de haxixe com um isqueiro pequeno. Eu não queria falar muito com o Josh — acho que tampouco com o Peter — eu queria apenas ganhar aquele jogo, que já devia estar no trigésimo lance, e eu queria na verdade era programar minha fuga dessa cidade que estava me adoecendo, me deixando maluco, sem pensar direito nas coisas, sem conseguir fazer nada o dia inteiro nem conversar, a não ser fumar, fumar e quem sabe beber algumas cervejas Heinnekens.

Enquanto eu pensava como eu iria para Paris, e pensava em quantos dias eu ainda tinha de viagem no meu Europass, e pensava no que eu diria para o Sil e a Ka, o Josh começou a observar nosso jogo, e começou a dar umas dicas depois dos lances feitos, e não é que ele realmente jogava bem, esse cara? Parecia um gênio dizendo os lances, e que tinham fundamentos, e eu havia visto que perdera dois xeque-mates, mesmo assim eu ganhei o jogo do Peter, que falou que iria dormir, e subiu no andar de cima, e o Josh sentou na cadeira dele, pedindo que jogasse um jogo comigo.

"Só jogo se você souber o karo khan, e me ensinar".

"Ok", ele disse, para minha surpresa.

Me ensinou o karo khan, a famosa abertura indiana que poucos sabiam jogá-la, e ficamos conversando durante uma hora, e vi que ele realmente era um cara legal, um americano atípico, um cara gente boa e de cabeça aberta às coisas. Ele era de Palo Alto, que eu conhecia porque eu havia ido para a Califórnia alguns anos atrás, e ficamos conversando sobre um monte de assunto até que ele pediu para uma pessoa tirar uma foto da gente, com sua câmera. Depois disso, ele ficava falando de teorias um pouco conspiratórias contra os Estados Unidos, eu imaginava que deveria ser as drogas influindo em sua cabeça, e ele dizia que o sentimento de anti-americanismo estava sendo muito ruim e destrutivo para os americanos, e que boa parte das pessoas nem se davam conta disso, muito menos os próprios americanos, e o jeito como ele falava isso — ele era professor de física na Califórnia — fazia realmente você pensar a respeito. Depois dessa conversa eu nunca mais tive nenhum preconceito a respeito de americanos, assunto do qual conversamos bastante naquela noite. O Josh, que usava óculos de grau como se fosse um nerd intelectual, com o cabelinho escovado meio castanho, e olhos muito azuis, disse que queria conhecer alguma boate para dançar — ele gostava muito de tecno, e estava sendo uma onda na Europa esse tipo de música já fazia alguns anos. Eu conhecia uma boate longe do centro — tinha que se ir de táxi até lá ou demoraria uma meia hora a pé — e expliquei para ele as coordenadas e dei o nome do lugar. Ele insistia para que eu fosse com ele, dizendo que curtiríamos muito, que queria conhecer alguma holandesa, porque nos Estados Unidos era difícil conhecer alguma garota, e que por eu ser brasileiro eu poderia dar umas dicas pra ele, de modo que eu acabei cedendo e fomos até a boate que eu conhecia e tocava principalmente drum'n bass e trance.    

Bolamos mais dos cigarros misturados com super skunk e tabaco, para fumarmos dentro da boate, e saímos do Sam's até a praça principal onde havia alguns táxis. Na praça, duas garotas, uma morena e outra loira bem baixinha, falam em português, para mim, um oi gatinho, qual seu nome, e a outra loira baxinha disse que eu era um gostoso, e daí eu disse a elas que eu falava português, e elas, rindo, ficaram constrangidas e foram embora. O Josh perguntou o que havia sucedido, e eu disse para deixar pra lá. Brasileiros sempre faziam esse tipo de coisa no mundo todo. Eu disse ao Josh que brasileiros também tinham essa imagem de festeiros e bons de futebol e carnavalescos e namoradeiros, mas que na verdade isso tudo era ao mesmo tempo uma qualidade e um defeito que poderia nos levar a um fundo do poço e jamais sairíamos de lá. Josh disse que compreendia, e que achava que isso se devia ao passado escravocrata do país, mas que, ao contrário dos Estados Unidos, não houve nem revolução nem guerra que colocasse as coisas de volta aos trilhos.

O taxista que pegamos, um holandês que surpreendentemente não falava inglês com tanta fluência, ficava, depois de ter descoberto que eu era brasileiro, apenas querendo falar comigo sobre futebol, e eu não estava nem um pouco a fim, não porque não gostava, mas porque eu estava um pouco com aquela dor nas têmporas novamente, e já pensava que teria que adiar mais um dia meu regresso a Paris. Já que eu sairia com Josh para badalar, eu dormiria tarde e acordaria tarde, e ainda por cima havia um problema que eu só pensava agora, que era: grana. Eu tinha ainda algumas goudas e dólares, mas estava quase no final, e meu cartão de crédito, por algum motivo, não estava conseguindo retirar dinheiro das máquinas eletrônicas, e eu teria que voltar para Paris para pedir dinheiro emprestado ao Sil ou a Ka, que certamente me emprestariam. Ambos eram do meu curso de francês na gloriosa Sorbonne, e eles eram imensamente mais dedicados que eu nos estudos, apesar que eu, nos primeiros dois meses em Paris e de curso, já falava bem o francês, de modo que agora era muito mais aproveitar e curtir o final da minha fase pós-adolescente que ficar me matando de estudar sem finalidade nenhuma. Eu queria crescer, mas não com estudos, fazendo a famosa faculdade da vida, conhecendo pessoas de todo mundo e o mundo todo e suas pessoas e de quebra, sair do bairrismo e provincianismo que era o Brasil, São Paulo e sua capital.

Eu disse para o taxista que o Ronaldo ia bater um bolão e que a final seria Brasil e Holanda, mas que a Holanda ganharia o Brasil e levaria a Copa do Mundo, ele riu modestamente dizendo que eu estava sendo ingênuo, e que a final seria Brasil e França e o Brasil ganharia dos malditos e arrogantes franceses, que jogavam em casa.

Em menos de dez minutos já estávamos na porta da boate, e eu paguei o táxi, Josh disse que pagaria o táxi da volta. Esperamos um pouco na fila da boate, que não tinha dress code nenhum, você poderia ir como quisesse e também não havia muitos requisitos de estar bem vestido para entrar, e não tivemos muitas dificuldades para pisar lá dentro, era razoavelmente barata a entrada e logo fomos ao bar tomar uma Heinneken, que era a cerveja mais barata da Holanda, e acendemos um cigarro misturado, enquanto aquele som de drum'n bass entrava em nosso corpo fazendo-o movimentar e pulsar todos os nervos. O Josh começou a dançar na pista feito um maluco, e duas loiríssimas garotas de olhos verdes, vestidas como se fossem ir a uma festa e não a uma boate, me abordaram em holandês, e eu não falava niecht de deutch, comecei a querer puxar papo em inglês com elas, não apenas porque se rolasse alguma coisa eu ficaria muito feliz e realizado, mas porque senão eu ficaria apenas pasmando, pois eu já estava há duas semanas todos os dias fumado de maconha, super skunk, qualquer coisa desse tipo. Elas riram quando souberam que eu era brasileiro, mas disseram que estavam procurando algum holandês bonito para algum compromisso mais sério, e não queriam ser apenas umas garotas de porto de um brasileiro turista, eu tentei insistir na conversa mas elas saíram rindo, e foram até o andar de cima da boate, que, aquelas horas, ainda estava com pouca gente.

Fiquei triste e chateado com o certo fora que havia levado, e então o Josh vinha pulando com todo aquele jeito de nerd intelectual que ele tinha, e disse nos meus ouvidos que havia arranjado dois ecstasys com um cara lá dentro da boate, enquanto eu estava falando com as duas holandesas, provavelmente. Fiquei muito incomodado com essa informação, pois eu realmente queria tomar um ecstasy mas não naquelas condições, pois estava literalmente acabado de tanto fumar maconha em Amsterdam. Ele ficou me pressionando com os olhos azuis dele, e eu disse que tudo bem, que me desse um deles, e que eu pagaria com água. No Brasil, eu já havia tomado em algumas raves clandestinas uns ecstasys, e eu gostava enormemente da sensação que me causava, de dançar tecno com esse comprimido e de tocar, se possível beijar ou algo mais, alguma garota sob esse efeito. Ele me deu o comprimido escondido, e eu fui até o banheiro tomar o ecstasy, que tinha um símbolo de um cara sorrindo, e tomei bastante água da pia — o pessoal do Sam's dizia que não havia problema em tomar água da pia, fora que eu precisava economizar dinheiro e ainda pagar o ecstasy do Josh com águas. Mas não foi por isso que, pimordialmente, eu aceitei o ecstasy, mas sim porque eu precisava de alguma coisa que me fizesse acordar um pouco do marasmo que eu estava vivendo e voltar a sentir as coisas e a mim mesmo.

Não demorou nem vinte minutos para bater o efeito, e dentro da boate começou a tocar um trance muito pesado, que era o som preferido, meu, para se ouvir com ecstasy. Aos poucos, comecei a sentir algumas sensações que apenas o ecstasy proporcionava, e meu coração acelerado pedia mais maconha para dar uma acalmada em meu sistema nervoso. Mais duas horas pulando ao som do trance, um dj inglês que estava lá, muito conhecido internacionalmente, e então as sensações acabaram, e o Josh pergunta se quero mais, porém eu recuso, já que o ecstasy não me despertara e, pelo contrário, apenas me deixara mais lesado. Mas não com sono, eu estava muito desperto e achava que eu não conseguiria dormir, e me bateu um desespero quando pensei que talvez eu ficasse mas uma semana lá em Amsterdam, e eu não queria mais isso para mim, queria sair imediatamente daquela vida de drogado errante, e então vejo o Josh com uma garota de óculos de grau muito esquisita, beijando ela, e ele me dava acenos de longe enquanto a beijava, e ela estava cheia de colares no estilo gótico, com um coturno gigantesco, mas era estranho porque ela era muito mais alta que ele, o Josh. Fui até o bar tomar uma Heinneken e quando vi na minha carteira, havia muito, muito pouco dinheiro, e eu ainda teria que pagar o Josh e seu ecstasy, e ainda comer no dia seguinte, e nesse instante que acho que me deu um raio de lucidez, uma voz interior me dizia para sair dali imediatamente e voltar para Paris no primeiro trem, e foi isso o que eu iria fazer, procurei o Josh para voltar até o Sam's, que ficava ao lado da Centraal Station, e não encontrava ele em lugar nenhum, fui até o andar de cima, no banheiro, em lugar nenhum, nem ele nem a garota gótica mais alta que ele.

Me realizei, saindo daquela boate sozinho, que a grana era muito menor do que eu imaginava, e que dava apenas para duas refeições bem justas, de modo que, naquele momento, nem táxi eu tinha, pois o Josh iria pagar a volta, e eu fiquei a pé, ultra cansado, e tinha apenas um maço de cigarros comigo, minhas roupas, minha carteira e o passaporte, e eu tinha que voltar para o Sam's e pegar minha backpack no armário e eu não estava com o mínimo de sono, e resolvi que iria partir de Amsterdam naquela mesma manhã. Fui andando pela cidade de volta ao Sam's, no meio da noite que aos poucos ia se transformando em dia, e ocasionalmente eu entrava em algum coffe shop aberta vinte e quatro horas para perguntar como se fazia para ir até o centro, mas era razoavelmente fácil o caminho, o duro era mesmo o cansaço que tava pegando muito forte, apesar que o ecstasy me deixava com um pouco mais de energia física. Só cheguei no Sam's, totalmente destruído, quando o sol começou a aparecer timidamente, e o dono do youth hostel me deixou entrar a despeito do curfue que havia, peguei minha chave e abri o armário que tinha minha backpack, como eu já havia pago adiantado ao dono do Sam's me despedi brevemente dele e coloquei a backpack nas costas, uma backpack vermelha que eu havia comprado em Paris, e ele ainda pôde dizer que lamentava pela câmera que haviam me roubado, como eu sabia que eu poderia voltar lá ainda, em outras ocasiões, disse para ele que não havia problemas, e que eu comprava outra.

A Centraal Station era perto do Sam's, e quando cheguei lá a primeira coisa que fiz foi ver os horários dos trens que partiriam a Paris. Havia um que partiria as oito e meia da manhã, e olhei no meu relógio e faltava ainda uma hora e meia, comprei então um sanduíche de baguete, com presunto, queijo, alface e tomate e maionese, e deu para saciar minha fome, eu precisava muito de algum alimento. Com o peso da backpack nas costas, fiquei dando uma volta e parei na banca de revistas para ler o jornal francês, e então avistei ao longe o John, que estava aparentemente vagando por lá. Acenei a ele várias vezes, e antes de ele ir embora fui de encontro a John, que era um inglês muito alto e sempre era muito simpático com todos, apesar que a turma em geral do Sam's não gostava muito de seu jeito simpático porém retraído e melancólico. Meu corpo doía um pouco e fiquei imaginando como doeria muito mais depois que o ecstasy não fizesse mais nenhum efeito, nem mental nem físico, e contei para o John da minha noite anterior, e ele havia ficado ainda surpreso em me ver na Centraal Station com minhas coisas nas costas, perguntou onde eu estava indo, e eu respondi que para casa.

"Paris?", ele perguntou.

O Brasil que não era, pelo menos ainda não. Havia dado alguma coisa em mim, naquele momento, que eu queria que queria ficar na Europa para sempre, e nunca mais voltar ao Brasil, queria arranjar um emprego, queria ficar viajando pelo mundo eternamente, não necessariamente usando drogas, mas queria muito conhecer, conhecer e conhecer, quando o John disse que tinha um presente para me dar, e meu estômago roncou quando ele abriu o bolo que havia dentro de seu bolso, era um space cake que deveria ser inofensivo, eu pensava, ele disse que eu assim teria uma boa viagem e dormiria com os anjinhos, eu disse que aceitava, e coloquei o bolo no embrulho novamente e botei no bolso do meu moleton. Pedi para que ele se despedisse do pessoal por mim, e que mantivessem contato comigo via e-mail, o John já tinha meu e-mail e eu havia conhecido ele na primeira vez que eu viera para Amsterdam, eu e o Sil, dois turistões brasileiros, e o John sempre super simpático, desde aquela vez, e quando eu fui dessa vez para a Holanda eu havia me comunicado com John e ele dissera que estaria no Sam's, como sempre. Eu invejava ele, pois ele tinha passaporte inglês e poderia ficar onde bem quisesse dentro da Europa, trabalhando ou mesmo eternamente viajando e fazendo uns bicos.

O John disse que queria ir na Heinneken novamente aquele dia, degustar algumas cervejas, ou seja, beber de graça, ele fumava pouco maconha, curtia mais um space cake ocasional. Estranhei um pouco que ele estava na Centraal Station a essa hora da manhã, e ele disse que havia acabado o dinheiro dele e dormira lá mesma, na estação, num banco, mas eu não poderia ajudá-lo financeiramente, pois eu tinha apenas dinheiro para mais uma refeição, que seria o almoço quando chegasse em Paris e se Deus me ajudasse, eu encontraria o Sil ou a Ka para qualquer coisa que eu precisasse comprar. O John ficou me olhando um pouco tenso, de modo que rapidamente me despedi dele e menti que meu trem já estava partindo, e daí fui embora e fiquei esperando meu trem, enquanto ele ia passeando para o lado da saída da estação, e fiquei aliviado quando o vi saindo da Central.

Faltava meia hora para o trem partir, de modo que entrei lá dentro na minha poltrona e abri o space cake, já com uma certa fome, e comi o bolo de chocolate misturado com maconha. Apenas quando o trem partiu que o bolo fez efeito e eu desmaiei de sono e loucura, acordando apenas com o barulho dos passageiros do trem se levantando, e com o microfone dos comissários de bordo, pedindo a que todos desembarcassem. Atordoado e ainda sob os efeitos da maconha do space cake e o pós-tensão do ecstasy, peguei minha backpack que estava no compartimento acima do banco e coloquei na minha mochila, e fui saindo do trem por um corredor onde havia vários policiais franceses com cachorros pastor-alemães, e ainda bem que não me revistaram, mas não encontrariam nada de todo modo pois eu estava limpo.

Em Paris, na estação Gare de Lyon entrei no banheiro para lavar o rosto e vi minhas pupilas totalmente dilatadas e meus olhos esbugalhados, e eu estava pálido. Quase chorei ao me ver, assim, de algum modo sem eu próprio saber o porquê. Respirei fundo e recobrei minhas energias, afinal de contas eu precisava ainda voltar até meu apartamento, que era uma suíte num edifício apenas para estudantes, comer alguma coisa e ainda encontrar o Sil ou a Ka para que me dessem algum dinheiro que eu pudesse sobreviver.

Saí do banheiro e fui direto ao metrô, e com apenas um metrô eu já estaria em casa, na minha suíte, e tirei minha carte d'orange da carteira, que dava direito a transporte público em Paris, andando até meu edifício minha cabeça começou não apenas a doer as têmporas, mas a latejar, e entrei no edifício cumprimentando o porteiro que era da Argélia, ele mal falava francês direito, subi no meu quarto pelo elevador, e quando tranquei a porta e tirei minha backpack das costas deitei na cama de tênis e casaco e tudo e capotei durante vinte horas ininterruptas.

 

 

 

(imagem ©adamm)

 

 

 

 

Denny Yang, 28, é escritor e autor do romance Isabelle (Coleção Escritores Universitários, Editora FTD, 2002), adotado por algumas escolas no Brasil. Estudou Economia na Fundação Armando Álvares Penteado (durante dois anos), e atualmente cursa o quarto semestre do departamento de História da FFLCH, na Universidade de São Paulo. Freqüentou, durante seis meses, os cursos de Civilização Francesa, na Sorbonne (em Paris), e Fotografia P/B, na Escola Panamericana de Arte. Colaborou para a extinta revista Question, e recentemente foi convidado a escrever um artigo — na seção "Dois dedos em prosa" — para a revista Vida Simples (editora Abril). Tem diversos contos publicados em sites de literatura como Portal Literal (finalista do concurso Exercícios Urbanos), Storm Magazine, Verbo21, Revista Corsário, Meio-Tom, Jornal Vaia e NaSelva. Atualmente, é colaborador voluntário no grupo de oficina de textos do SOESQ (associação destinada a pessoas com esquizofrenia), onde orienta o grupo com exercícios ficcionais, como forma de apoio ao tratamento.