diderot, voltaire, rousseau
 
  
                                                                     
  

 

É bastante paradoxal que a "Enciclopédia" — os livros de conhecimentos gerais em que se encontram quase tudo — da culinária às origens dos caracteres fenícios — tenha sido editada em 1751, algum tempo antes da Revolução Francesa de 1789. D'Alembert, Diderot, Voltaire, Rousseau, Grimm e outros não formavam um grupo homogêneo. Pretendiam, porém, que o mundo podia ser abarcado pelo intelecto dos homens por mais diferentes que fossem os seus mundos; ou mesmo os homens entre si. A própria etimologia da palavra enciclopédia — que se propõe à sabença de um mundo circular, panorâmico — tinha por princípio que, na terra, esta grande esfera em que vivemos, os conhecimentos se dariam num nunca acabar de voltas e de encontros. Heráclito, filósofo pré-socrático, dizia que o mesmo homem nunca entrava num mesmo rio duas vezes. Os enciclopedistas imaginavam que o os homens sempre se encontrariam no que tinham de comum — o seu intelecto, a sua razão. Não importava que os rios e os homens mudassem constantemente: na terra redonda, circular, não haveria como os seres humanos se desencontrarem no futuro. O surpreendente e o  paradoxal é que os enciclopedistas inventaram o seu "livro dos livros" às vésperas do triunfo do capitalismo que impôs a especialização a todos os homens, como condição da sua sobrevivência num mundo de produção massiva. E sempre a caminho da homogeneidade.

É que os enciclopedistas com o perdão da redundância, eram eles próprios "enciclopédicos". Diderot (1703-1784) foi ficcionista (seus livros eróticos ainda vendem), o primeiro crítico de artes plásticas realmente notável — e podia ter parado por aí, mas nunca abdicou de falar sobre música, ou de discuti-la, inclusive com os compositores de seu tempo. No verbete sobre música que escreveu para a primeira edição da enciclopédia, Jean Jacques Rousseau (1712-778) defendeu suas próprias idéias musicais, que, afinal, já estavam expressas em muitas de suas composições. Entre um ou outro livro sobre o direito natural, a sociedade ou a moral, Rousseau encontrava tempo para a música. Sua pequena ópera "Le Devin du Village" ("O Adivinho da Aldeia") foi um sucesso estrondoso durante anos na França.  Mozart, inclusive, aproveitou o mesmo argumento para escrever o seu "Bastião e  Bastiana"  uma pequena cena lírica que ele escreveu aos 12 anos de idade. A ópera de Rousseau, porém, não sobreviveu ao seu "Émile" ou às suas "Confissões", mas provocou muitas polêmicas, que eram, no fim das contas, o que os enciclopedistas mais almejavam. Discutir tudo no âmbito de uma sociedade que eles sabiam caminhar para a especialização, foi talvez o maior legado democrático da "Enciclopédia". Um sem número de cientistas, escritores, intelectuais, filósofos e mesmo milhões de homens e mulheres comuns entenderam o recado. A condição de leitor impunha aos herdeiros das enciclopédias — homens do Iluminismo, ou da Ilustração, como se queira — um conhecimento sobre tudo ou quase tudo. Tornou-se quase regra, a partir de então, a todo intelectual que a democracia se fizesse no debate e, de preferência, com um conhecimento de todas as causas. Muitos se dedicaram, de fato, à tarefa, na verdade impossível, de ter conhecimento de todas as causas apenas para brilhar: a erudição enfatuada, bem ou mal, pode render bons dividendos. O compositor Giuseppe Verdi gostava de enfatizar certa ignorância: garantia assim que não lhe cobrassem citações eruditas — vazias — que ele desconsiderava justamente por não dizerem nada. No teatro de Molière há sempre um "doutor" a cumular as platéias de disparates, acompanhados de citações, geralmente em latim. Os tipos considerados "eruditos" (e que Nietzche chamava de "solteironas"), são hoje facilmente identificáveis e não se encontram só entre acadêmicos, professores ou não... O jornalista Paulo Francis, morto há dez anos — ele mesmo um "enciclopedista" que discutia sobre tudo com muita ou nenhuma proficiência — deliciava-se em contar que o romancista inglês Aldous Huxley (1894-1963) tinha por hábito ler a "Britânica": o alerta foi dado por alguns de seus amigos. Dependendo do tema da sua conversação, eles sabiam se, por aqueles dias, Huxley estava nos verbetes contidos nas letras "n" ou "k". Devia ser engraçado.

Mera erudição? Nem sempre e certamente não no caso de Huxley ou de outros criadores para os quais a erudição sempre fez parte de um projeto maior — justamente o que estava na raiz da intenção da "Enciclopédia". O grande romancista francês Gustave Flaubert (1821-1880) estudou durante anos os hábitos e costumes dos romanos e cartagineses. E não para papaguear informações desconhecidas aos comuns dos mortais a respeito dos deuses dominantes em Cartago ou em Roma, mas para escrever um romance histórico, "Salambô",  que, sem ser enfadonho, é todo um tratado eruditíssimo tanto sobre  os costumes e alimentação, quanto sobre o cotidiano dos povos mediterrâneos durante as guerras púnicas, que opuseram cartagineses contra romanos séculos antes de Cristo. Por aí a erudição teria razão de ser. Mas existem os eruditos comprovados, digamos "de carterinha", que ainda hoje surpreendem.

Quem quer que conhecesse Antônio Houaiss — autor, quem sabe, do melhor dicionário escrito até hoje em português — teria de concluir que se tratava de uma enciclopédia ambulante. O mesmo Paulo Francis, que era amigo do dicionarista, alardeava que Houaiss não passava de um homem erudito no mau sentido e talvez o pior escritor em língua portuguesa de todos os tempos. A acusação, não de todo inverídica, referia-se também à cultura verdadeiramente espantosa do dicionarista. De resto, Houaiss escrevia complicado realmente. Mas publicou, além de seu excelente dicionário, toda uma série de obras a que não deixou de acrescentar algumas considerações, no mínimo, surpreendentes. Perguntado certa vez quais os homens que mais admirava na história e que sinceramente invejava, seria de se esperar que Houaiss citasse os seus colegas de antanho, como os já mencionados enciclopedistas. Entretanto, nomeou explicitamente "Bach, Beethoven e Mozart" (?).  Sem embargo, um homem apenas erudito não consideraria senão os que lhe seriam iguais — os eruditos ou, no mínimo, os escritores. Já um humanista sempre pensaria diferente como foi com Houaiss.

No fundo, a questão afigura-se apenas essa: os enciclopedistas pretendiam nada menos que  reformar o mundo. Acreditavam no intelecto, no qual a razão teria sempre um lugar à parte — e justamente para o que estava na cabeça de Huxley — um admirável mundo novo. Os enciclopedistas chegaram, inclusive, a influenciar alguns monarcas da época. Frederico o Grande da Prússia (1740-1786) contratou Voltaire (1694-1778) como seu conselheiro. Evidentemente não deu certo e Voltaire por pouco não pagou por sua pretensão: sapiências principescas, em geral prescindem de livros e de seus autores. E aí vem a outra questão. Sócrates, Thomas Morus, Giordano Bruno e Gramsci, entre milhares de outros mártires, de todas as épocas, não foram mortos por serem eruditos, mas por acrescentarem à erudição o desejo humano de transformarem o mundo. O que, para todos os efeitos, nem sempre é compatível com o poder real, seja de um rei, de um presidente ou do ditador de ocasião.

 

 

 

 

março, 2007