GÉRICAULT, Théodore - French painter (b. 1791, Rouen, d. 1824, Paris)

The Raft of the Medusa - 1818-19

Oil on canvas, 491 x 716 cm

Musée du Louvre, Paris

 
  
                                                                     
  

 

É paradoxalmente estranho que o conjunto de obras satíricas de François Rabelais (1494-1553) que trata da história de dois comilões irrefragáveis, "Gargântua e Pantagruel", não inclua a antropofagia como um dos pratos de seus infindáveis cardápios sempre indigestos. A expressão "pantagruélico" nasceu do personagem Pantagruel e como sucedâneo de comilanças exageradas. Fernão Mendes Pinto, quase contemporâneo de Rabelais, conta nas suas memórias que tanto ele quanto seus companheiros de desgraças, não hesitaram em devorar dois africanos que tinham morrido de inanição numa jangada que vagava pelo mar da China, depois de um naufrágio. Admite-se que, se a isso for acrescentado o hábito dos indígenas americanos, recém descobertos pela Europa, de devorarem gente (como foi com o bispo Pero Sardinha nas costas do que é hoje Alagoas), o tema não seria tão estranho assim aos europeus do período renascentista. Por isso a surpresa de Rabelais não se referir à antropofagia.

Mas o tema sempre foi resgatado, não por ser tão infreqüente, mesmo na Europa. Goya (Francisco Goya y Lucientes)  que viveu na passagem do século XVIII para o XIX, pintou uma cena de canibalismo. Os personagens que são mostrados a se refestelar com pedaços de corpos humanos, não se parecem com índios. Estão nus — mas têm barba alourada e não se distinguem muito dos espanhóis contemporâneos do pintor.  Conjeturar que entre os espanhóis do século chamado "das Luzes" praticava-se o feio hábito de devorar gente, pode ser um exagero e a pintura quase sempre superlativa do grande gênio que foi Goya, nunca primou muito pelo convencional. Mas numa outra pintura que fez imenso sucesso na Europa, no século XIX, de autoria de Théodore Géricault intitulada "A Jangada do "Medusa" se não escancara qualquer gesto antropofágico, sugere o que foi muito comentado na época. Deu-se que houve o naufrágio de um navio chamado Medusa e que os marinheiros do barco erraram a esmo durante muito tempo pelo Mediterrâneo. Quando encontrados, alguns tinham naturalmente morrido — mas nunca houve um desmentido formal aos boatos de que os sobreviventes muito provavelmente praticaram o canibalismo.  Na época, por sinal, houve quem defendesse uma tese resolutamente maluca, de que a antropofagia viciava – quem  a experimentasse uma vez, não podia mais esquecê-la: seria supimpa. O tema é macabro e foi usado pela literatura de horror que igualmente vicejou na Europa, no século XIX. Só que nem sempre como um fato tirado da imaginação fértil de alguns escritores necrófilos. Sabe-se que quando os cruzados entraram pela primeira vez na Terra Santa, muitos deles praticaram conscienciosamente a antropofagia — e não por fome, para sobreviverem a uma súbita escassez de víveres, mas pura e simplesmente como uma ação terrorista. Ao, literalmente, matarem e devorarem criancinhas (recém nascidos, de preferência), os "Soldados de Cristo" empenharam-se sobretudo em deixar bem claro aos árabes que eram ferozes o suficiente para que as comunidades muçulmanas não ousassem qualquer resistência. A coisa chegou a tal ponto que o Papa teve de intervir. Sabe-se de uma bula pontifical em que se interditava  expressamente aos cristãos alimentarem-se de carne humana, fosse sob que pretexto fosse; ou seja, ainda que para "libertar a Terra Santa", conquistarem os lugares sagrados, para devolvê-los, em suma, à guarda da "religião do amor" — mesmo assim o papa proibia a gente cristã de comer gente. Não se sabe se os tais cruzados que inauguraram a prática, afinal, obedeceram ao Papa — pois guerra é guerra como se diz. Fica a suposição, porém, de que o interdito acabaria justificando outras tantas barbaridades: já que muitos índios latino-americanos eram antropófagos, por que é mesmo que espanhóis e portugueses os poupariam,  se tinham tantos maus hábitos, tantas usanças contra a natureza?

 

 

 

GOYA Y LUCIENTES, Francisco de

Spanish painter (b. 1746, Fuendetodos, d. 1828, Bordeaux)

Scène de martyre (Cannibales contenant des restes humains) - 1800

Oil on wood, 32,7 x 47 cm

coleção Musée de Beaux-Arts et d'Archéologie, Bensançon

 

 

 

Matar para comer? Parece ter sido essa a idéia que sempre esteva na origem do canibalismo, pintado de forma tão crua por Goya. Mas este é também o princípio da caça do qual Goya foi um aficionado juntamente com seu patrono, o rei Carlos IV, da Espanha. No caso do rei, tratava-se antes de tudo do  quase pantagruélico prazer de matar. Carlos IV, inclusive, proibia aos servidores da Corte de enterrarem os animais que ele abatia diariamente com a sua carabina. É que as carcaças atraíam um sem número de carniceiros e sua Majestade adorava matar urubus.

O tema, em síntese, é tão amplo que Oswald de Andrade resolveu incluí-lo no modernismo. Ao advogar uma antropofagia simbólica, os intelectuais brasileiros imitariam os índios no que também seria meramente simbólico no seu imaginário, já que, conforme os antropólogos, os indígenas brasileiros não comeriam carne humana por prazer, mas para adquirir as boas qualidades de seus possíveis inimigos. Assim também com as idéias — por isso a antropofagia simbólica. Nós consumiríamos os conceito, as reflexões as grandes idéias e as "descomeríamos" (o eufemismo foi criado por Ariano Suassuna no "Auto da Compadecida"), para que elas fertilizassem não só a terra, a nossa terra, mas também as nossas mentes.  Ao deglutirmos idéias criaríamos novos mundos, comeríamos novas concepções para criamos outras, num processo coerente e natural. Que incrementaria nossa criatividade.  Era esse o princípio antropofágico do modernismo  Oswald de Andrade não supunha, porém, que os fast food, os cheese burger e os hot dogs também culturais do mundo globalizado. acabassem não sendo deglutidos. Ou antes, que os antropófagos talvez não fossem os brasileiros, mas os detentores do poder no mundo. Seriam eles que nos comeriam e descomeriam, e não o contrário.

 

 

 

 

setembro, 2007