..........Desde que comecei a mergulhar nos enigmas propostos por Kafka, o que sempre me causou mais espanto em suas ficções — muito mais do que o esmagamento de um homem por um poder opressor e irresistível — é o modo como os seus personagens masculinos surgem destituídos de sexualidade, transmitindo uma idéia de castração, ou melhor, uma idéia de impotência absoluta, uma impotência que ultrapassa as angústias existenciais e metafísicas, uma impotência que impede o homem de manifestar aquele seu impulso mais primário, conduzindo-o a uma condição que seria um estado intermediário entre o ser humano e o ser animal. Enfim, é o ser humano se transformando em coisa e, no entanto, mantendo desperta (como que em vigília) a sua consciência sobre o mundo que o cerca, sobre os poderes que o oprimem, sobre a castração que o envolve.
..........E confundindo o criador com a criação — algo muito natural quando se trata do autor de A Metamorfose — a idéia de castração e impotência ressurge cada vez que vejo o seu rosto. Aliás, é uma situação paradoxal esta: quanto mais me é familiar o rosto ou a vida de Kafka, mais estranho ele se torna, e então eu percebo que sobre a vida de Kafka só é permitido saber o que o próprio escritor deixou registrado em cartas, manuscritos ou ficções, acabadas ou não. Ainda assim, a idéia de castração sempre se faz presente quando tenho diante de mim aqueles olhos calmos e donos de uma indecifrável ironia. Reforçando esta impressão há o medo do pai (supostamente o detentor do poder fálico), as tortuosas relações com as mulheres (sobretudo com Felice Bauer, uma relação que envolveu longas trocas de cartas, e depois o casamento marcado, cancelado, e depois novamente marcado e cancelado) e o próprio ambiente sombrio, ameaçador e gelado da cidade de Praga.
..........Nesse sentido, O Desaparecido ou Amerika (o primeiro romance escrito por Kafka, inacabado, como O Processo e O Castelo) é o que melhor reflete essa redução do homem a um estado cada vez mais inferior, cuja conseqüência final é o próprio desaparecimento (idéia presente no título original do livro, pois Kafka sempre se referiu ao manuscrito como "O Desaparecido", sendo "Amerika" o título dado por Max Brod quando da publicação do livro, após a morte de Kafka) deste homem numa terra estranha, onde é impossível adequar-se. E o primeiro passo nessa inexorável trajetória decrescente, é a castração do homem, é a impotência, é a negação de seu poder fálico.
..........Logo nos parágrafos iniciais do livro, quando o navio que traz Karl Rossmann entra no porto de Nova York, a Estátua da Liberdade aparece erguendo uma espada, e não a tradicional tocha. Parece não haver dúvida de que a espada, para além da alegorização de um poder opressor e irresistível, encerra aí um sentido fálico. Quanto a mim, a interpretação que faço da espada erguida pela Estátua da Liberdade é uma junção das duas idéias acima expostas — ela representa, sim, o poder opressor e irresistível que irá esmagar Karl Rossmann, mas esse poder só começa a ser sentido a partir do momento em que os oprimidos se vejam destituídos daquilo que lhes é mais primário e instintivo.
..........Em outras palavras: a espada erguida pela estátua da liberdade significaria a usurpação, é como se Karl Rossmann, ao entrar no porto de Nova York, tivesse todo o seu poder fálico roubado e transferido para aquela estátua impassível e ameaçadora. E isso não ocorre apenas com Karl, mas com toda a massa de pessoas amontoada naquele navio, dentre elas o foguista, visto por Karl, no início, como uma figura paterna, mas que, no decorrer do primeiro capítulo, vai se transformando numa espécie de criança chorona.
..........Olhando através desse prisma, vale lembrar que todos aqueles que humilham e oprimem Karl guardam uma superioridade física sobre ele. Eis aí Mack, filho de capitalistas e responsável por ensinar a Karl a técnica da equitação, sendo que Karl (aqui vale lembrar que Rossmann, em alemão, quer dizer homem-cavalo), durante as aulas, é tratado como se fosse o cavalo e não vê nisso razões para se sentir ofendido ou humilhado; Green, o capitalista cuja obesidade é descrita de forma grotesca e ameaçadora; Klara, também filha de capitalistas, que domina Karl numa luta corporal, estrangulando-o e ameaçando esbofeteá-lo até que Karl tivesse as bochechas inchadas e sentisse, caso fosse um homem de brios, vontade de morrer (depois se descobre que Klara é noiva de Mack, o que aumenta ainda mais a humilhação vivida pelo protagonista); e Brunelda, a prostituta gorda e também grotesca, para quem Karl trabalha como criado.
..........A mesma idéia de impotência física não aparece de maneira tão expressa nos livros posteriores de Kafka — mas ela está lá, implícita e latente, no homem que é metamorfoseado em barata, no homem que é processado e condenado sem jamais saber porque motivos foi processado e depois condenado, e no frenético vai-e-vem do homem que, por motivos obscuros, deseja entrar no castelo, sendo que o seu acesso ao castelo, também por motivos obscuros, é constantemente negado pela absurda e labiríntica burocracia imposta por um poder absurdo e labiríntico.
..........E voltando a confundir o criador com a criação, penso que é mesmo impossível saber o quanto da vida pessoal de Kafka está contida na castração vivida por Karl Rossmann e, de uma maneira mais sutil, nos seus demais personagens. Sei apenas que, durante o tempo que levei para ler O Desaparecido ou Amerika, sempre terminava as minhas noites olhando para o rosto de Kafka, fotografado na capa do livro. Lembrava-me então de tudo que já li ou ouvi falar sobre a sua vida pessoal (inclusive rumores sobre a existência de um filho jamais reconhecido), para depois esquecer tudo, de maneira proposital, e evocar o ensinado pelo John Ford: quando a lenda é maior que a realidade, imprima-se a lenda, mesmo que no caso de Kafka a lenda seja um enigma.
Daniel Francoy, 1979, estudante de Direito, vive em Ribeirão Preto-SP.
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