Duda Bandit na tarde dos pandas

"Descobri que é muito perigoso aplicar à conduta idéias literárias".

Adolfo Bioy Casares


I

 

Eu abro a guarda ainda... depois de tanta porrada eu ainda abro. A gente sente falta desse gosto de sangue, fica mordendo a mucosa da boca para sentir o sabor de carne viva... autofagia, o canibalismo possível.

Mas ela não quis me bater... Duda Bandit, o vira-latas da estepe, pensou que não ia ligar, hoje não ligo... Há muito deixei de considerar opiniões desfavoráveis à minha pessoa, quem tem ego apaixonado tem passe livre... dizem que sou um machista convicto, mas sou um machistazinho adorável... abro portas, mando flores, canto Nelson Gonçalves no ouvidinho... e adoro pagar contas, porra, qual o problema nisto tudo? O que me salva é minha virtude peculiar, regionalizada. De onde venho, coronelismo tardio, as pessoas negociavam olhando pra baixo e não assinavam papel, os vícios eram sanados na bala... eu tenho esse olhar pra baixo —  o que de forma alguma desabona meu orgulho.

Ela lia meus textos, mandava e-mails desancando o meu machismo e elogiando a minha vitalidade e impulsividade... eu ficava todo prosa. Pegou meu msn e duas tecladas depois nos encontramos em um bar estranho de Jardim da Penha, juro que sempre passei por aquela rua e não tinha reparado nele. Voltei depois, inúmeras vezes, na esperança sempre frustrada de encontrá-la no balcão bebendo seu Campari.

A gente falava sobre o mundo, as coisas, literatura, trabalho. Quando o papo caminhava em direção a nós mesmos tudo ficava subtendido nas entrelinhas. Até hoje nem imagino onde ela morava ou que veio fazer na minha vida. Pelo jeito de escrever, econômico, mas usando palavras amplificadas, eu deduzi que se tratava de uma escritora, possivelmente poeta (eles se entregam fácil). E era mesmo. Como ninguém bate ponto fazendo poesia, Wanusa era free-lance de várias ONG’s nas quais militava ou era simpatizante, dúzias de organizações ecológicas ou feministas pelo planeta. A idade eu chutei pela aparência e pela bagagem cultural, entre 27 e 30 anos. Usava óculos de aros grossos e pouco batom. Sempre começava um papo como se fosse abrir um seminário importante para tratar de estratégias para proteção dos pandas da China, bicho enigmático em sua vida. Coisa mais sem graça, eu pensava, proteger um bicho que vai sumir do planeta por falta de apetite sexual. Mandar uns coelhinhos pra lá em um programa de intercâmbio com os ursos me pareceu um caminho viável. Ela riu, nesse dia riu.

Era vegetariana e no nosso último encontro passou a criticar meu apetite por carne. Eu disse que um leão não teria remorsos em me devorar num almoço de domingo. Ela falou de necessidade, cadeia alimentar, crueldade, ausência de maldade, etc... Eu disse que concordava em parte, crueldade existia sempre, a única diferença é o sarcasmo, pois a gente mata o bicho e depois desenha a espécie feliz na embalagem sugerindo o consumo... os olhinhos castanhos dela sorriram, acho que maquinaram um novo postulado para a causa dos carnívoros éticos.

Mas nem tudo eram questões ambientais e feministas. Logo no primeiro encontro o vestidinho mal-intencionado, relativamente curto, justo na cintura, largo e esvoaçante nas coxas. Um laço prendia as alças no pescoço, era só puxar uma das pontas... e vi que ela estava desconfortável, que aquilo não era o tipo de roupa que costumava usar. Uma concessão em nome do Bandit? Adorei. Juro que pensei até em armação, tenho cultivado inimizades no meio acadêmico, na galera GLS e no mundo feminista. A possibilidade de trote não era paranóia. Essa galera usa métodos da máfia chinesa aperfeiçoados pela camorra. Ficou até mais excitante depois disso, sentia-me um cara digno da cama de Mata Hari... um privilegiado, eu era singular, filho dileto do outono: Wanusa, um presente da estação, me olhava com óculos de aros grossos e coxas morenas.

Revelei Wanusa como se despetalasse uma rosa... mas primeiro suprimi os espinhos, humanizei-me em direção a uma paz que só eu podia me dar, embora lançasse mão de amenidades presentes em seu sorriso, seu caráter e o som de suas palavras... penso que quase entrei em transe escutando ela falar sobre os guaxinins e seus hábitos extravagantes, nas misteriosas árvores que crescem na Amazônia e no woman power, um mundo sendo harmonizado pela feminilização das relações...

Mas quando entro em transe um olho fica aberto, concordava com tudo me utilizando de um sorriso tolerante que só eu sei fazer, elogiei os guaxinins e seus hábitos de higiene, citei uma árvore amazônica que ela até então desconhecia, e falei de Heliogabalo, o anarquista coroado que pirou os romanos colocando mulheres no senado, versão de Antonin Artaud.

Wanusa iluminou-se em um sorriso aprendido na lide com religiões orientais. Descobriu, enfim, um coração batendo no peito de Duda Bandit... eu não estava pra brincadeira aquele dia mesmo, se fosse preciso eu diria até que distribuía rosas no trabalho em oito de março — as flores acompanhadas de um pequeno panfleto de minha autoria explicando a origem da heróica data.

A tarde no motel foi especial, eu quis fazer com carinho, devagar... ela, apesar de preferir as trepadas selvagens (fazia sentido), topou e sincronizamos nossos corpos como se transássemos em um imenso bote king size solto no mar calmo... o ar preguiçoso passeando pelas narinas e se misturando aos gemidos e som da música mais psicodélica dos mutantes.

Pensei de repente no que minha vida poderia ter sido... no que poderia ser. É fácil apagar um passado, reescrever. Os historiadores fazem isso o tempo todo, cada fato é recontado em cada tempo, de acordo com interesses próprios de quem reconta nessa época... e eu? Por que não poderia também reinventar um passado?

Mas não ia reescrever nada nesse dia, trouxe minha mente de volta ao corpo usado por e para Wanusa, deixei de lado meu passadozinho imbecil e irrisório. Eu estava me divertindo e isso é tão raro que tenho que ir até o fim, preciso gastar todas as possibilidades de bem estar, quiçá felicidade. A entressafra desta cultura é longa e cheia de intempéries.


II

Wanusa sumiu uma semana. Eu não tinha seu telefone e por isso mandava e-mails que foram cruelmente ignorados. Ligou uma tarde, perguntou se eu queria vê-la... pode ser, respondi abafando na garganta algo como: só se for agora, mina. O mesmo bar em Jardim da Penha. Saímos depois, mas eu já não conseguia fingir tanto interesse na pesca predatória de baleias, numa associação para ajudar gatos desamparados e uma exposição fotográfica sobre a mulher trabalhadora...

Wanusa percebeu isso, mas ignorou as possibilidades de meu querer, não vislumbrou o infinito de meu desejo. Deu vontade de queimar meu escritos, livrar-me dos preconceitinhos babacas, enfim, tava disposto a sugar um espírito de barata, não ser nem contra nem a favor de nada, fugir de tudo quanto é tipo de polêmica, faria concessões absurdas para tê-la em meus braços. Eu estava dando silêncio e amor em troca de sua alma e corpo. O sexo foi bom nesse dia, aconteceu em minha cama. Levei Wanusa para meu mundo. Um erro.

 

III

 

Na terceira vez em que nos encontramos fizemos um sexo lascado, ruim... falamos (ela falava) depois sobre os direitos das mulheres na China, me recomendou o novo livro de Anchee Min. Disse também que ia receber o Tao. "China, não é lá que vivem os Pandas?", foi tudo que perguntei.


Dormimos e amanheci deitado de lado, sentindo um rosto macio e cabelos colados no suor de minhas costas... evitei até respirar para não perder essa ternura. Devo ter ficado muito tempo assim, minha cabeça deu muitas voltas em torno de coisas que não consigo esquecer... estava sereno apesar das lembranças, contei nos dedos as mulheres que me trouxeram esta serenidade e precisei de menos de uma mão nessa matemática insensata. Adormeci de novo e Wanusa foi embora, sem me acordar. Interfonei pro porteiro, um pouco pra saber que horas ela desceu, um pouco, quem sabe, pra ter certeza de sua existência... o aroma de mulher amanhecida, os vestígios de sexo na cama, a glande em leve ardência e até os encontros anteriores podiam ser produtos do devaneio de qualquer esquizofrênico de primeiro grau, um louco estagiário... bom, uma ligação para a portaria também.

 

IV

 

Na última vez foi isso que já falei, ela criticou meu apetite por carne. Estávamos no meu apartamento e ela começou a ler os títulos dos livros na estante, parou, retirou o Mulheres, de Bukowski, folheou e guardou; abriu um François Truffaut, O homem que amava as mulheres, versão em livro do filme. Pegou um Shopenhauer, A vontade de amar, caiu justo onde o velho dizia que "a injustiça é o defeito capital da mulher". Aí foi demais... Perguntou que graça eu via naqueles livros (?). A mesma que vejo em um bife mal passado, respondi.

 
Machista, ela atacou. Concordei, mas destaquei que eu era um machistazinho adorável, tentei abraçar, agarrei sua cintura, mas ela me repeliu e negou... negava, não, eu não era um machistazinho adorável, era só machista... Tentei perverter o conceito, desanquei a trajetória de Louise Michel na comuna, fiz apologia ao fim do sutiã, afirmando que adorava peitinhos libertos, e com isso faturei em cima de uma das páginas mais comoventes da briga da mulherada em duzentos anos. Mas não estava satisfeito ainda, eu precisava de um gran finale, disse que tinha que ter existido Chiquinha Gonzaga, Leila Diniz, Pagu e Rita Lee para hoje as meninas rebolarem no baile funk, rindo gostosamente ao serem chamadas de cachorras... foi letal. Ela preparou a mão, eu abri a guarda... e nada. Foi embora, bateu foi a porta. Maldita, ela sabia que seria pior assim... eu adorava Louise Michel, droga. No mais, na estante também tinha Márcia Denser, Hilda Hilst, Ana Cristina Cesar... até Safo tinha, porra. Sei lá, acho que não calculei o tamanho da queda e agora no chão eu procurava a minha "virtude regionalizada".


Eu mandei uma mensagem offline... uma semana e nada. Abria o msn e ficava feito idiota esperando ela entrar. Deve ter me bloqueado, a infeliz. Saía desolado da frente do computador procurando bebida e o seu sorriso engajado nas bocas de garçonetes. Deixei de freqüentar até as putinhas por um tempo.


E foi isso. Wanusa sumiu. Deve ter recebido o Tao e caiu fora, tá lá na China, bebendo Campari falso, pixando muros contra a opressão feminina e a favor dos pandas, por que não? Os pandas, de uma coisa serviu tudo isso: acho que hoje compreendo melhor os pandas e suas idiossincrasias.






 

 

 

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Diana no Natal

 

 

Diana, eu dizia que ia chamar ela só de Diana... Roberta topou e morreu de rir, perguntou se era uma antiga namorada, mas não era e ficou tudo bem, a luz acesa naquele motelzinho de quinta categoria e a mina me dizendo o tempo todo que o importante é que era limpinho, tirou a roupa devagar enquanto falava, ficou de sutiã meia-taça preto e calcinha de algodão branca estampada com ursinhos, ela notou meu olhar abobalhado para a calcinha, colocou um risinho no rostinho iluminado e se desculpou, disse que era uma espécie de renúncia à sensualidade em nome do conforto, eu adorei aquilo e perguntei por que eu não tinha visto ela por lá ainda, respondeu que era meio invisível de vez em quando, mas que hoje ela queria ser vista por mim, que conhecia minha moto e que meu nome já começava a circular entre as meninas de lá... 


Depois deitou-se do meu lado, cobrou adiantado e disse que eu ficava bem de preto, falava e fazia cafuné na minha barba, eu quase dormi, mas levantei, tirei a grana da carteira, paguei e fui ao banheiro tomar uma ducha, o chuveiro ligado e ela na porta perguntando se podia entrar, podia, lógico, veio com a toalha e um robe no braço, eu tinha esquecido, me deu um sabonetinho, sentou no vaso e ficou me olhando, não queria entrar e molhar o cabelo, reclamou que tinha queimado o solado da sandália no escapamento da moto, eu disse que ia dar outra pra ela que sorriu de novo agradecida, presente de Natal com um cartãozinho e tudo, sou capaz de coisas assim. 


Ela perguntou como ia ser o Natal na minha casa e sem esperar pela resposta disse que ia pra casa da mãe
em Minas Gerais, outra de Minas, pensei, e respondi quando ela parou de falar que eu não era muito ligado em Natal não, nenhuma crítica batida ao consumismo desenfreado, mas àquelas panaquicezinhas estilo árvore e Papai Noel. Ela protestou, quis saber o que eu tinha contra, eu não tinha lá motivos muito fortes, mas tentei esboçar alguma coisa, disse que árvore de Natal me lembrava o marido da rainha Vitória, um otário chamado Albert que tudo que fez em quarenta anos de vida foi popularizar o uso de árvores de Natal pela Europa, depois falei que Papai Noel tinha sido criado por um chargista alemão radicado nos Estados Unidos e depois plagiado e difundido pela Coca-Cola em campanhas publicitárias. Assim, nessa época do ano, eu sempre imaginava o príncipe Albert embaixo de um pinheirinho enfeitado tomando Coca-Cola e dando um arroto descomunal, tudo devidamente aplaudido pela rainha. Aristocracia é um negócio chato pra caralho, além de patético, temos hoje o Charles, descendente do Albert, que me dá razão.

 
Ela não concordou comigo, disse que as árvores lembravam a infância dela e outras coisas bonitas, eu queria foder e deixei as polêmicas natalinas de lado. Saí do banho e prometi procurar um analista, ela disse que eu era doido mesmo e afirmou com um beijo no meu ombro que adorava gente doida.

 
Ela me vestiu no robe e me jogou na cama, oba, mais uma que sabe o que quer, eu me deixei levar, ela entrou com uma chupada maravilhosa, coisa de profissional, eu olhava aquilo e pensava que era bacana saber quanto custam coisas assim, pois as namoradas costumam mandar contas lacradas cheias de exigências absurdas. Mas tive uma recaída recorrente, falei que tinha inveja do namorado dela por receber uma língua daquelas sem a camisinha, ela riu sem tirar o pau da boca, eu vi poesia nisto. Eu vejo poesia sempre em coisas assim, por isso prescindo de ler a maioria dos poetas.

 
O resto foi convencional, um belo rebolado, as gemidas falsas, o gozo canastrão e um sujeito peludo embaixo pensando em fumar um cigarro e fingindo acreditar em tudo, cotidiano... ela saiu de cima, acendeu o cigarro e fumamos juntos, ela deitada de costas com a cabeça apoiada no meu peito, a gente se via do espelho no teto, era bacana o contraste de minha pele branca com a sua carne morena, eu gostei do rosto dela, tinha graça e ao mesmo tempo dignidade. Eu disse isso e ela acariciou minha mão, falou depois que tava adorando ficar ali comigo, eu me calei... o ano morria, "últimos suspiros", ela disse isso. Eu falei que 2006 foi um ano de merda, eu tinha mergulhado mais fundo no poço seco, já tava cavando a terra enquanto as unhas sangravam, mas falei isso rindo, um sintoma da gravidade das coisas. Ela se virou para mim e me deu um selo na boca, falou que ia fazer curativos nas minhas unhas e que tinha um diploma técnico de enfermagem, eu prometi ligar se precisasse. 


Levantamos, nos vestimos, pilotei a moto pela orla da praia devagar, ela grudada em mim, calados, as luzes natalinas na fachada dos prédios refletiam no painel e em mim, o negrume da noite ficava menos nítido, as luzes piscavam. Eu me sentia bem no escuro e patético na luz, deixei Diana em uma praça perto do que ela disse ser a casa dela, me deu um abraço e outro selo, me fez gravar o telefone e me cobrou a sandália. Eu tirei o dinheiro para pagar o calçado, mas ela disse que preferia o presente, com cartão e tudo, eu sabia onde levar. 


Fui embora lento, pensando nas luzes, cheguei em casa, abri uma Coca e enquanto bebia lembrei que não tinha perguntado o número do pé dela. Não ia ter outro jeito, eu ia ter que ligar e perguntar.











(imagens ©mark andersen)

 

 

 

 

Duda Bandit é pseudônimo de Saulo Ribeiro (Vitória-ES, 1977), um cara que escreve contos para se divertir, espantar seus fantasmas e purgar suas paixões. Formado em História, tem a absoluta noção da fugacidade das coisas, por isso procura viver a vertigem possível em sua Ilha do Cão: Vitória, Espírito Santo. Possui um livro pronto e ainda não editado, HH, uma novelinha escorada. Escreve o blogue Duda Bandit.