Fim do mês e uma edição que ainda não foi ao ar. A equipe de Germina atravessa o dia nervosamente, como se fosse segunda-feira. Mas é domingo, de uma primavera úmida e fria, e o tec-tec-tec taquicárdico do teclado forma um duo desconcertante com o som puro, macio e quase sem vibrato do trompete de Miles Davis.

 

Na copa, um pequeno intervalo para uma taça de vinho e um pouco de queijo — porque, afinal, ninguém é de ferro — e logo os olhos viciados buscam em torno o que ler. Ao alcance, apenas o prosaico jornalzinho da associação de amigos do bairro. Efemérides de outubro. Graciliano Ramos nasceu no dia 27 do ano de 1892. Vladimir Herzog foi morto há trinta anos, completos no dia 25.

 

A lembrança das pessoas, de suas experiências e a sua presença, que se estende até hoje, despertam sentimentos ambivalentes e evocam Eliot, o pantempo que ele tão bem definiu nos três versos iniciais do primeiro dos seus Quatro Quartetos: "O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado". E ainda nos versos da parte final do poema:  "Morremos com os que morrem: / Vê, eles partem e nós vamos com eles. / Nascemos com os mortos: / Vê: eles regressam e trazem-nos com eles". É, Eliot, nascer e morrer se confundem.

 

Mas é hora de voltar ao trabalho. Antes, porém, ergue-se a taça e se faz um brinde: Graça e Vlado, esta edição é dedicada a vocês e, em celebração à sua memória, Germina reafirma o compromisso de fazer a parte que lhe cabe, para que as palavras cumpram o seu destino. O que vocês dois fizeram tão bem.

 

 

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer". Graciliano Ramos

 
 

outubro, 2005