Paisagem vista do avião

 

Talvez seja a ilha de Antônio Vaz junto ao porto

(e seu contorno holandês de jardim bem cuidado).

Quem sabe? e como saber se o que traça um limite

— entre o sentido  e aquilo apenas adivinhado —

termina por se colar inteiro ao nosso corpo?

escuta um pouco a voz que ouço quando viajo:

"quando de avião sobrevoares o Recife,

lembra de mim; e quando avistares tu os rios

lembra de mim; quando voares sobre os recifes..."

escuto sempre essa voz, e ainda lá do alto

— quando ainda de longe avisto a linha de espuma

do mar a que roubam esta cidade imaginada,

mais além ainda os dois rios serpenteantes

entre prédios e mangueiras escorrendo lentos —

penso no Cais que avistava sem saber que um dia

refletido no rio veria o meu semblante.

"Os rios limitam a ilha de Antônio Vaz

e tu, aonde vais? Vem pra mim, vem pra mim, vem..."

Vejo esse Recife como se visse um amante

enfim reencontrado.

 

 

 

 

 

 

Mar da China

 

Por sobre as ondas da China

onde se inscrevem palavras

todo o alfabeto navega

só pra você e pra mim

no oceano amarelo

— puro caminho de água —

tudo é papel e nanquim.

 

Da China toda a beleza

(não fosse o mar, que seria?)

passa ao Japão das cerejas:

a porcelana e a seda

as invenções e a arte

(que norte enfim haveria

Não fossem bússola e letra?)

 

 

 

 

 

 

Mil noites e uma noite

 

Noites e noites e noites

lia a menina no livro

sem saber que em outras noites

ela estaria no livro

 

era inocente a menina

nem sabia do artifício

nem sabia do fascínio

nem sabia do perigo

 

que se escondiam nas páginas

daquele livro infinito

como podia a menina

saber sem fim o seu livro?

 

 

 

 

 

 

Curva de San Martino

 

Para que a pressa

se a vida inteira se tece de acasos?

chove sobre as ruínas do castelo

como outrora terá chovido

sobre as pedras recém-erguidas

para que a pressa

se apenas lento 

                              lento 

                                              lento

o cinzel do tempo

nivela e repara?

À minha revelia

todo ponto é feito e desfeito:

sou um detalhe que passa

assim como — vista do trem —

toda a paisagem.

 

Como arrancar das pedras

a verdade que encarnam?

tudo agora é anódino e pálido

(até mesmo o pálio

no centro da praça

que de graça se oferece

a nossos olhos desarmados).

Onde o esplendor medieval

que colorimos de bandeiras e de cavalos?

levianamente

pisamos as pedras há séculos dispostas

e nosso coração nem sabe

dos suspiros e das noites

nem sabe da beleza

nem sabe.

 

 

 

 

 

 

Felicidade, o que é?

 

É essa  sombra que me passeia

essa possibilidade

                           de ser

esse ser não sendo

 

alforje quase cheio

(menos que isso. Menos.)

 

nuvem oblíqua

em um céu de papel e tule

 

é essa consciência, talvez, de incompletude

ou da vida,  reticente e vaga

 

é esse fio de navalha em que me equilibro

                                               sem asa que me suspenda

                                                                          ou mão que me segure

 

é essa trama em ouro e cobre

                                      que na solidão do quarto se urde.

 

 

 

 

 

 

Invenção

 

Para que mais do que já temos?

 

nossas roupagens humanas

       nossa fragilidade

                       o areal que atravessamos

                               nossos parcos segredos:

 

tudo é a vida que vivemos

deveria ser suficiente.

 

Para que inventarmos

o Amor e seu desassossego?

 

 

 

 

 

 

 

PEGA O VERSO E SOLTA A RIMA

PEGA A RIMA E SOLTA O VERSO

DENTRO DA RIMA A MENINA

DENTRO DO VERSO O UNIVERSO

 

De palavras faço um jogo

que se vira na canção

palavras em minha mão

troco tudo o tempo todo

o universo é muito pouco

cabe todo em minha língua

muito viva essa menina

quando canta se atravessa

troca tudo pois tem pressa

PEGA O VERSO E SOLTA A RIMA.

 

Bem depressa o jogo inverto

gira  todo o pensamento

muda o jogo num momento

volta tudo pro começo

viro o canto pelo avesso

torno tudo tão diverso

digo um verso e seu reverso

mas a voz não desafina

muito louca essa menina

PEGA A RIMA E SOLTA O VERSO.

 

Como se faz a canção?

nunca os tenho ao mesmo tempo

pois o verso se sustento

a rima foge da mão.

Não se resolve a questão

o jogo assim não termina

não sei se verso ou se rima

sei que se dentro do verso

cabe todo esse universo

DENTRO DA RIMA A MENINA.

 

Entre o universo e a menina

a canção  já nasce pronta

a menina faz de conta

que esqueceu como termina

só para inventar a rima

ou desinventar o verso.

Desinvento e não converso.

Mas é só de brincadeira

se na rima estou inteira

DENTRO DO VERSO O UNIVERSO.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Inversão

 

Era chegada a vez do Homem

homem e mulher, deles chegara a vez.

Onde o Paraíso

               — esta maçã —

no melhor pedaço, arrancada aos dentes?

        era tudo agora pelo avesso

        e viram como a vida é vã

                                        (é sempre vã)

        e que tudo tinha fim

                                        (como começo).

 

(Fosse um sábado talvez?)

Alguém sentenciou:

        Não mais multiplicai-vos

        e que não haja mais ódio sobre a terra

        nem amor.

        Dispersai-vos

                        dispersai-vos

        sem todavia esquecer a minha imagem!

 

Restavam, porém, os bichos

e o mesmo alguém falou:

        Não mais seres vivos

                        — basta com tudo isso! —

        não mais voem aves por sobre a terra

        nem haja mais serpentes rastejantes

                                                segundo sua espécie.

        Não mais animais domésticos

                                                nem feras

              de olhar faiscante.

 

Alguém achou que isso era bom

e como tudo mesmo fora já confundido

e já não havia precisão

de lua

       sol

                e estrelas

       — a governar luz e trevas —

com um gesto

todos os astros foram abolidos

                                       eternamente.

Aí cessou a erva verdejante

e não houve mais árvores

nem frutos com sua semente,

                                        nem flor.

E as águas tornaram a mergulhar nas águas

não mais houve  mares

                                        — nem lágrimas —

nem terra  de continente.

 

Desfez-se enfim o firmamento

e  houve a escuridão

                       — esse apocalipse —

manhãs e noites em confusão.

 

LUX DELENDA EST, disse por fim

                                      e só aí, então,

                                              esse alguém descansou.

 

 

 

 

 

 

 

No espelho I

 

Sombra fugaz num túnel sem fim

o tempo passa despercebido

passa de mim a outro espelho

eu defronte de outro (eu mesmo?)

um espelho no espelho no espelho

somos nada ao infinito das vezes.

Descubro um Narciso de repente

em mim. Debruçado sobre mim

me vejo mil vezes repetido:

o mundo é só um túnel de vidro.

Mas que imagem vale esse vazio

sem rosto quebrando a solidão

que corta meu corpo como um rio

sem nunca alcançar meu coração?

 

 

 

 

 

 

No espelho II

 

Eu te acendo

e me vejo:

sonhos de infinito

esse jeito tosco

meu andar comprido

meu olhar tão fosco

o amor perdido

— não vivi de todo.

 

Perdi minha ambição

(lembrança antiga)

já não brinco de poemas

algo se desfez

perdi — razão da vida —

o meu canto.

Já não me comovem sonhos

nem sonhos há que me movam.

Sobra a noite

e  em teu vidro — aceso —

o meu espanto.

 

 

 

 

 

 

Homo Ludens

 

Lúdico animal o homem

e esse ludismo o transforma

em carta marcada embora

ele nunca saiba a hora

certa xequemate (o rei

morreu? outro rei é posto)

nada se mostra em seu rosto

que não esse jogo vário

de mil nomes — estuário

de todos os seus desejos.

Que mar, que mar os espera?

Não há. O que existe é mera

ilusão — regra do jogo:

pensa-se tirar a sorte

porém morre-se no fogo.

 

 

 

 

Dúvidas

 

Deve-se matar o Amor?

atear-lhe fogo?

Arrancá-lo da árvore

— fruto ainda verde —

antes que despenque

inevitável?

 

É o Amor absoluto

ou  relativo?

há  um Amor real

e outro não?

ou tudo é Amor

e tudo igual?

 

 

 

 

 

 

Poeminha de ocasião

é chá ou sachet
sachet ou é chá?
será de beber
ou de perfumar?

vai ver é um filtro
de amor-perdição
se bebo, na certa
terei salvação

me escreve depressa
dizendo o que são
os doze saquinhos
aqui no surrão

é chá ou perfume
bebida ou tesão?
me escreve depressa
dizendo o que são

navego na dúvida
atroz da questão:
vai ver, as veredas

do grande sertão.

 

 

 

 

 

 

Não Escute

 

Não escute meu choro

quieto:

eu sou um deserto

e preciso chorar

 

Não escute meu amor

fugidio:

eu sou um rio

e preciso passar

 

Não escute meu sorriso

constante:

eu sou um instante

e preciso durar

 

 

 

(imagem ©touchstonesart.com)

Elizabeth Hazin (Recife-PE, 1951). Publicou Poesias (1974), Verso e reverso (1980), Casa de vidro (1982), Arco-íris (1983), Espelho meu (1985), Martu (1987) e O arqueiro e a lua (1994). Em 2006, a Vieira & Lent reeditou uma segunda edição — revista e ampliada — de  Martu, livro vencedor do Prêmio Rio de Literatura (1986). No prelo (7Letras), seu mais novo livro, escrito a quatro mãos com Davino Sena: Lêgo & Davinovich. Publicou poemas em antologias e revistas nacionais e estrangeiras. Em 1993, participou do Festival Internacional de Poesia, em Copenhagen, representando o Brasil, ao lado de José Paulo Paes, Sebastião Uchoa Leite e Haroldo de Campos. Já ensinou nas universidades federais de Pernambuco e Bahia. Atualmente, é professora de Literatura Brasileira na UnB - Universidade de Brasília.