A última ceia
 
Há regras à mesa
como em um brinquedo
de quebra-cabeça.
 
/ E eu não entendo
os dispostos à esquerda
 
dos pais.
 
Restos do pequeno
que sentavam ao meio
 
da mesa (como prato
que se enche
e procura lugar entre
as pessoas). /
 
Já não me encaixo
depois que aprendi
a olhar de lado
e sair por baixo.
 
 
 
 
 
Desistência
 
Como à cama há pouco tempo
nos olhávamos em silêncio
hoje, nossos ossos, esqueletos
encaram-se em paralelos.
 
Comungados da mesma hóstia
repartida e azeda / dois exércitos
negros, iguais, porém divididos
por um mesmo tabuleiro /
 
: o ódio
 
Encarnando-se por este alimento
toda parte de um corpo
tanta carne sobre ossos
 
que é a vida quem nos indaga:
ainda haverá sangue?
 
/ a tristeza é que
na vida não se pode
como no jogo
 
o roque. /
 
 
 
 
 
Deus Ex-Machina
 
            Para Rogério Fernandes
 
Pouco me importa
que a chuva me molhe
se estou à calçada.
 
Mas se estou à calçada
 
(a um passo deste fluxo,
 que me separa do outro
 lado, dessa enxurrada
 que é de lama, mistura
 de água e desta gente
 
 de barro)
 
é por que eu não misturo.
 
E, se por descuido,
um Deus ex machina,
por simples desvio
 
do buraco e da lombada
alterar meu destino,
eu sigo em frente, parado.
 
Pois ainda que grite
: fiho-da-puta!
ao súdito sem culpa
 
nada secará a água
que
não veio da chuva.
 
 
 
 
 
Candelabro
 
 
That sad answer, "Never — never more".
Edgar Allan Poe
 
Já a primeira vez que foi a um
cemitério a mãe cobriu seus
olhos que choravam e sussurou:
 
— Nunca acenda velas em casa,
que os espíritos acostumam
e não raro nos acompanham —
 
Nunca mais acendeu
velas em casa, tinha era
medo dos espíritos.
 
Teceu-lhe a vida muitos passados,
outras passagens ao cemitério, das
últimas vezes já as trazia roubadas.
 
Nunca quis acender velas em casa,
tinha era medo dos espíritos. Teve
depois, muitos, muitos anos depois
medo da solidão. E acenderia estes
presentes: a gift to the ghosts, pois
os espíritos acostumam e, não raro,
 
nos acompanham.
 
 
 
 
 
Ao escuro
 
Aquele homem batera
todo dia à minha casa
sem nunca encontrar:
 
— nada — / da janela
                 do sobrado
                 meus olhos
                 de soslaio
 
poderiam ir ao fundo
da própria ameaça,
 
salvá-los.
 
(meus brinquedos não
eram tão velhos para
seguir em sua viagem
 
sozinho)
 
Mas não iam ao fundo
paravam à margem
chapinhavam o medo
que nadará o homem
que nada a criança.
 
(Tornando-se homem
planeja a vingança
um ataque à ameaça) /
 
Aquele velho baterá
todo dia à minha casa,
e só encontrará nada.
 
E dizem que
não vejo que o velho
passa fome:
 
O homem do saco
leva hoje
desaforo para casa.
 
 
 
 
 
Ovo
 
A manhã. A solidão. A fome.
O ovo.
 
A tarde. A tristeza. A fome.
O ovo.
 
A noite. A dor. A fome.
O ovo.
 
Os dias todos. A fome.
O ovo.
 
Os anos voam. A saudade. A fome.
O ovo.
 
As bodas de ouro. A despedida. A fome.
O ovo.
 
A velhice. A morte que chega,
Oferecendo um último banquete.
Peço ovo.
 
Se pudesse faria tudo de novo.
Como ler de trás para frente — ovo.

 

©dietmar busse
 

 

Embrulho
 
 
"Se devíamos chorar quando os palhaços começam a folia,
Se devíamos pinotear quando os músicos se põem a tocar,
O tempo nada dirá mais eu o preveni".

W. H. Auden
 
na festa
 
esgar de assopros
incineram
os fogos.
 
apagado
sorrio
(de lado)
 
fria a vela
 
o desejo retorna ao estado
 
de espera.
 
Eu espero.
 
Eu estou de parabéns.
 
 
 
 
 
IIdéia de família
 
Não herdei de meu pai,
as neuroses de família.
 
Mas via na colher de pau,
à espera do vinho
que toda noite ele bebia,
o pouco que seria.
 
Era mais que uma colher,
sua primeira função foi ser
palmatória para meu avô.
 
Meu pai achava
que assim beberia
um pouco de suas mãos.
 
Para mim a colher voltara,
 
como castigo.
 
Quando meu pai morreu,
agarrado à colher de pau,
não deixou o seu sangue.
 
Já fora tarde,
e tudo aquilo tornara-se
 
vinagre.
 
 
 
 
 
Nunca Entendi
 
eu nunca entendi
sempre fora atéia
e pediu que lá fora
 
atrás do rio
meu pai construísse uma capela e
um oratório
 
nunca fora santa, mas meu pai construiu
 
e as frestas das cortinas
ejaculavam sol e
silêncio
 
eu nunca entendi
sempre fora atéia
 
e os santos eram seus
espetáculo e platéia.
 
 
 
 
 
Foi Presente
 
 
            Para Lílian Aquino
 
Isso fora antes
de meu filho morrer
e antes mesmo
 
da barriga
ou
antes ainda.
 
Naquela época acreditava
em cegonha e no amor
e disseram-me, é presente
 
embrulhe:
 
na barriga, no útero
oito meses apressados
pelo chá das folhas
 
verdes
da
urtiga.
 
Cheguei mesmo a cantá-lo
como sendo uma cantiga
mas isso depois de noites
e noites rezando um terço
 
— Sobre o berço
   um travesseiro —
 
Até depois eu mesma
disse quando
desta sua morte triste
 
:
 
embrulhe
foi
presente.
 
 
 
 
 
Outro Extremo
 
O vizinho mudou de lugar
a caixa do correio,
como se mudam cardumes
de peixes no meio
 
do mar.
 
/ quando há pesca
  fora de época /
 
Conto isso porque o garoto
nunca mais fisgou, como
se contorcem as minhocas,
pelas frestas do portão,
 
cartas de amor, numa primeira
literatura, nem mesmo a conta
 
da água.
 
/ Depois pensaria
  que se cortasse os dedos
  e os desse de isca
  aos peixes (os segredos
  em mãos que não sabiam
  escrever) enviaria cartas
 
  a quem nunca mais
 
  o escreveu. /
 
 
 
 
 
Elipse
 
Um tipo
medo típico
irônico/erótico:
 
como o homem
que propõe
à sua
mulher assistir nua
a um filme erótico
e depois se vira na
cama.
 
/ A noite com ciúmes, a noite
  e um vazio /
 
Os chinelos se arrastam pelo corredor.
 
Numa noite
pálida, a geladeira
com o leite
azedo
 
Outros quatro ou cinco
medos ou sonhos de menino
 
— na geladeira —
 
Mas neste tempo a boca
ensangüentada de
chocolate, apenas a toca
de palavras bobas,
inocentes, não o
instrumento do beijo ou
da dúvida (— Mas? Por que? Ou?
Onde? Como?)
 
O filho chora no quarto — se ouve
da cozinha — se chega no quarto
o filho corre para a geladeira, vai
 
crescer também.
 
 
 
 
 
Festim
 
Jogou copos contra
paredes
 
Mudou de letra com
caligrafia e sessões
terapêuticas, dando-
se firmeza às mãos
 
Rabiscou espelhos
não sendo ele
a própria letra.
 
Lençóis amassados e
marcas de unhas
nas costas.
 
Cheiro de cigarros
embebido suor
e incenso.
 
— os poucos amigos,
dispersos,
 
juravam que vivia
em festa. —
 
 
 
 
(Poemas do livro Outro dia de folia, inédito)
 

 

Eduardo Lacerda. Poeta, graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. Editor da Revista Literária "Metamorfose" e do Jornal de Poesia "O Casulo", atualmente, trabalha como assistente de produção cultural na Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura.