Leão Lírico

 

De uma porta sairá o leão-

passado e presente unir-se-ão.

 

Quem for nascido sob este signo

trará o cetro à mão.

 

Este livro não será lido nem escrito,

será intuído pela graça do leão lírico.

 

Todos os homens são da mesma cepa

e, na terra, unir-se-ão

todos que trouxerem a marca do leão.

 

Mares e estrelas transmudar-se-ão,

Forma e leveza não mais terão -

este é o livro que o leão trará à mão.

 

Este livro não será lido nem escrito,

será intuído pela graça do leão lírico.

 

Povos em fome jamais se unirão

enquanto não reconherem o lírico

       leão

que virá - não mais para remissão

 

 

 

 

Ao que lê

 

Não sei que argumento presencio

nem o que tange só a margem.

Sei que em nada insisto

senão em severo alarde.

 

É que grito pela vida

que me toca e arde.

E se tiveres um tempo,

convide-me quando jantares.

Estarei contigo, presença infinita.

 

Confio no teu elo,

na tua esfera,

no teu conflito.

 

 

 

 

Força de Deus

 

Nenhum mal entrará em minha casa.

Se entrar, terá o dorso lanhado

pelo fio de minha espada.

Por muita luta por mim perpetrada,

por ele engendrada,

não sem medo rodeada,

em Deus confio,

não tenho nada.

Quando tudo se tiver dado,

a calma se restabelecerá.

Porque terei ainda ao meu lado

a fé a que confio minha casa,

e só dormirei quando estiver deitada.

 

 

 

 

Apartamento no Catete em dia

de guerra e chuva

 

Mandaram fechar a rua.

Lá de fora, ouço os berros.

Enquanto verto versos,

casas e crianças

olham-me e escapam

à gangorra macabra,

que do outro lado as crava,

as sustem respingadas

da lama e do céu que nos une

pelo modo com que deságua.

 

 

 

 

Carta

 

Meu caro amigo,

estou cansada de tentar

fazer o correto;

tudo me desalinha.

Sigo, decerto,

sem a menor noção

do que é certo;

vou bem.

 

 

 

 

Estrelas

 

Estrelas são conchas que escondem

       mares.

Quando amanhece, as águas as reco-

       lhem.

E nós as recolhemos quando peque-

       nos.

Alguns mantêm o costume.

Os mesmos que gostam de olhar as

       estrelas

e nem notam que faltam algumas -

aquelas que eles possuem

em suas caixas ou potes de maionese.

Estes, os colecionadores, são os

       mesmos

que antes de dormir pensam nos

       amores,

nos sabores, nas pessoas.

Estes, meus senhores, estão à nossa

       procura.

 

 

 

 

Que

 

Qual candura removeu seu sofrimento?

Que esperança devolveu

muito tenro o seu sorriso?

Que força a sustém?

Não, não me responda.

Deixe-me quieta, quase solitária.

Pretendo dar meus próprios passos,

para que não reste

dívida alguma nestes versos.

 
 
 

 

 

 

 

 

 
 
 

Estamos aqui

 

Onde estão os silêncios que eu deixei aqui faz

      tempo;

onde está o gargalhar das crianças, que eu ouvi

      dizer;

e o gato negro que assistia a tudo indiferente;

meu avô e seu terno largo, os óculos, o chapéu e

      seu guarda-chuva

de  funcionário público?

Aqui. Estamos todos aqui.

 

 

 

 

Vontade de ser porta

 

trago dentro a vontade de porta

que não entre nem saia

ser local de passar

perder e reencontrar

partida e volta

selar as costas

a frente mirando

o rígido do silêncio

porta adentro.

 

 

 

 

O lobo

 

Quando o lobo se escondeu

Por trás da fornalha

Cinzento se mostrava em neve fria

O pelo contornava os olhos fitos

E em mim jorrava

Uma culpa incontrolável

 

À antecipação de ser devorada,

Rápida, sem ser vista

Ansiei por estar noutra vida

E o lobo olha-me

Reto, nenhum pêlo move

Até que já não deixa de mostrar-me os

        dentes

Caído sobre mim agora

As presas estraçalham-me o rosto

Meus membros são seu osso

E, num último hálito, inspiro

O ar quente e tranqüilizante do seu

         focinho.

 

 

 

 

O mundo já acabou

 

O mundo já acabou

Você não vê?

Somos os sobreviventes.

Olhe como tudo vai alheio aos nossos olhos.

 

 

 

 

O silêncio

 

O silêncio é gelo, pedra branca,

parede cinza, companheiro.

A guimba num cinzeiro

não é mais que um quarto vazio

uma voz que não é palavra

é sincero desamparo, a vida

conhecida sem mistério ou alarde.

 

 

 

 

Banco dianteiro

 

O carro do meu avô era mais antigo

Que o tempo desta lembrança.

E nem tanto que fizesse do carro uma geringonça

Ainda existiam muitos daquele jeito,

O banco da frente, todo inteiro.

E eu ia com eles

Meu avô de um lado

Meu pai do outro

E deveria caber ainda minha prima

Que era sempre a mais pequenina

Cabia em qualquer cantinho

E sempre sorria.

E nós íamos por aquele caminho

Quase vindo.

 

 

 

 

O raio das horas

 

Gritos e latidos, relatos inscritos

na tarde sem sobressalto.

Abrem-se janelas, rogam a Deus,

receio dos homens em luta serena.

 

Em algum recanto, longe do aquário

esbravejam venenos, interesses novos

renascem, não tão novos,

por um largo espaço ainda é tarde.

 

As chaleiras e os bules exalam

o morno da boa vontade

o sino também se dobra à vontade

da noite e das estrelas que não tardam

a espionagem da cidade

nos piscas-piscas dos seus olhos, flashs

que gravam mortes, assaltos

e deixam para a tarde os amores,

os sorrisos e os calores

porque a praça está deserta.

 

Um e outro homem, uma mulher

passeiam seus cães,

os namorados se escondem nos motéis.

Os bêbados perambulam.

Os mendigos não dormem nos bancos,

estão acordados pela noite

e escorrem por longo espaço

até o sol espargir seus raios

tirando o sono dos pássaros.
 
 
(imagens ©anajanka)

 

Elaine Pauvolid (Rio de Janeiro-RJ, 1970). Em 1998, estreou como poeta com Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela... (Imprimatur/7 Letras). Seu segundo livro, Trago (edição artesanal da autora, 2002), com prefácio de Gerardo Mello Mourão, foi lançado no evento ConVerso no Café, coordenado pelo grupo Poesia Simplesmente, no Café do Teatro Glacio Gil. Em 2003, juntamente com os poetas Márcio Catunda, Ricardo Alfaya, Tanussi Cardoso e Thereza Christina Rocque da Motta, lançou o livro Rios, pela Ibis Libris. Em 2007, publicou Leão Lírico (edição da autora). Escreve resenhas literárias desde 1999, com trabalhos publicados em diversos jornais do Rio de Janeiro, como o Globo, no suplemento Prosa & Verso. Foi convidada pelo poeta Eduardo Belloccio a participar na categoria de convidada especial do II Encontro de Poetas Latino-americanos, em 2006, em Vila Maria, Córdoba, Argentina. É editora da Revista Aliás e mantém o blogue Confidências de Jocasta, além do site pessoal.