©imagem David Wayne Boxer
Solidão

Se me afasto dois dias
os pombos que bicam
na minha sacada
começam a se agitar
seguindo as instruções corporativas.
Ao meu regresso a ordem se refaz
com suplemento de migalhas
e para desapontamento do melro que faz a naveta
entre o respeitado vizinho de frente e eu.
A tão pouco se reduziu minha família.
E há quem tenha uma ou duas, que esbanjamento, meu Deus!

Madrigais Privados


Deste meu nome a uma árvore? Não é pouca coisa;
embora não me resigne a ficar apenas sombra, ou tronco,
abandonado num subúrbio. Eu o teu
dei a um rio, a um longo incêndio, à minha sorte
cruel, à confiança
sobre-humana com que falaste ao sapo
que saiu do esgoto, sem horror ou pena
ou exaltação, ao alento daquele poderoso
e suave lábio teu que consegue,
nomeando, criar: sapo flores relva rocha —
carvalho pronto a desfraldar-se sobre nós
quando a chuva dispersa o pólen das carnosas
pétalas de trevo e a chama se levanta.

O Sabiá

O sabiá canta na terra, não sobre as árvores,
assim disse uma vez um poeta sem asas,
e antecipou o fim de toda vida vegetal.
Existe além disso quem não canta nem sobre nem sob
e ignoro se é pássaro ou homem ou outro animal.
Existe, ou existia talvez, hoje está reduzido
a nada ou quase nada. E já é muito pelo que vale.

Depois da Chuva

Sobre a areia molhada surgem ideogramas
de pés de galinha. Olho para trás
mas não vejo nem santuário nem asilo de aves.
Terá passado um ganso cansado, ou talvez manco.
Não saberia decifrar aquela linguagem
ainda que fosse chinês. Uma simples aragem
a apagará. Não é verdade
que a Natureza seja muda. Fala ao deus-dará
e a única esperança é que não se ocupe
muito da gente.

Vento e Bandeiras


A ventania que alçou o amargo aroma
do mar às espirais dos vales,
e te assaltou, desgrenhou teu cabelo,
novelo breve contra o pálido céu;

a rajada que colou teu vestido
e rápida te modulou à sua imagem,
como voltou, tu longe, a estas pedras
que o monte estende sobre o abismo;

e como passada a embriagada fúria
retoma agora ao jardim o hálito submisso
que te ninou, estirada na rede,
entre as árvores, nos teus vôos sem asas.

Ai de mim! O tempo nunca arranja duas vezes
de igual maneira suas contas! E é esta a
nossa sorte: de outra maneira, como na natureza,
nossa história se abrasaria num relâmpago.

Surto sem igual, — e que agora traz vida
a um povoado que exposto
ao olhar na encosta de um morro
se paramenta de galas e bandeiras.

O mundo existe... Um espanto pára
o coração que sucumbe aos espíritos errantes,
mensageiros da noite: e não pode acreditar
que homens famintos possam ter sua festa.

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, com um terror de bêbedo.

Depois como numa tela, acamparão de um jato
árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

Tradução de Geraldo H. Cavalcanti