nem águas e nem março

é cal
é cedro
o fim do princípio
do resto do ninho
calvário de dor

é o nada é o tudo
assim tão sozinhos
é o vale
é o toco
que sobram
do amor

é a casa vazia
é a palma
é o pé
é dezembro a chegar
dias de santa fé

é a minha tristeza
que brota
e caminha
se espalha
encantada

qual erva daninha

 

na aurora
 
calculo
a quantas horas-luz
estás de mim

 

afrescos primitivos de um jardim

Pudesse eu deter agora o que aprendi
e que domina os traçados
do meu cérebro
faria nova arquitetura  no jardim
e mudaria para afrescos primitivos
alguns contornos deste céu
atormentado

evitaria retocar os velhos traumas
construiria um ambiente   relaxado
um universo
pouco decodificado
de linhas finas
     elementos
          descuidados

sem pretensão a ser artista
dos pincéis
permitiria traços simples  delicados
a tradução dos meus desejos
eu veria
em fadas brancas   e solfejos
encantados

desenharia uns rabiscos  bem suaves
sem arabescos  
sem apegos a verdades
E dançaria neste céu
bem juvenil

Esqueceria desafios
      e
 saudades

 


atalhos de sobreviver

Como se não fosse detê-la nenhum vento
aprontou-se para a luta
talhou armadura
em dor

Fez do labirinto interno
via de urro
e ternura

molde robusto
de flor

 


favo do inconsciente

A casa dos meus sentimentos se parece
com aquela morada de abelhas
muitos buracos juntos
uns dos outros
sem que se possa mesmo distinguir
porque  
ou quando
cada um deles foi-se abrindo
ou se juntando
e construiu um quebra-cabeças
quase inviolável

colado no mel

 


adeus às cinzas

De cinzas   agonias  e paixões
ao cair de tardes já cansadas
de sonhos flutuando aos turbilhões
perdendo-se  no meio de cantatas que soam
qual Bolero de Ravel

Para lutar
como que pendurado em sua estrada
juntando pedacinhos   pela trilha
e forças para começar  outra viagem

Oh dor de trazer grudada junto ao peito
uma enorme estrela de Davi
a brilhar em outro tipo   de cenário

A falar baixo coisas de quase estremecer
para o inquilino
que lá dentro mora
              Seria mesmo bobo o coração
                        ou será que não havia mesmo chegado sua hora?

De levantar o mais bonito
e derradeiro vôo
daquele tipo de não mais  escorregar
de nunca mais verter nenhum orvalho
     chuva forte
para que a planta pudesse respirar       oh alma terna

E no final   apenas uma cerimônia
onde se queimam cinzas   e tristezas
[tal qual hindus envoltos em seus panos

Legado de paixões  que soçobraram
adubo de bonitas plantações
ração para peixinhos  coloridos

E o Adeus
          a todos desenganos

 


alma naïf

Na minha casa  estão
um quartinho de jantar
uma sala de dormir
tudo assim trocado mesmo

Na minha mente está
a vontade de cantar
de fugir dessa corrente
de ganhar novo oriente

num navio
num trenzinho
num abraço

ou num pedaço do teu

ninho

 


de mais divagações sob essa lua

Há uma coisa de animal
no brilho dessa lua
que vem cobrir a pele tua
em simbiose tátil

e te faz réptil
te transforma n'alguma coisa nua  
a arrastar-se  e arranhar-me
porém sem sulcos a deixar
em minha carne

Imensas  e enormes taças de bebida entorpecente
a despejar   tal qual serpente
em mim
sementes
que nem pensam vicejar
ou viciar

Lua
     domínio
            dominó
mares e crateras no cristal  repousam
dosagem lúcida de fogo
ateias

pó  indecifrável
que ousa derramar-se
em minhas

veias

 


acalanto aos pensamentos de um final

Assim como uma luz
meio sem forma
está entrando em limiares de colunas  cheias
salinas e desconcertantes

tu apareces
como se dali   de onde cuspido foste
mensagem te viesse
de que nada poderias fazer  para voltar

E rugas aparentas ter
como se de pele antiga fosse composta tua face
para que em processo
rápido  audaz
quase um milagre
lisa
em pouco tempo  ela acabasse por ficar

Como se a própria Vida  num palco
se esticasse

E assim começa a esquisita caminhada
para o fim
e ainda que não possas enxergar em meio às névoas
elas se dissiparão
e tu alcançarás  com certa nitidez

uma das verdades  que em ti 
vão esbarrar

E um dia
passando pelos dramas da tristeza
em meio ao burburinho de perder-te
ao aninhar-se como fosse   ainda  
aquele feto
em rima que não rende

perceberás
que nada além de um regresso  estás vivendo
que tudo apenas  
começa    a retornar

E ao se transformar de novo na criança
em busca do calor  e da umidade
já tens de novo rugas
mais idade
pelos brancos
      num corpo bem franzino
que repousará  em seu lugar
de vinda
e de destino

E saberás então
que era esse movimento
muito mais simples   mesmo  do que pregam

O arco emboscado

desta Vida

 

 
 
bordado comum

Faço tricôs semânticos
para bordar  com linhas já usadas
as letras
do teu nome

E alinho cordas novas em refrão
rascunho
de novos acordes
 
em meu

c o r a ç ã o

 


onipotência

A primeira via é apenas  o começo
desenho de genoma
estranho
imenso

As linhas do teu litoral
são emaranhados
são enigmas

e Tu
tu não és  mesmo
     [reconheça
desta Vida

o fiandeiro
oficial

 


alforria

Quase branca e quase negra
a nuvem que está no céu
democratiza a beleza

 


sem ti

Sou chama
Aquela
que não precisou da fricção de dois gravetos
para arder

 


moviola

A mesma escada  em caracol
o quadro  na parede
uma canção 
em si bemol

E ainda que se faça  um bom remendo
na costura
a tal verdade que parece um pouco
dura

É a de que tudo permanece

quase igual

 


a tinta cobriu meu dia

A tinta daquele quadro
esparramou-se em meu dia
pintou meu rosto de seda
coloriu-me de promessas    
marcou-me com X a testa        
chamou-me de bem-me-quer

E eu me tornei paisagem
manequim e personagem
de um delírio

qualquer

 


míssil
 
Escrever é arma  pura
e pode ser kamikase
carrega-se a alma com tinta
desenha-se a própria mentira
inventa-se
alguma verdade

 


exercício de non-sense

Pendurei raios e trovas
nas barbas daquela nuvem
contigo
fui dançar valsas
no canto azul  de um lago
todo plano
em pleno céu

E ali
tal qual paisagem
o Pai esteve presente
e disse que   tudo passa
passa  passa
passará

E quem passou
[eu te digo
foi mesmo o passarinho do Quintana
comigo ficou
peninha
para que eu possa prender  como um brochinho
um colar  ou um tatoo
no teu poema

e num pico de  himalaia
ou monte fuji
qualquer

te recitar

 


aritmética de sharon

Quatro soldados num tanque de guerra
alguns terroristas
num pequeno caminhão

persistirá até quando
esse sujo e decadente
uso

da antiga Lei
de Talião?

 


óleo sobre tela

Olho para a tela
desenho atalho para o caos
ao registrar a senha de um amor

E tudo permanece como antes
de eu ter com meu barquinho navegado
em busca de alguns textos
de Dante

Sem planejar virei Amor
   [ou Beatriz
vivi meu Céu
de notas claras  me vesti
desprogramada para as cores e os pincéis
fui tua dama
tua lenda  luz e tema

E meu Inferno nem ainda
terminou

 

(imagem ©henri de toulouse la tech)

 

 
 
 
Eliana Mora nasceu no Rio de Janeiro. Formou-se na "Arte de Dizer" no Curso Olavo Bilac aos 17 anos. Jornalista, trabalhou em revista, rádio, televisão, e faz assessoria de imprensa. Está no movimento modernista Poetrix, cuja primeira antologia já foi editada. E no grupo Escritas, com duas antologias. Com 152 poemas do período entre 1999 e 2002, Mar e Jardim é seu livro de estréia, editado em 2003.