©fernando botero
 
 
 
 
 
 

 

Se houvesse uma votação internacional para a escolha do posto de "maior poeta do século XX em língua inglesa" (e uma coisa tonta assim certamente há de existir), as chances de que William Butler Yeats (Dublin, 1865 - Saint Martin, 1939) viesse a ser eleito seriam enormes. E nós não discordaríamos, de jeito algum, embora um de nós ameaçasse fazer algum barulho para entregar a honraria a T. S. Eliot, e o outro ficasse ostentando indecisão e finalmente tirasse par ou ímpar para ver se a concederia a William Carlos Williams ou a Wallace Stevens. Em qualquer caso, está bem claro que, se o nosso tolo concurso imaginário apenas aceitasse a inscrição de poetas do Reino Unido, lá estaríamos os dois a aplaudir com estardalhaço a vitória de Yeats. É de fato um poeta sensacional, e é uma pena que seja pouco conhecido no Brasil. Nem mesmo o Prêmio Nobel, que ele recebeu em 1923, projetou-o por aqui. Por isso, mesmo numa página simples como esta, parece adequado falar dele neste último ano do século XX, muito apto a balanços e a retrospectos.

Mas falar apenas, sem trazer à vista de todos essa mesma poesia, seria talvez decepcionante. De modo que isso nos resolveu a traduzir dois de seus mais célebres poemas (A Coat, do livro Responsabilities, de 1914; e Leda and the swan, de A Vision, de 1925, depois também recolhido em The Tower, de 1928). Ambos têm traduções em língua portuguesa, deste e do outro lado do Atlântico, mas nenhuma tão perfeita que nos impedisse de tentar fracassar por nossa própria conta e risco.

O primeiro poema tem sido visto como o manifesto da maturidade da poesia de Yeats: aquele no qual atingiria "uma fala tão natural e dramática, que o ouvinte nela pudesse sentir a presença de um homem pensando e sentido", como disse numa carta ao seu pai. Pode ser, mas também é claro ali um movimento de recusa às imitações que geraram os seus primeiros livros, permeados de temas e de alusões a mitos irlandeses. De qualquer forma, A Coat pode ser lido adequadamente como a conjugação de dois motivos caros à poesia ocidental desde o Romantismo: a originalidade e a poética do despojamento, da 'naturalidade', da 'espontaneidade' etc.

Mas é o segundo poema (Leda...) que mostra melhor as grandes qualidades da poesia de Yeats. Para compreendê-las, é talvez preciso identificar alguns elementos mitológicos que ordenam as suas partes. Convém saber, por exemplo, que Zeus se apaixonou por Leda e se transformou num cisne para a possuir, cena representada por inúmeros artistas, entre eles Leonardo, Correggio e Boucher. O poema de Yeats não se circunscreve ao erotismo perverso da cena sexual entre um animal e uma pessoa humana, mas refere explicitamente os seus desdobramentos políticos. Da cópula com o deus transformado em ave, Leda pôs um ou dois ovos, conforme a versão da lenda, dos quais nasceram duas irmãs, casadas com dois importantes príncipes gregos. Uma delas foi a esposa de Menelau, Helena, cujo rapto originou a guerra de Tróia, e a outra foi a esposa de Agamêmnon, Clitemnestra, que, com a ajuda do amante, assassinou o marido, quando ele voltou, triunfante, dos campos do combate. Ou seja, dessa união desigual nasceram duas mulheres cuja beleza e paixão emolduram todo um ciclo mítico, que é o da guerra narrada na primeira epopéia homérica.

Tendo isso em mente, é fácil perceber duas das qualidades que o poema procura construir: o extremo erotismo e a capacidade de, em poucos versos, abrir um amplo desenho histórico a partir de uma cena bem conhecida, reanimando-a por emulação com a tradição.

Para o tipo de erotismo que interessa ao poema, concorre certamente a desproporção dos amantes ou o antinaturalismo da cena, pois o cisne parece desmedidamente grande. Yeats compõe a cópula como a sujeição de uma Leda aterrorizada e incapaz de se defender por uma ave que a domina completamente e, depois de possuí-la, a deixa cair inerte. Nesse quadro, o verso que narra o momento em que as coxas se abrem em abandono para receber a glória alada marca o ápice do crescendo de tensão erótica que o organiza.

Já a menção aos muros de Tróia, à destruição da cidade e à morte de Agamêmnon, explora o sentido virtualmente trágico da cena tradicional. Ou seja, o tratamento de Yeats do motivo antigo conjuga o erotismo brutal do assalto do deus à sua vítima indefesa com as suas conseqüências históricas e políticas igualmente brutais. Ele comprime numa cena sexual, que se desenrola rapidamente ante os olhos do leitor, um conjunto de mitos e associações que nos acostumamos a reconhecer como uma das peças básicas da identidade 'ocidental'.

Parece claro, pois, que para apreciar o soneto não precisamos ler muita coisa do grande e esotérico quadro programático que Yeats traçou na centenas de páginas em que pretendeu expor a sua visão do mundo e da poesia. Seja como for, vale a pena reter que, no tratado Uma Visão, esse soneto inicia o Livro V, intitulado "Pomba ou Cisne", de que constitui a seção número 1. Tal título traça uma equivalência entre a Grécia e a Cristandade, ambas iniciadas no ventre de uma mulher que recebe a visita de um deus personificado numa ave. Mas já em The Tower o poema aparece sem essa contextualização e sem o aparato de mitologia pessoal daquela primeira publicação, e nem por isso fica menos interessante, nem mais claro ou obscuro ao leitor que com ele trava contato diretamente.

Para encerrar, um pequeno comentário, eventualmente fútil, ou eventualmente útil para os que, como nós, consideram que a literatura passaria muito bem sem a hermenêutica filosófica ou esotérica que tantas vezes é impiedosamente brandida por críticos ou intérpretes ansiosos por enxergarem, nela, a própria face de Cristo transfigurado no Monte Tabor, e que se decepcionam demais com o simples estudo dos processos de composição dos versos, que curiosamente lhes parecem insuficientes para gerar tanto sentido verdadeiro e tanto afeto convincente. Para esses, a boa leitura parece ser o exercício da esperança de descobrir nos poemas a expressão divina, e por isso dispensam justamente o que nos parece o essencial, a forma particular que eles têm, a sua inserção na tradição literária, o seu jogo com os outros poemas que os precederam. O comentário tem pertinência aqui, pois Yeats é desses poetas de que raramente se fala sem desentranhar dos poemas que escreve obscuríssimos esquemas teosóficos, quadros sinóticos assustadores em que, por exemplo, no alto de uma roda, está um ponto cardeal como "Leste", ou uma entidade como "Quebra de força", e embaixo, claro, o " Oeste" e a "Descoberta da força". Por quê isso? A resposta não é difícil, mas é longa. Mas fiquemos aqui apenas com a idéia de que, em larga medida, o próprio Yeats, como o português Pessoa, ou o americano Eliot, favoreceu esse tipo de leitura.

Para começar, em 1887, em Londres, inscreveu-se numa "Sociedade teosófica" e dedicou-se a estudar o escritos de William Blake, outro poeta amigo de profundezas, como se foram profecias, e a decifrar fórmulas neoplatônicas (a linguagem oficial do esoterismo internacional), onde cabiam prodígios alquímicos, rosacruzes, cabalistas, a Sociedade Hermética de Dublin, a Ordem da Aurora Dourada e, até, Madame Sosostris, sempre resfriada, perdão, Madame Blavastsky, célebre vidente. Isso tudo devia bastar a Yeats, mas não: em 1917, casou-se com certa Georgie Hyde-Lees, que, um belo dia, se descobriu médium. Pois aconteceu que a Senhora Yeats, entre seus novos talentos, que incluíam ser porta-voz de assobios e perfumes do Além, passou a fazer escrita automática para, piedosamente, dar fala os espíritos eloqüentes, sequiosos de contar aos vivos os mistérios escondidos pelo véu da morte. E foi com os borrões de além-túmulo produzidos por ela que Yeats compôs Uma Visão, um tratado esotérico cheio de gráficos e descrições dos 28 tipos possíveis de personalidade (26 humanas e duas só possíveis aos seres sobrenaturais), de cuja matemática ele tirou versos e imagens, cumprindo magnificamente aquilo que os generosos espíritos disseram através do cavalo da mulher dele:

 

"Nós viemos trazer-lhe metáforas para a sua poesia".

 

Eis aí a coisa toda: o que para a talentosa senhora era conteúdo de uma vidência sobrenatural, para Yeats, ainda que também o fosse, era principalmente metáfora significante de uma tradição literária que ele emulava. Vale dizer, o que para os crentes era verdade oculta e profunda, para ele, poeta, a despeito de crente, era lugar comum da invenção poética a reclamar novas figuras e versos para descrevê-las da melhor maneira. Os crentes poderiam muito bem perguntarem-se se Yeats fora fiel, em seus versos, aos esquemas que traçou segundo a visão da mulher, ou com que objetivo piedoso os espíritos lhe proibiam que chateasse muito a Sra. Yeats ou eles próprios com um sem número de perguntas metafísicas. Mas nós, sem saber nada disso, apenas temos certeza de que Yeats não tomou aquela pletora visionária como algo alheio ao seu próprio domínio poético dos temas da tradição. O acaso, por vezes, joga a nosso favor.

 

 

 

_________________

 

Dois poemas de Yeats

(tradução de Alcir Pécora e Paulo Franchetti)

A Coat 
 
I made my song a coat 
Covered with embroideries 
Out of old mythologies 
From heel to throat; 
But the fools caught it, 
Wore it in the world´s eyes 
As though they´d wrought it. 
Song, let them take it, 
Fot there´s more enterprise 
In walking naked. 
 
Um manto 
 
Fiz para minha canção um manto 
Coberto de bordados 
De velhas mitologias 
Desde os pés até o pescoço; 
Mas os tolos o tomaram, 
Usando-o aos olhos do mundo 
Como se o tivessem feito. 
Canção, deixa-o com eles, 
Pois há maior proeza 
Em andares nua. 
 
 
Leda and the swan 
 
A sudden blow: the great wings beating still 
Above the staggering girl, her thighs caressed 
By the dark webs, her nape caught in his bill, 
He hold her helpless breast upon his breast. 
 
How can those terrified vague fingers push 
The feathered glory from her loosening thighs? 
And how can body, laid in that white rush, 
But feel the strange heart beating where it lies? 
 
A shudder in the loins engender there 
The broken wall, the burning roof and tower 
And Agamemnon dead. 
                                  Being so caught up, 
So mastered by the brute blood of the air, 
Did she put on his knowledge with this power 
Before the indifferent beak could let her drop? 


   
Leda e o Cisne 

 
Um sopro súbito: as grandes asas batendo ainda 
Sobre a jovem cambaleante, as coxas acariciadas 
Pelas membranas escuras, a nuca presa no seu bico, 
Ele sustenta o peito desamparado sobre o próprio peito. 
 
Como poderiam aqueles dedos vagos e aterrorizados afastar 
A glória emplumada das coxas que se abandonavam? 
E o que poderia o corpo, caído naquele branco ímpeto, 
Senão sentir o estranho coração batendo onde se aloja? 
 
Um tremor nos quadris engendra ali 
O muro quebrado, o telhado e a torre queimando 
E Agamêmnon morto.
                                Sendo assim pega,
Tão dominada pelo sangue bruto do ar,
Teria recebido dele o conhecimento junto com o poder
Antes que o bico indiferente a deixasse cair?
.

 

 

 

 

(Publicado originalmente no Correio Popular, Campinas)

 

 

agosto, 2005 

 

 

 

 

elenco@germinaliteratura.com.br