©lifestock
 
 
 
 
 
 
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Notas sobre o cômico
na poesia de Bernardo Guimarães e seus contemporâneos

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Do sorriso tenso e melancólico provocado pelas Idéias Íntimas de Álvares de Azevedo à grossa gargalhada com que Bernardo Guimarães nos explica A origem do mênstruo, estende-se uma vasta região que ainda parece longe de estar satisfatoriamente mapeada: aquela em que floresceram lado a lado e exuberantemente a paródia, a sátira, a chalaça e a pornografia — o nosso "cancioneiro alegre" da época romântica. Melhor dizendo, da que se convencionou chamar de segunda geração romântica, porque a maior parte dos textos disponíveis para uma tal coletânea vem assinada por poetas nascidos por volta de 1830: Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, José Bonifácio de Andrada e Silva, Laurindo Rabelo, Luís Gama, Bruno Seabra, Franco de Sá.

Tais poemas formam um conjunto impressionante, quando cotejados com a obra "séria" produzida por esses autores, não só pelo volume, que não é pequeno, mas também e principalmente pela qualidade literária. Poetas que pagavam um tributo excessivo às convenções do tempo quando celebravam a musa vaporosa e lânguida que então se impunha, transformavam-se de súbito, ao sopro da maledicência, da lascívia ou da simples emulação boêmia, em virtuoses da palavra, improvisadores de raro talento e inventividade. O caso exemplar é o de José Bonifácio, o Moço, em que convivem o poeta de minúsculos dotes dedicado à louvação do amor convencional e à celebração de sensaborias patrióticas, o fino ironista de Um pé e Meu testamento e o esplêndido satírico de O Barão e seu cavalo. Com Bernardo Guimarães também não sucede coisa muito diferente, pois é hoje forçoso reconhecer (em que pese o juízo favorável de um Manuel Bandeira) que o Dr. Bernardo seria apenas mais um poeta medíocre, não fossem os seus "bestialógicos", a sua Orgia dos duendes e os dois poemetos fesceninos que referiremos mais adiante.

Apenas Álvares de Azevedo foi igualmente grande tanto pelo lado direito quanto pelo lado do avesso — a primeira e a segunda parte da sua Lira dos vinte anos. Será o único, porém, de cuja poesia não trataremos, porque é toda bem conhecida e estudada. Inteligência crítica à altura da poesia que nos deixou, Azevedo percebeu claramente a dupla face da musa de sua geração. No Prefácio à Segunda Parte da Lira, não só explicitava e definia essas faces — " Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban" — mas ainda ensaiava uma explicação genérica para sua existência:

 
Por um espírito de contradição, quando os homens se vêem inundados de páginas amorosas, preferem um conto de Boccaccio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff (..) a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda em moda (...) Antes da Quaresma há o Carnaval.
(Prefácio do autor à Segunda Parte da Lira dos Vinte Anos)
 

Não é nosso principal objetivo discutir aqui a origem da grande produção de poemas humorísticos da segunda geração romântica, mas apenas traçar um rápido panorama que estimule trabalhos necessários de investigação, localização de textos, e reflexão pormenorizada. Notemos, no entanto, que entre os vários fatores que contribuíram para tal voga de textos bem-humorados não é certamente dos menores a influência da poesia do próprio Azevedo. Publicada e republicada seguidamente nos anos imediatamente posteriores à morte do poeta, ocorrida em 1852, sua obra teve enorme papel na consolidação da tendência a observar a vida de um ponto de vista burlesco, contrapondo ao mundo ideal dos valores cavaleirescos as visões divertidas da "Ilha Baratária de D. Quixote", onde reina Sancho Pança. Influente como era junto à mocidade acadêmica de São Paulo, Azevedo foi o modelo confesso de uma numerosa e desigual produção de poemas que, em tom intimista e coloquial, celebravam os símbolos da vida do rapaz solteiro, habitante das repúblicas de estudantes: o cachimbo, o cigarro, o charuto, o cognac. Dele também deriva uma tendência ao riso amargo da auto-ironia, da auto-paródia, cujos traços são perceptíveis na obra de vários contemporâneos, entre os quais se destaca José Bonifácio. Os estudos críticos de Azevedo, por outro lado, devem ter contribuído bastante para a continuidade e a revivescência de um certo gosto neoclássico — perceptível em todo o grupo —, que de novo trouxe a plano de destaque as diatribes de um Tolentino e de um Bocage1.

A voga desses autores foi notável nos anos que se seguiram ao falecimento de Azevedo. Para só citar um exemplo, notemos que são eles que, junto com Xavier de Novaes2, fornecem quase todas as epígrafes das Trovas burlescas (1859), escritas por um dos esquecidos talentos da época: Luís Gama, vulgo Getulino.

Em Getulino vemos bem realizada uma das formas do riso em exercício na segunda geração romântica brasileira: o satírico espirituoso e competente, porém dentro das convenções do gênero; o crítico dos costumes, cuja arma principal é a acentuação dos traços negativos do objeto criticado. Das suas Trovas é talvez a mais característica e melhor realizada a que começa:

 

Ó tu, quadrada musa impavesada,
Soberana rainha da papança,
Borrachuda matrona insaciável
Que tens o corpo pingue e larga pança;
Ë tu, arca bojuda que resguardas
O profuso fardel das comidelas;
Amazona terrível, devorante
Té capaz de engolir mil caravelas...
(...)
 

Aí se narram, como se pode deduzir da invocação, as proezas de modernos comilões, que rivalizam com todos os monstros das fábulas antigas na arte da gulodice e perto dos quais é fichinha até mesmo um certo "Cambises, rei da Lídia", que "em certa noute"

 

Atracou-se à consorte com tal gana
Que a meteu inteirinha no bandulho,
Como quem embutia uma banana.
 

O objetivo do poema revela-se logo nas primeiras estrofes e se explicita nas finais, em que se resume todo o argumento: a denúncia do estrato superior da sociedade imperial,

 

Que, abusando das leis da natureza,
mãe pátria se agarra como louco;
Chupita a pobre velha, e logo brada,
(Batendo no bandulho) — inda foi pouco!...
 

A maior parte dos poemas burlescos de Getulino são caricaturas dos temas preferenciais de todas as épocas: os costumes femininos e as práticas políticas dos poderosos. A esse aspecto do cômico, recorrente em todo ambiente boêmio ao longo dos tempos, pertence um bom número de textos de Bruno Seabra, Franco de Sá e Bernardo Guimarães. Estamos, com Getulino, no domínio da boa tradição da sátira lusitana, que a custo se mantém dentro dos estreitos limites do bom-senso e do decoro e frequentemente resvala ladeira abaixo, como nos mostra a sedução ocasional do mesmo poeta pela musa maliciosa, pelo tempero picante, de que é bom exemplo este soneto de molde e trocadilho setecentistas:

 

Sob a copa frondosa e recurvada
De enorme gameleira, secular,
Sentada n'uma ufa a se embalar
Estava certa moça enamorada.

 

Eis que rola dos ramos inflamada
Tremenda jararaca a sibilar;
Fica a jovem na corda, sem parar,
Como a Ninfa de amor eletrizada!


 Anjo Bento! exclamaram os circunstantes;

— Foge a cobra de horrenda catadura,

Os olhos revolvendo coruscantes.


Mas a bela moçoila com frescura

N'um sorriso acrescenta — é das amantes
Nem das serpes temer a picadura.

 

Essa mesma musa depravada, que em Getulino e outros menores é episódica, disfarçada ou relativamente bem-controlada, é em Bernardo Guimarães absolutamente bocageana. Adentramos, com ele, os limites do chulo e do obsceno, intensificados e realçados pelo contraste com a forma elaborada e rica de associações tradicionais em que são vazados os poemas. Dessa segunda faceta do riso romântico chegaram até nós duas composições de Guimarães: A origem do mênstruo e O elixir do pajé.

O primeiro é um poemeto etiológico que narra como, por uma brincadeira impensada da ninfa Galatéia, as mulheres vieram a ser severamente punidas. O enredo é como segue: a deusa do amor, que geraria Enéias de uma união carnal com Anquises, preparava-se para esse ato decisivo na história da civilização mediterrânea:

 
'Stava Vênus gentil junto da fonte,
Fazendo o seu pentelho
Com todo o jeito, p'ra que não ferisse
Das cricas o aparelho.
 

A ninfa Galatéia, interpretando mal a posição (E vendo a deusa assim tão agachada / Julgou que ela cagava), resolve assustá-la e atira-lhe uma pedra. Acontece então o desastre:

 
Vênus se assusta: a branca mão mimosa
Se agita alvoroçada,
E no cono lhe prega — oh! caso horrendo,
Tremenda navalhada.
 

Irada, Vênus prorrompe em maldições recheadas de palavras obscenas e, por fim, sobe aos céus, onde repete a sedução do pai, já narrada uma vez por Camões, e dele consegue a punição do insulto, na sentença que encerra o poemeto e o consternado concílio dos deuses do Olimpo:

 
"Para punir tão bárbaro atentado,
Toda a humana crica
De hoje em diante, lá de tempo em tempo,
Escorra sangue em bica."
(...)
"Amém! amém!" com voz atroadora
Os deuses todos urram;
E os ecos das olímpicas abóbadas
"Amém! amém!" sussurram.
 

O texto que com esse faz pendant, O elixir do pajé, é dotado de menos enredo e, vez por outra, de mais verve satírica. O assunto do poema se reduz à celebração das virtudes de um misterioso elixir afrodisíaco de que se valeu nos áureos tempos um certo pajé Bandalho e em cujas propriedades milagrosas deposita o narrador as melhores esperanças. Desinteressante quase sempre, os únicos bons momentos do poema são aqueles que parodiam descarada e brutalmente a cadência bem marcada dos passos indianistas de Gonçalves Dias:

 
E ao som das inúbias,
Ao som do boré,
Na taba ou na brenha,
Deitado ou de pé,
No macho ou na fêmea,
De noite ou de dia,
Fodendo se via
O velho Pajé!
(...)
Vassoura terrível
Dos cus indianos
Por anos e anos
Fodendo passou,
Levando de rojo
Donzelas e putas,
No seio das grutas
Fodendo acabou!
E com sua morte
Milhares de gretas
Fazendo punhetas
Saudosas deixou!...

 

De resto, o poema se esgota no puro gosto pelo palavrão escrito, pela feroz exibição da sexualidade masculina estereotipada, pela louvação da virilidade entendida como capacidade mais de agressão do que de obtenção do prazer. Nos poemas fesceninos de Guimarães não há lugar para a sedução, nem para o ponto de vista feminino. Não há erotismo. O cômico, inferior ao modelo evidente que é Bocage, fica por conta do simples contraste entre a elaboração formal da expressão e a primitividade regressiva do conteúdo expresso. Apesar da persistente nomeada, esses dois poemetos são o que hoje menos nos impressiona na obra humorística do autor.

Excluída, pelos motivos acima, a referência ao humour de Azevedo e aos poemas que evidentemente dele derivam por influência direta, chegamos agora ao terceiro e último avatar do riso romântico entre nós, o mais atraente e o mais moderno: o "bestialógico", de que este trecho de José Bonifácio é um bom exemplo:

 

Ó cágados gentis da Macedônia!
Ó Caxias, marquês da Patagônia!
Salmões do Sena, tépidos aromas
Do rio Tietê, bestas de Roma!
Ilha das Cobras, flor do Guanabara,
Tachos de furrundum, débil taquara!
Frutas de Cambuí, várzea do Carmo,
Espingardas de pau que eu só desarmo!
Ó sol! ó sol! cabeça de palito,
Brasa acesa nas costas de um mosquito!
Delicado nariz, meu relicário,
Prenda, prenda gentil do secretário...
 

Assim começa o segundo canto de O Barão e seu cavalo, poema em que se satirizam algumas das personagens notáveis do partido conservador. O enredo é indistinto, confuso: uma reunião em que acontece um pouco de tudo e se desenvolve a crítica aos adversßrios políticos do autor. Não é a fábula, porém, o que conta neste caso. Os episódios e as falas têm grande autonomia e não perdem muito em comicidade quando isoladamente considerados, como é o caso desta cena, provocada por um súbito ataque de loucura do chefe de polícia:

 

Dispam o monstro já; que voz tão gaga?!
Talvez tenha no umbigo alguma chaga...
Foi dito e foi feito: logo posto nu,
Besuntaram-lhe o corpo com angu;
Três gotas de vinagre de alecrim
Misturaram com caldo de capim;
Gritava o Guimarães, pedindo espaço,
Mas deram-lhe pancada c'um chumaço!
Que horror! que negro horror! que feia mágoa!
Vão buscar um canudo à caixa d'água.
É difícil dizer qual a moléstia;
Sentiu do sol nas ventas uma réstia!
As causas deste fato sobre-humano
Tem origem no solo muçulmano!
Ai, dizê-lo não posso... um assassino
Roubou-lhe do armazém o pano fino!
 

Vale por si só, igualmente, este primoroso trecho de oratória:

 

Barão: Da Grécia e Roma os mármores roubados
Foram por vós, senhores, ocultados;
Por causa de um feroz recém-nascido
Enéias deu à noite um soco em Dido;
No colosso de Rodes o espartano
Viu cavalos de pau sem ver troiano;
Foi lá no monte Ural — que Salomão
Plantou sem ver sementes de algodão;
Eu mesmo no verdor da juventude
Já comi carne assada num almude!
Vede que coisas ruins, bem pode ser
Que o Guimarães esteja p'ra morrer.

 

Como se vê, passamos agora a território completamente distinto dos anteriores: o domínio do non-sense, do absurdo, da livre associação. O cômico, nesse caso, resulta do choque inesperado entre o substantivo e o adjetivo, entre o verbo e seu sujeito, da seqüência surpreendente da ação, do descompromisso com a ordenação usual do discurso que permanecia praticamente inquestionada nas modalidades anteriores. E se é verdade que em Bonifácio ainda subsiste um fio narrativo e uma clara intenção alegórica, em Bernardo Guimarães encontramos essa forma de ordenação do discurso em seu, por assim dizer, estado puro.

Guimarães foi o mestre inconteste do "bestialógico" poético:

 

Com grande desgosto dos povos da Arábia,
Vieram os bonzos da parte de além,
Comendo presunto e empadas de trigo,
Sem ter um vintém.
E os ratos vieram, trotando depressa,
De espada na cinta, barrete na mão;
Prostravam-se ante eles, fazendo caretas,
Com grã devoção.
E o filho dos ermos, do monte rolando,
Puxou pela faca, de grande extensão,
Caiu como o cisne, que toca trombeta,
De ventas no chão.
E lá pelos pólos, de gelo abrasados,
Eu vi Napoleão
Puxando as orelhas ao fero Sansão,
E um lindo mancebo de nobre feição
Brincando entre as pernas do rei Salomão...
 

O que é espantoso nesse e em outros poemas do gênero é a ausência de clara intenção paródica ou satírica. Seu único objetivo parece ser o de conseguir um efeito de sentido cômico pelo acúmulo de nomes, situações e atos cuja relação é absolutamente impertinente de qualquer ponto de vista. Embora tenha também escrito "disparates rimados" com objetivo de crítica ou paródia de composições ou estilos em voga em sua época, Bernardo Guimarães produziu seus melhores textos quando se deixou levar unicamente pela lógica do próprio processo compositivo, nessa espécie de escrita automática avant la lettre:

 
Mote estrambótico:


Das costelas de Sansão

Fez Ferrabrás um ponteiro,
Só para coser um cueiro
Do filho de Salomão.
 

Glosas:
 

Gema embora a humanidade,
Caiam coriscos e raios,
Chovam chouriços e paios
Das asas da tempestade,
— Triunfa sempre a verdade,
Com quatro tochas na mão.
O mesmo Napoleão,
Empunhando um raio aceso,
Suportar não pode o peso
Das costelas de Sansão.


Nos tempos da Moura-Torta,

Viu-se um sapo de espadim,
Que perguntava em latim
A casa da Mosca-Morta.
Andava, de porta em porta,
Dizendo, muito lampeiro,
Que, pra matar um carneiro,
Em vez de pegar no mastro,
Do nariz do Zoroastro
Fez Ferrabrás um ponteiro.
(...)
 

Aqui a denominação disparate rimado mostra a sua força descritiva: a Moura-Torta da rima produz, por semelhança fônica, a Mosca-Morta; o espadim obriga o pobre sapo a expressar-se em latim, enquanto que o mastro faz surgir um imprevisto e narigudo Zoroastro — a rima determina soberanamente a seqüência do poema. A Moura-Torta — como o sapo falante, antiga freqüentadora de estórias da Carochinha — permite chegar ainda a um outro procedimento organizador do "disparate rimado": a evocação caótica de reminiscências populares, folclóricas, infantis, fragmentadas ludicamente ao sabor das necessidades métricas e rímicas do poema. Comparecem também, ao sabor das associações, os fragmentos das leituras clássicas do bacharel, como sucede com o pai dos deuses gregos, travestido de Napoleão, e com Horácio, que surge em outra estrofe como mercador de peixes, a vender sardinhas na China.

O "bestialógico" é, sem dúvida, a contribuição mais original de Bernardo Guimarães à nossa literatura, firmando-o como um dos melhores talentos cômicos da poesia brasileira. Sua inspiração galhofeira tem ainda outras manifestações que vale a pena registrar, antes de passarmos a algumas considerações sobre a recepção e a elaboração da obra "maldita" desse escritor paradigmático. Além do tétrico e divertido A orgia dos duendes, que é texto bem conhecido, Bernardo Guimarães é autor de um saboroso poema dramático, o Dilúvio de Papel. Nesse texto, dos últimos anos da década de 50, Guimarães apresenta uma temática muito atual: a incompatibilidade entre a musa clássica do poeta e o lugar que este ocupa, como profissional da palavra, no mundo moderno. A personagem narradora é um jornalista que, sufocado entre pilhas e pilhas de papel, sai a campo aberto para tomar um pouco de ar e lá depara com a sua antiga musa, que o apostrofa como segue:


Que vejo? junto a meu lado

Um desertor do Parnaso,
Que da lira, que doei-lhe
Faz hoje tão pouco caso
Que a deixa pendurada numa brenha,
Como se fora rude pau de lenha?
(...) Ingrato! ao ver-te, sinto tal desgosto,
(...) que até me falta o estro,
Em vão estafo os bofes,
Sem poder regular minhas estrofes.
 

Ao que o poeta responde, nos termos do tempo orgulhoso em que vivia:

 

Não vês que o tempo assim perdes embalde,
Que tuas imortais nobres canções
Entre os rugidos, abafadas morrem,
Dos rápidos vagões?
Neste país de ouro e pedrarias
O arvoredo de Dáfnis não medra;
E só vale o café, a cana, o fumo
E o carvão de pedra.
(...)
Ë minha casta, e desditosa musa,
Da civilização não estás ao nível;
Com pesar eu to digo, — nada vales,
Tu hoje és impossível.
 

Furiosa, a musa condena o poeta a penas extremamente duras: em primeiro lugar, a ser assediado por exércitos de jornais de várias procedências, contra os quais se vê obrigado a defender-se a bengaladas; por fim, a um dilúvio de papel impresso. O poema termina com o malfadado vate tentando atear fogo àquele oceano de papéis, sobre cujas ondas a musa canta a doce vingança, navegando impávida em um barco incrustado de pedrarias e movido a remo de marfim.

Se fosse uma figura isolada, poucas explicações teríamos para esse poeta excepcional, e só nos restaria postular que o pobre criador de A escrava Isaura, tão mediano em prosa, possuía uma espécie de genialidade poética... intermitente, que não funcionava sempre nem em todos os gêneros. Não é o caso. Bernardo Guimarães deve ser visto dentro do quadro em que se formou e de que foi, juntamente com Álvares de Azevedo, uma das expressões mais felizes. Compreenderemos melhor as vicissitudes de sua obra se considerarmos como um de seus elementos definidores a vida boêmia, a emulação dißria de poetas que se conheciam e conviviam estreitamente no quotidiano das pequenas cidades de meados do século passado, pois dela provinha o estímulo mais importante para essa criação satírica e cômica.

A boêmia proporcionava ao poeta um público cuja resposta, além de imediata, era intelectualmente respeitada — coisa bastante diferente, mesmo em nossas condições, do que acontecia com o mercado de textos literários destinados ao "grande" público, cujo julgamento passava também e talvez principalmente pelos valores morais e políticos. Nas pequenas sociedades acadêmicas, a boêmia simultaneamente propiciava uma suspensão do juízo moral sobre os textos destinados a circulação interna e estimulava um certo inconformismo político nem sempre compatível com as funções que o bacharel deveria poder assumir em breve na sociedade imperial. Disso resultam duas conseqüências interessantes. Uma é que devemos a esse meio boêmio a única produção literária do período romântico que, além de não prever explícita ou implicitamente um público majoritariamente feminino, ainda o exclui. Outra, mais importante, é que a poesia tendesse a ser encarada entre nós como simples distração descompromissada do mancebo estudante:

 

Temos o prazer de oferecer ao público (...) as produções poéticas de um de nossos irmãos de letras, que ao separar-se de nós legou-nos esses cantos melodiosos, como se fosse um adeus de despedida, e uma última lembrança de seu viver de outrora; — é o testamento do coração ao terminar-se a vida descuidosa de mancebo; (...) é a baliza que servirá de assinalar-lhe uma quadra risonha da existência(...)
[Prólogo do editor aos Cantos da Solidão de B.G., 1852)
 

A consideração dessas circunstâncias a que se ligava a produçao de boa parte da poesia que se escrevia no Brasil pode ajudar-nos a entender uma questão importante, que se manifesta em vários críticos e historiadores da nossa literatura. Questão essa que comparece, por exemplo, no julgamento de Sílvio Romero sobre a grande repercussão da obra de Álvares de Azevedo. Em uma passagem um tanto mal-humorada, Romero diz acreditar que boa parte do grande sucesso do autor se deva à "felicidade de fazer a bela poesia de uma morte a propósito"3. Com essa expressão, o crítico não apontava apenas para a realização do acalentado ideal romântico da íntima união da obra com a biografia — o ideal de sinceridade poética, que a morte de Azevedo, cantor da morte, realizava perfeitamente. Apontava também para a questão de que vimos tratando, a de que na juventude, durante o período de vida acadêmica, surgem promessas literárias que geralmente acabam por nunca se cumprirem. Por isso, diz-nos o crítico, A. de Azevedo teve maior nomeada do que Aureliano Lessa, que lhe sobreviveu alguns anos: por ter interrompida sua carreira no momento da plena potencialidade e por ter toda a obra logo publicada, graças a familiares cuidadosos. O tema reaparece, mais claramente delineado, em José Veríssimo e explicitamente a propósito de Bernardo Guimarães. Na opinião do historiador, a razão por que o nosso autor não fora devidamente valorizado teria sido "a mesma sobrevivência de Bernardo Guimarães poeta aos poetas de sua geração"4. Ao que acrescenta, entre melancólico e irônico: "Nem só os ausentes carecem de razão, mas os sobreviventes também". O sentido de suas palavras fica mais claro, porém, neste trecho sobre a morte de outro grande poeta romântico, Gonçalves Dias:

 

Se ele devia, vivendo, esterilizar-se como Magalhães e Porto-Alegre, melhor foi, porventura, que morresse também prematuramente. A sua obra basta à sua glória e à da nossa poesia5.
 

Aí está. O que pode explicar essa quase incompreensível felicitação pela morte prematura de um gênio como o de Gonçalves Dias é a triste constatação de que entre nós a boa poesia costumava encontrar público e condição de existência apenas no seio da juventude boêmia e acadêmica. Na maior parte dos casos, o vulto e a inspiração do escritor tendiam a diminuir rapidamente de estatura com o passar dos anos, à medida que se ia fazendo necessário adequar o homem de letras à figura pública do burocrata e às oscilações da vida política que, frequentemente, definiam seu destino em um país onde as tiragens eram ínfimas.

A evolução poética de Bernardo Guimarães é, desse ponto de vista, testemunho eloqüente desse processo de mediocrização a que tão poucos escaparam, pois nela é evidente uma brutal queda de nível entre a publicação de Poesias, em 1865, e os posteriores Novas Poesias e Folhas de Outono,nas décadas seguintes. O que havia de interessante e promissor desaparece como por encanto e o que vemos surgir e se afirmar é a voz áulica, dedicada ao canto em louvor de Suas Majestades, à celebração e lamento episódicos de amigos vivos e mortos e ao banal entusiasmo militarista e patriótico. Por esse lado oficial, Bernardo Guimarães é caso típico da poesia brasileira da fase romântica. Sua grandeza provém do outro lado, da força com que ele manteve viva, ao longo de vários anos, aquela face obscura de toda uma geração. Aquela energia, agressividade, criatividade e não-conformismo juvenis que, embora subterrânea e marginalmente, nele puderam encontrar a melhor e mais completa realização.

 

 

 

 

(Texto publicado em Latinoamérica — Revista de Estudios latinoamericanos, México)

 

 

Notas

 

Poema de Bernardo Guimarães

 

agosto, 2005