©henrik sorensen
 
 
 
 
  
 
 

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Texto escrito originalmente para integrar a antologia 100 anos de poesia — um panorama da poesia brasileira no século XX, que saiu publicado por O Verso Edições em 2001. Não pôde ser aproveitado naquela publicação, por motivos que o autor  expôs numa entrevista à revista Babel, na qual acabou por sair. A republicação neste site se faz a pedido das editoras, tendo em vista que, no ano que em breve se inicia, completam-se 50 anos da Exposição Nacional de Arte Concreta.

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1. A Poesia Concreta

 

A expressão Poesia Concreta designa um dos vetores de força mais relevantes do sistema literário brasileiro ao longo de toda a segunda metade do século XX.  Na história desse movimento cultural, é possível encontrar vários nomes bem conhecidos. Em primeiro lugar, os três criadores de uma revista literária chamada Noigandres, lançada em 1953: Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Em seguida, Ferreira Gullar, Ronaldo Azeredo e Wlademir Dias Pino, que também participaram da I Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1956 e 1957. A esse núcleo principal se acrescentam, posteriormente, vários outros, como, por exemplo, José Lino Grünewald e Pedro Xisto.

 

Mas se é verdade que todos esses nomes integram a história da Poesia Concreta, também é verdade que é o grupo Noigandres o que se mantém como o mais unido, ativo e influente no debate nacional ao longo de quatro décadas, sendo a sua intensa atividade de produção de poesia, crítica e tradução rotulada usualmente de "concreta" ou "concretista".

 

Também é certo que é em relação ao grupo Noigandres que se vão definir os demais autores, ao longo do tempo. Assim, enquanto Azeredo e Grünewald, bem como Braga e Xisto, se integram ao primeiro núcleo concretista, ou dele se aproximam muito, Gullar e Dias Pino dele se afastam, liderando grupos e movimentos que se apresentam como recusa e alternativa à "ortodoxia" ou "dogmatismo" dos poetas paulistas: o Neoconcretismo e o Poema-Processo.

 

Nesse sentido, a história da Poesia Concreta é principalmente a história daquele grupo de poetas da revista Noigandres: a história das suas produções, bem como das suas alianças e disputas com outros movimentos culturais e projetos de poesia de vanguarda no Brasil.

 

As questões centrais da Poesia Concreta podem ser resumidas e compreendidas a partir de dois pontos de vista: os pressupostos teóricos e os produtos resultantes da sua prática poética, isto é, o que denominamos "poema concreto".

 

Começando pelo último, a primeira constatação a fazer é que esse nome costuma designar objetos bastante diferentes entre si. Considerando apenas a obra de Augusto de Campos, por exemplo, é notável que sejam qualificados de "concretos" textos como Greve, Ovonovelo, O Anti-ruído, Luxo,  Pluvial e Tensão. O que há em comum entre eles? O fato de utilizarem poucas palavras (ou pedaços de palavras) e de elas virem dispostas espacialmente de modo a valorizar o tamanho e a forma dos caracteres tipográficos, bem como as semelhanças fônicas entre as palavras ou fragmentos de palavras. Mas isso é tudo, pois nem mesmo é possível dizer que todos abandonam a sintaxe da língua natural e a substituem pela justaposição espacial; ou que a ordenação espacial seja, a rigor, geométrica.

 

Poesia Concreta não é, portanto, o nome de um conjunto de procedimentos, mas de uma prática poética e crítica orientada por alguns princípios e negações que é possível reconhecer na variedade dos textos e que são reafirmados como conjunto coerente por um discurso teórico-crítico muito persuasivo.

 

Na base da reflexão concretista parece estar a postulação de que a forma privilegiada da realização poética moderna é a escrita, isto é, de que poesia dos novos tempos da modernidade industrial dos anos 50 e 60 é basicamente um objeto de forma gráfica e de que o consumo da poesia inclui necessariamente a atividade visual. É esse postulado que embasa a reivindicação central da Poesia Concreta: a de que a ordenação espacial deve ter precedência sobre a ordenação sintática do poema. É ele que informa os princípios concretos de racionalidade e economia de meios expressivos, bem como o de que a poesia deve comunicar basicamente a sua própria estrutura. É também sobre ele que se apóiam as recusas enfáticas à sintaxe e à musicalidade das cadências regulares das linguagens naturais como base da organização do poema, bem como da metáfora e do desenvolvimento discursivo, descritivo ou argumentativo. Face ao primado do visual, o verso, medido ou livre, já não atenderia às necessidades da sensibilidade moderna, não passaria de um momento já obsoleto na "evolução crítica de formas", cujo produto, como se lê no "Plano-Piloto", de 1958, é a Poesia Concreta.

 

Do ponto de vista da produção poética, o grupo da revista Noigandres começa a apresentar algo essencialmente diferente da poesia de sua época em 1955, quando, no segundo número da revista, Augusto de Campos dá a público os textos de Poetamenos. No ano seguinte, já se sabe, realiza-se em São Paulo a Exposição Nacional de Arte Concreta. Mas é apenas em 1957, com a transferência da Exposição para o Rio, que se dá o momento da plena instauração pública do movimento e do seu nome, graças à forte repercussão do evento na grande imprensa.

 

         Na seqüência, a Poesia Concreta passará por várias "fases" ou momentos programáticos. Entre a Exposição Nacional e os primeiros anos da década de 1960, tem-se o que se costuma denominar a "fase ortodoxa" do movimento. Essa "fase" se caracteriza, do ponto de vista teórico, pela afirmação polêmica dos princípios concretistas; do ponto de vista da produção poética, pela elaboração de poemas regidos por uma clara estrutura geométrica, e pelo esforço de intransitividade do texto, que só remete à sua própria forma ou princípio de composição. A partir de 1961, tem-se o que se costuma denominar a fase do "salto participante", na qual os procedimentos de composição concretista passam a ser encarados como uma "forma revolucionária", capaz de expressar um "conteúdo revolucionário". Ou seja, a "comunicação de formas" deixa de ser o objetivo exclusivo, e as estruturas geométricas passam a nomear temas sociais: fome, greve, lucro, servidão, etc. Por fim, a partir de meados dos anos 60 o projeto comum concretista se dissolve, seguindo cada poeta as linhas de força individuais de sua carreira. Haroldo de Campos, desenvolve uma poesia caracterizada pela riqueza vocabular, pela grande carga imagética e pelo retorno à discursividade espacializada, à maneira de Um coup de dés; Décio Pignatari caminha na direção oposta, propondo um novo tipo de objeto artístico, o "poema semiótico", composto não de palavras, mas de puras formas geométricas associadas arbitrariamente a palavras por meio de uma legenda (por ele denominada "chave léxica"); e Augusto de Campos passa a construir "popcretos", isto é, objetos visuais baseados nos processos de colagem da arte pop, prossegue com os poemas que se estruturam sobre o desenho e a combinação de uma nova tipografia e termina compondo poemas em que o tratamento visual, para usar a denominação de Philadelpho Menezes, é uma "embalagem", isto é, poemas em que a visualidade já nada têm a ver com a funcionalidade da fase "ortodoxa", restringindo-se a revestir um texto comum.

 

         Essa versatilidade dos Noigandres responde por boa parte da sua contínua presença no centro das discussões sobre a poesia brasileira do século XX. De fato, basta observar atentamente o percurso poético e a produção crítica e tradutória por eles desenvolvida para constatar desde logo que é insustentável a visão estereotipada que deles se tentou fixar como um grupo fechado rigidamente em torno de algumas regras de escola. Pelo contrário, o que é notável é o grande esforço de atualização e inovação teórica, bem como a disposição experimental que fez do "concretismo de São Paulo" uma espécie de pai devorador, que sucessivamente incorpora, redefine e leva adiante as proposições e experiências dos movimentos de vanguarda nascidos do seu próprio proselitismo.

 

 

4. O Neoconcretismo

 

         Do grupo inicial concretista logo se cria uma primeira dissidência, centrada na recusa ao "cientificismo" e ao "positivismo" dos Noigandres. É o Neoconcretismo  de Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim. Do ponto de vista da prática poética e do debate de idéias, o ponto mais interessante do Neoconcretismo é a sua recusa à proposição do poema como "objeto útil", integrado às formas da sensibilidade e da vida moderna, e a conseqüente concepção do poema como "não-objeto", isto é, como experiência que inclui necessariamente a participação construtiva do leitor, por meio da interação física com o poema, da manipulação dos seus materiais, etc. Embora vá originar, a partir de 1959, uma grande e significativa produção artística, o Neoconcretismo, em poesia, não apresenta, num primeiro momento, a não ser do ponto de vista de uma copiosa e pouco convincente argumentação teórica, real novidade em relação ao que foi apresentado na Exposição de 56/57 e à obra posterior do núcleo principal da Poesia Concreta.

 

Na seqüência, o Neoconcretismo se vai aproximar bastante da instalação artística, da arte conceitual. E é nisso que reside a sua originalidade: na expansão do conceito de poema a um conjunto de atitudes e práticas não-verbais. O melhor exemplo dessa originalidade talvez seja o "Poema enterrado", de Ferreira Gullar. Essa obra poética era um cômodo subterrâneo, de forma cúbica, no centro do qual havia um grande cubo vermelho; este envolvia, por sua vez, um cubo menor, de cor verde, que envolvia um terceiro, de cor branca, em cuja face inferior o leitor poderia descobrir a palavra "rejuvenesça".

 

 

5. A Poesia Práxis

 

A dissensão neoconcretista ergue uma bandeira que também é brandida pela Poesia Práxis, movimento poético surgido no começo dos anos 60.

 

A Poesia Práxis, que se autodenominava "vanguarda nova", pouco tem a ver com a primeira Poesia Concreta, tanto do ponto de vista dos pressupostos, quanto dos procedimentos compositivos. Mas é, como o "salto participante", uma tentativa de síntese ou compromisso entre as duas maiores tendências da poesia dos anos 60: a "participação social" e a "vanguarda", isto é, o formalismo programático.

 

Seu principal expoente, Mário Chamie, é poeta de notável coerência de processos, pois já em poemas dos seus primeiros livros se encontram as principais características do movimento futuro. Um bom exemplo é "Olho no espelho", do volume Configurações (1956). Aí já se encontra o desenvolvimento paralelístico do poema, tão característico da Poesia Práxis, que faz da estrofe a unidade principal do poema, sem prescindir do verso discursivo.

 

Nos livros posteriores, já na fase programática, apenas se acentua o caráter autodemonstrativo do poema, que explicita desde logo a sua própria dinâmica formal. O custo, para o leitor, é o aumento da previsibilidade das combinações e desenvolvimentos, pois é tal a rigidez e a regularidade dos procedimentos que a leitura usualmente apenas produz o efeito de uma confirmação do já anunciado.

 

Também é constante e ostensivo o caráter "participante" ou "social" da Poesia Práxis, que incessantemente denuncia a desumanidade da vida moderna, do capitalismo, da exploração do operariado e do campesinato, etc.

 

Como boa parte da poesia "engajada" do tempo, também a Poesia Práxis testemunha, assim, por esse lado, além do imperativo ético da denúncia da injustiça social, uma necessidade catártica da consciência burguesa ilustrada nos anos de chumbo do Brasil. Necessidade essa que freqüentemente se resolve num tipo de poesia que pouco sobrevive ao momento e às razões da sua produção.

 

 

6. O Poema-Processo

 

         Uma última decorrência da vanguarda concretista é o Poema-Processo, cujo vulto proeminente é Wlademir Dias Pino, um dos participantes da Exposição de 1956. Lançado em final de 1967, com a usual exposição e os necessários manifestos, o Poema-Processo caracteriza-se desde o início pela recusa radical à discursividade. Tão radical que chega à literalidade: no início de 1968 os criadores do Poema-Processo destroem publicamente livros de poetas "discursivos" seus contemporâneos nas escadarias do Teatro Nacional, no Rio de Janeiro.

 

Propondo-se a combater tanto a discursividade, quanto a poesia "tipográfica" concretista, o Poema-Processo visa, em última análise, a uma poesia sem palavras, ou, pelo menos, a uma poesia em que o signo verbal ocupe um lugar de importância secundária. Por isso mesmo estende de forma inaudita o sentido da palavra "poema", a ponto de poder denominar "poema" a uma passeata ou outra performance coletiva, bem como um objeto gráfico desprovido de letras ou palavras.

 

Visto de hoje, o Poema-Processo, do ponto de vista da produção e da reflexão sobre a cultura, parece apenas um eco — exacerbado e espetacular, é certo — das formulações e experiências mais conseqüentes e radicais levada a cabo, pouco antes ou simultaneamente, pelos poetas concretos do grupo Noigandres.

 

 

 

 

 

dezembro, 2005

 

 

 

franchet@unicamp.br