Leio volume recém-lançado pela Nova Fronteira, Ana Cristina Cesar, que inaugura a coleção Novas Seletas. É um volume simpático, organizado pelo curador da obra de Ana Cristina, o poeta Armando Freitas Filho. É dele a apresentação do livro, como também é dele uma breve nota, à guisa de posfácio, que busca expor as linhas do chamado movimento de "poesia marginal", para nele situar a poeta.
........Os textos vêm em ordem cronológica e se iniciam com um poema datado de maio de 1963, quando a poeta tinha dez anos de idade. É dedicado "a meu pai, bom e viajoso". O mesmo pai que, ao final do volume, junto com os dois irmãos de Ana Cristina, comparece com um breve texto biográfico sobre a filha que se matou na flor da idade e sobre a permanência da obra, a sua fortuna crítica.
........Já a introdução traz a imagem conhecida de outros depoimentos: Ana Cristina, criança ainda sem saber ler, pulando no sofá e ditando poemas à mãe, que os recolhia. A precocidade. E ao longo da introdução e volume, o leitor é levado a contemplar instantes e flagrantes de uma vida intensa e breve como a chama de um fósforo.
........Todo o volume é assim composto sobre um único ponto: a interrupção inexplicável da vida da poeta. E o tom dolorido dessa construção contamina até mesmo o desenho da coleção que inaugura, ao propor que essa é a poeta adequada aos jovens leitores inquietos aos quais a mesma coleção se destina. Trata-se afinal, diz o organizador, de uma poeta que é "menina, moça e jovem mulher, nessa ordem de aparição" e, por isso, "uma contemporânea" dos jovens de qualquer época.
........A leitura dos versos me faz retomar o livro principal de Ana Cristina, A teus pés, na segunda edição da Ática, de 1999, que amplifica o travo de amargura resultante do exame da nova antologia. A seqüência das fotos iniciais me parece impressionante. Os textos, por outro lado, respiram a atmosfera das fotos, transpiram os emblemas de uma época da qual ela mesma, Ana Cristina, foi e continua sendo um ícone.
........Os dois volumes caminham sobre um fio de navalha: nem sempre é possível saber com clareza se cultuam ou celebram a poeta ou a pessoa. Há fotos, há prefácios muito pessoais e, no livro recém-lançado, tocantes depoimentos dos irmãos e do pai. O texto de um dos irmãos, inclusive, é nada menos do que uma carta à irmã ausente.
........O tributo de amor comove. A jovem mulher que não teve futuro, que se negou ao futuro por um gesto violento, precisa ser reconstruída. A forma dessa reconstrução é arqueológica. No museu da memória se expõem e se celebram as fotos, as lembranças, a mitologia familiar. Como se o gesto que cortou o sentido pudesse ser neutralizado pela recomposição do ser na sua única dimensão possível, que é a do passado. Como se a vida que não houve se desdobrasse para trás, em busca de uma plenitude que pudesse tornar suportável o presente dos que a lêem mais de perto ou que escrevem afetivamente sobre ela. O travo melancólico provém, no caso do livro recente, também desse esforço, pois o absurdo da morte breve não se dissolve pela reconstrução de um passado luminoso. A reconstrução o torna, na verdade, ainda mais insuportável.
........Nesse momento, sem desmerecer ou desqualificar o tributo de amor, o que vem para primeiro plano é a eficácia da construção literária: os versos, os trechos que parecem de diário, os registros do cotidiano da aluna, tradutora, professora, viajante, tudo ganha intensidade maior. O sentido passa a habitar, sob a forma de indício ou de disfarce, cada pequena parte disso que ficou sendo a sua obra, ainda por ser inteiramente organizada ou editada.
........Não é, entretanto, uma intensidade que se faz por violência ao texto. Pelo contrário: ou o texto já previa essa leitura, ou a sua forma relativamente frouxa se revelaria muito adequada à forma da leitura que seria a sua.
........Inclino-me, relendo, a pensar que a forma da escrita não apenas permite a operação de leitura passional, mas que a incentiva, que a requer desde o princípio.
........E se é verdade que a rápida notação, a linguagem informal, a apresentação de flashes das angústias sexuais, familiares, literárias, tudo isso fica permeado pelo destino escolhido, pela vida voluntariamente truncada ao meio, também é verdade que esses traços formais pressupõem e desejam uma leitura dramática, tensionada, ainda que não determinada pelo sentido que depois veio redimensioná-los numa direção única.
........Esse sentido único de leitura, instaurado pelo suicídio, por sua vez se instala definitivamente em todas as imagens críticas. É o solo sobre o qual a crítica, numa direção ou noutra, tem de caminhar.

No prefácio de A teus pés, por exemplo, escreve Armando Freitas Filho:
'Escrevo in loco, sem literatura', afirma A. C. em texto inédito. Esta frase sucinta revela toda sua práxis de escritora.
E continua, mais adiante:
os raros que possuem essa percepção sabem que a poesia nesse estado de latência somente se deixa surpreender em plenitude quando a violência que reduz sua quantidade, paradoxalmente, amplia e concentra seu extrato, seu leque de significados, o número de suas raízes, agora expostas, como uma planta que se arranca do vaso.

........As raízes expostas, o estado de latência. Essas imagens se aplicam sem dúvida aos textos de Ana Cristina. Mas ganham especial força e sentido a partir do ângulo obrigatório criado pelo desenho biográfico.
........Entretanto, com ou sem distância de leitura, o que não parece possível é aceitar sem comentários a afirmação da autora, transcrita como testemunho no texto de Armando.
........Na verdade, é o contrário disso o que sugerem as inúmeras alusões e apropriações de textos e nomes emblemáticos da cultura ocidental no texto de Ana Cristina. Baudelaire, para citar logo o mais importante, é nomeado, incorporado e, mesmo, num sentido bem moderno, implacavelmente pilhado por Ana Cristina. O mesmo acontece com Elisabeth Bishop e com Sylvia Plath, para não mencionar Bandeira e Drummond.
        "Sem literatura" é, antes, a forma literária por excelência de Ana Cristina Cesar. Ou, olhando por outro ângulo: autobiografia, registro imediato, fala confessional são configurações literárias da sua produção in loco. Escrever "in loco, sem literatura" não é, portanto, uma declaração que aspira à descrição da verdade, mas um desejo de estilo. Um desejo de efeito de verdade. Ou seja, um ideal literário.
        No caso, como mostra a história, um ideal atingido, pois redundou na forma específica de Ana Cristina não apenas conceber e praticar a literatura, mas também na forma que a sua biografia e a herança dos seus temas impuseram à leitura dos seus textos.
........Enquanto avaliava o efeito da leitura conjunta da antologia e do livro A teus pés, ocorreu-me uma explicação da origem do poder persuasivo e sedutor dessa escrita, recebida nessa clave de leitura. Pareceu-me que esse poder procedia daquilo que Bachelard denominou "complexo de Ofélia". Sob esse nome, o filósofo identificou e descreveu um dos grandes complexos literário-afetivos do Ocidente: a bela mulher morta na flor da idade, transtornada na sua razão, e que nos contempla de sob o espelho de água, ainda com os gestos congelados de um canto interrompido. Mas se é esse poderoso complexo que eletrifica hoje a leitura dos textos fragmentários e lacunares que se juntam sob o nome de Ana Cristina, há um corolário que não pode ficar na sombra: o de que o complexo de Ofélia não parece uma imposição póstuma, mas sim aparece como elemento central dessa poética, como forma estruturadora dos textos e fragmentos. Melhor dizendo, como núcleo anunciado de uma construção de personalidade poética.
........O desarranjo interior, a incompletude e volubilidade da linguagem, o amor proibido, a carência de sentido na passagem do tempo, tudo isso se conjuga todo o tempo com a estrutura frouxa e lacunar dos textos como índices de impossibilidade. Como resume, numa clave otimista, o poeta Armando Freitas Filho, no final da sua apresentação do livro recém-lançado, o que Ana faz é "pegar o pássaro sem interromper o seu vôo".
........É uma boa imagem da forma de leitura que o texto, a vida, a morte e a fortuna crítica de Ana Cristina fixaram para nós: tentamos a todo momento adivinhar a posição e os movimentos do pássaro, cuja direção de vôo conhecemos. Mas essa posição e movimentos não nos permitem acesso ao seu corpo, nem à compreensão do seu destino. Permitem, sim, que nos detenhamos, com prazer, na contemplação da sua arte de se manter no ar e, por breves instantes, elegantemente se mover de uma parte a outra parte.
........Nesse sentido, para as novas gerações, que começarão a freqüentar o texto de Ana Cristina por meio do livro da coleção Novas Seletas, o caminho está bem traçado. Ana Cristina poderá ser lida em dois registros, anunciados nos dois textos de Freitas Filho: como a jovem Ofélia, que fala diretamente, com as suas palavras e a sua biografia, aos jovens leitores que são, em princípio, seus contemporâneos no espaço de vida em que ela brilhou; como um emblema de uma época e de um projeto literário que se chamou 'poesia marginal'.
........O que seria preciso verificar é como esses dois registros se reforçam ou enfraquecem mutuamente. Ou seja, qual a relação tensa que se estabelece entre as duas postulações: a que enfatiza o caráter único da obra, definido pelo gesto biográfico decisivo, e a que enfatiza o seu caráter emblemático como síntese dos ideais de uma geração.
........Penso que, embora se tenha fixado a imagem dos anos da 'poesia marginal' como um período no qual a literatura andou muito próxima da vida, talvez a forma mais interessante de formular o problema seja a de que se tratou de uma época na qual dominou, em alguns grupos e espaços, um projeto de vida que consistia em fazer da vida algo muito próximo da literatura.
........Nesse sentido, a vida/obra de Ana Cristina Cesar é um dos momentos centrais na constituição, entre nós, da dicção e dos efeitos culturais e comportamentais daquilo que se denominou, no mundo da poesia inglesa, confessional poetry. Ana Cristina é um dos lugares principais (senão o principal) do novo discurso poético, que funda a produção e a leitura do fragmento, a recolha do lugar-comum e a incompletude estética como resultado da sinceridade confessional ou como índices da impossibilidade mesma da confissão total. Esse é, do meu ponto de vista, um dos seus méritos de novidade. O de ter aberto, no campo dominado pela poética construtiva e objetivista das vanguardas vindas dos anos 50, uma nova forma de produção, circulação e, sobretudo, recepção de poesia.
........E agora posso perceber o que, na configuração geral do volume, deu-me o especial travo de leitura. E foi que à dimensão propriamente literária, que vim descrevendo, se sobrepôs, por conta da especial natureza dos textos que rodeiam a coletânea, a dimensão privada e dolorosa de um fato que é absorvível e contemplável apenas do ponto de vista do recuo histórico e da observação crítica. É certo que essa dimensão acaba posta a serviço da literária. É gesto de amor, mas visa à redenção do outro gesto, irredutível como eco familiar e afetivo, e que, por isso mesmo, precisa se inscrever como produtor de sentido que não morre.
........O viés produzido por esse gesto e o pathos que ele produz operam uma certa distorção, como as lentes de aumento. Levam a ler o texto com uma disposição complexa e inusual. Foi isso o que primeiro me chamou a atenção nesse volume. E penso que seja o seu principal apelo para as novas gerações a que ele se destina.
........No que diz respeito ao corpo da antologia recém-lançada e às notas inseridas pelo organizador, tenho poucas observações. Dizem respeito exclusivamente a algumas alusões, entre as muitas que o organizador anotou, que ficaram sem registro.
........A primeira é a mais importante. Ela ocorre no texto "21 de fevereiro", no qual se lê "abomino Baudelaire querido" e, logo abaixo:

Minha dor. Me dá a mão. Vem por aqui, longe deles. Escuta, querida, escuta. A marcha desta noite.

........Trata-se, no caso, de aproveitamento livre destes versos do soneto "Recueillement", de Baudelaire:

Ma douleur, donne-moi la main; viens par ici
Loin d’eux. [...]
Entends, ma chère, entends la douce Nuit qui marche.

........A anotação, com a transcrição de uma parte maior do soneto, permitiria sublinhar o fato de que, por meio da incorporação das palavras de Baudelaire, Ana Cristina traz, para dentro do seu texto, todo o clima funerário da imagética que o poeta francês dinamiza nesse poema.
........Da mesma forma, penso que valeria a pena acrescentar uma nota ao poema "Travelling", no qual se lê:

Elisabeth reconfirmava, 'Perder
é mais fácil que se pensa'.

........Aqui, porque se trata de alusão ao estribilho de um conhecido poema de Elisabeth Bishop, poeta que foi traduzida por Ana Cristina. A particular fusão biografia/obra que anima o texto de Ana Cristina, assim, ganharia com a indicação.
......
..No caso, o poema se intitula "One art" e o estribilho é:

.......The art of loosing is not hard to master.

........Por fim, talvez valesse registrar também que o poema metalingüístico "Nada, esta espuma" assim se nomeia por conta de um célebre soneto de Mallarmé, que começa exatamente por "Rien, cette écume, vierge vers".
........Essas observações, se são reparos, são reparos pequenos. Na verdade, são apenas contribuições ao organizador, para as próximas edições do livro, que certamente virão.
........E embora houvesse outros pontos de interesse a discutir no volume, do ponto de vista da sua organização, não vou me deter agora sobre eles. O que me importava aqui, mais do que fazer uma resenha crítica desse volume particular, era aproveitar a oportunidade de refletir, por alguns momentos, sobre a sensação estranha que há tempos me causa a leitura extensiva da obra de Ana Cristina Cesar.



O livro: Armando Freitas Filho (org.). Ana Cristina Cesar. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004, 142 p.



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