©regina lustosa
 
 
 
 
 
 

 

 

"Quando eu não tenho o que fazer", diz o rapaz, "deito no sofá da sala e fico vendo lagartixa pegar mosquito no teto".

Aí está, penso eu. Deve ser por isso que ele é assim tão centrado. Tranqüilão e sorridente.

Que ocupação mais prazerosa e instrutiva, contemplar lagartixa! Você já viu como ela bate a cabeça?

Parece que está querendo falar.

Criou-se o mito da velocidade. Todo mundo corre muito sem saber para onde. É preciso estar em dia? Quantas carnificinas inúteis. Tantos lançamentos por hora. Quantos foguetórios por nada.

Mas ele não. Ele, ali deitado como fica, talvez penetre num segredo qualquer. E a seu jeito paciente talvez nem diga o que viu.

Para quê?

Ver o em si de cada coisa, contemplar sua paisagem interior ou inscape, como propôs Hopkins, é experiência transfiguradora. Ensina a respeitar o que há, o que é, o que existe assim-tal-como e ninguém, a não ser a própria vida, pode levar a deixar de ser a seu modo.

O olhar oriental repuxado parece se aprimorar nos detalhes. Em sua pobre cabana, o japonês Kamo no Chomei (1153-1216) tinha instalado uma imagem de Buda entre cujas sobrancelhas, ao crepúsculo, brilhava um raio de sol. Seu pensamento ia fluindo para o ponto em questão. Solidificava-se ali. Penso que isso o alimentava. Ainda hoje, muitos filmes chineses, japoneses, coreanos ou vietnamitas freqüentemente fazem closes de insetos, plantas, pedras, terra, água. Convém olhar com atenção um grão de areia ou um rosto.

A multiplicidade da vida natural é irredutível. Como fazer closes do ar?

Quem ouve a música da chuva, o som do vinho derramado nas taças?

Aliás não havia ideal mais nobre, entre os antigos gregos, do que contemplar o cosmos. Em Homero e em Platão se fala da virtude imanente a tudo aquilo que é, ou há, e de como essa virtude lhe permite ser o que é, mantendo a forma.

Mais ou menos como o que disse Hopkins?

Acho que sim.

Mas as lagartixas, quem sabe?

É preciso olhar as coisas para esvaziar a cabeça, que muitas vezes não passa de um rádio bobo falando.

Quanto maior a capacidade de contemplar, maior a de ser feliz.

Ou melhor: contemplar é ser feliz.

 

 

 

 

 

novembro/dezembro, 2006
 
 
 
 
Leonardo Fróes. Poeta conhecido por suas atividades na imprensa e como ensaísta e tradutor dos mais respeitados, já transpôs, para o português, livros de William Faulkner, George Eliot, Malcolm Lowry e Lawrence Ferlinghetti, entre outros. Montanhista e naturalista amador, traduziu também livros de especialistas em ciências da natureza, como o ornitólogo Helmut Sick e o mirmecólogo Edward O. Wilson. Algumas Publicações: 1)  Poesia: Chinês com Sono e Clones do Inglês (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2005); Vertigens (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998) e Argumentos invisíveis (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1995) — este, ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia, em 1996. 2) Tradução: Contos Completos, de Virginia Woolf (São Paulo: Editora Cosac Naify, 2005); Esquetes de Nova  Orleans, de William Faulkner (Rio de Janeiro: José Olympio, 2002); O triunfo da vida, de Shelley  (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001) — tradução e ensaio; Trilogia da paixão, de Goethe  (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999) — tradução e ensaio; Panfletos Satíricos, de Jonathan Swift (Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 1999); Middlemarch, de George Eliot  (Rio de Janeiro: Editora Record, 1998) — trabalho que  lhe rendeu o Prêmio Paulo Rónai de Tradução, em 1998. Também é dele a compilação de histórias e lendas advindas da tradição oral do Oriente, Contos orientais (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003) e a  biografia do poeta Luiz Nicol Fagundes Varella, Um outro. Varella (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1990).
 
 
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