Canto III

Sentei-me nos degraus da Dogana
Porque as gôndolas custavam muito caro, nesse ano,
E não havia "aquelas pequenas" havia uma face,
E o Bucentauro a uma vintena de metros uivando "Stretti",
E as vigas-mestras iluminadas, esse ano, no Morosini,
E pavões em cada de Koré, ou talvez houvesse.
.......Deuses flutuavam no ar anil
Luminosos deuses e toscanos, de voltas antes de orvalho ser vertido.
Luz: e a primeira luz antes sequer de o orvalho haver caído.
Paniscos, e do carvalho, dríade,
e da maçã, mélida,
Por todo o bosque adentro, e as folhas estão cheias de vozes,
Em sussurro, e as nuvens curvam-se sobre o lago,
E há deuses sobre elas,
E na água banhistas de amendoada brancura,
A água prateada vidra o mamilo voltado para cima,
........Como Poggio notou.
Verdes veios na turquesa,
Ou nos degraus pardos sobem sob os cedros.

O meu Cid cavalgou para Burgos,
Até à porta pregueada entre duas torres,
Bateu com o conto da lança, e a criança apareceu,
Una ninã de nueve ãnos,
Na pequena galeria sobre a porta, entre as torres,
a ler o decreto, voce tinnula:
Que ninguém fale, dê pousada, ajude a Ruy Dias,
Sob pena de ter o coração arrancado, e posto no pico de um pique,
E ambos os olhos vazados, e todos os bens confiscados,
"E aqui, Mio Cid, estão os selos,
o selo real e a firma".
E ele desceu de Bivar, Mio Cid,
Sem deixar lá falcões nos seus poleiros,
E roupa alguma lá nas prensas,
E deixou a sua arca com Raquel e Vidas,
O grande baú de areia com os agiotas,
Para arranjar a paga da mesnada;
E fez-se de caminho para Valencia.
Inês de Castro assassinada, e a parede
Aqui despida, aqui feita para ficar.
Triste destroço, o pigmento escama-se da pedra,
Ou argamassa descascada, Mantegna pintou a parede.
Trapos de seda, "Nec Spe Nec Metu".

Tradução de Jorge de Sena

Canto XXX

Um lamentar, lamentar ouvi um dia,
Artemis que cantava, Artemis, Artemis
Contra a Piedade erguia a sua queixa:
A Piedade faz murchar florestas,
A Piedade mata as minhas ninfas,
A Piedade poupa tanta coisa má.
A Piedade conspurca Abril.
A Piedade é a raiz e a nascente.
Ora se ledo ser me não segue
É por culpa da Piedade,
É por culpa de que a Piedade proíba o serem mortas.
Todas as coisas estão impuras nesta estação,
Eis a razão, ninguém pode buscar a pureza
Tendo por mácula a piedade
E as coisas tornadas perversas;
Não mais as minhas setas voam
Para matar. Nada ora é limpamente morto
Mas se desfaz de podre.

Em Pafos, certo dia
............................também ouvi:
... não vás brincar com o jovem Marte
Mas ela teve pena de um pateta trêmulo,
E cuida seu fogo,
E conserva quentes as brasas dele.

O tempo é o mal. Mal.
..............................Um dia e mais dia
Andava aflito o jovem Pedro,
..............................um dia e mais dia
depois que Inês foi assassinada.

Vieram os grandes Senhores a Lisboa
..............................um dia e mais dia
Prestar homenagem. Sentada lá
..............................olhos mortos,
Morto cabelo por debaixo da coroa,
O Rei ainda jovem lá ao lado dela.

Chegou Madame YAH
Vestida de luz do altar
E com o preço dos círios
"Honra? Bolas para a Honra!
Leve dois milhões a cave."
..................................É vindo Messire Alfonso
E partida é por mar para Ferrara
E passou por aqui sem dizer água vai.

Pelo que gravámos isso em metal.
Aqui trabalhando no templo de César:
..............Ao Príncipe Cesare Borgia
..............Duque de Valentino e de Emília
... e aqui foi que eu trouxe gravadores de tipos
e impressores não vis nem vulgares
...............(in Fano Caesaris)
notáveis e competentes tipógrafos
e um cunhador para tipos gregos e hebraicos
chamado Messire Francesco da Bologna
não só dos tipos comuns mas ele cogitara
de uma família nova de nome cursivo ou letra de chancelaria
nem foi Aldo nem nenhum outro mais foi
este Messire Francesco quem gravou para Aldo os seus tipos
com tal graça e encanto como é sabido
.................Hieronymus Soncinus 7 de Julho de 1503
E quanto o texto copiámos
do de Messire Laurentius
e de um códice outrora dos Senhores Malaestas...

E em Agosto deste ano morreu o Papa Alessandro Borgia,
..................II Papa morì.


Tradução de Jorge de Sena

Notas para o Canto CXVII e seguintes

Pelo lampejo azul e os momentos
...........................benedetta
o novo pelo velho
....................que é tragédia
E por um belo dia houve paz.
O pássaro de Brancusi
..............no oco de troncos de pinheiro
ou quando a neve era como espuma do mar
...................Céu crepuscular chumbado com ramos de álamo.
No sopé da Rupe Tarpeia
.........................lavai com lágrimas as vossas invejas —
Fazer uma igreja
.........................ou um andar dedicado aos Zagreus
Filho de Semele
Sem inveja
.................como o duplo arco de uma janela
Ou qualquer grande colunata

....................................................................................

M' amour, m' amour
..............que amo eu e
.....................onde estás?
Que eu perdi o meu centro
...............lutando contra o mundo.
Os sonhos chocam-se
................e despedaçam-se —
e eu que tentei criar um paradiso
..................................................terrestre.

....................................................................................

La faillite de François Bernouard, Paris
ou um campo de cotovias em Allègre,
..................."es laissa cader"
tão alto para o sol e depois tombando,
..................."de jois sas alas"
para compor aqui os caminhos de França.

Dois ratos e uma borboleta os meus guias —
Ter ouvido a farfalha arquejando
..................como uma ponte sobre mundos.
Que os reis encontram-se na ilha deles,
..................onde não há comida após voar do pólo.
Serralha o mantimento
..................como para entrar no arcano.

Ser homens não os destruidores.


Tradução de Jorge de Sena

Canto XXXVI

Pede-me uma dama
.....Falar na hora azada
Procura ela razão para um afeto, muitas vezes fero
Que é tão soberbo em se chamar Amor
Quem o nega ora pode ouvir o vero
Pelo qual falo aos sábios neste agora
Sem esperança que os de baixo cor
.....Possam trazer visor a tal razão
Mas não há natural demonstração
.....Não desejo tentar fazer provar
Ou dizer onde nasceu
O que é sua virtu e seu poder
Seu ser e todo mover
Ou o deleite ao qual se chama "amar"
Ou se mostra-nos o homem ao mirar.

Onde mora essa memória
.....ele toma seu estar
Forma diáfana de luz em treva
Qual sombra vem de Marte e permanece
Criada, tendo um nome de bom senso,
Hábito do espírito,
......desejo do coração;
Veio de forma vista que, entendida,
Fica e permanece
......ao alcance do intelecto
Onde não tem nem peso nem quietude
Não descendendo pela qualidade porém a brilhar
Para si o seu próprio efeito infindo
Não em deleite mas ciente estando
Nem sua verdadeira semelhança pode deixar em um qualquer
lugar.
Não é vertu mas vem da perfeição
Que não é postular pela razão
Porém é sentido, eu digo.
Além salvação sustém a sua força de juízo
Supondo ser a intenção parceira e companheira da razão
Pobre em discernir, ficando assim amiga da fraqueza
Muitas vezes seu poder chegando com a morte no desfecho,
Paire ele parado
.....e assim o oscilar em contrapeso.
Não que fosse um oposto natural
Mas só afastada um pouco do perfeito,
Que não diga nenhum homem que o amor vem do acaso
Ou não firmou o domínio
Mantendo seu poder mesmo
......Que a memória não o tenha nunca mais.
Chegou para ser
......quando o só desejo
Pela demasia
Emergiu da medida natural,
Jamais com o ornamento do descanso move-se mudando a cor
Seja para riso ou para pranto
Contorcendo o rosto em medo
.....apenas descansa um pouco
No entanto verás Que ele sempre está
Com pessoas que o merecem
E sua estranha qualidade move suspiros a desejar
Que os homens vejam aquele vestígio elaborado em sua mente
E com tal inquietação como jorra a flama.
Não podem os incapazes formar a sua imagem,
Ele próprio não se move e tudo ele traz para a sua paz,
Nem gira procurando seu deleite
Nem mesmo procurando examinar
Ser grande ou pequeno.
Ele aspirou identidade e cor da homogênea natureza
Assim fez o prazer em aparência
Nem pode ficar oculto nessa afinidade,
Lança os dardos da beleza que não são selvagens
Formado em tal temor um homem segue
A merecer o espírito, que invade.
Nem é sabido pela sua face
Mas divisado em branca luz, o todo,
Atinge seu alvo.
Quem ouve, sem ver a forma,
Mas guiado por sua emanação.
Sendo partido, projetado em cor,
Dividido em plena treva
Apascenta a luz, um movendo-se pelo outro,
Sendo separado,
......separado de toda falsidade
Digno de se crer
Só de si provém mercê.

Vai, canção, certamente podes ir
Para onde te apraz
Pois és tão elaborada que esses teus preceitos
.....Que esses teus preceitos
Serão louvados pelos teus intérpretes,
Estar com outros não é o teu desejo.

"Chamou tronos, balascio ou os topázios"
Eirugina não foi entendido em seu tempo
"o que talvez explique o atraso em condená-lo"
E foram a buscar os maniqueus
E não acharam, ao que eu saiba, maniqueus
Assim desenterraram, e condenaram Scotus Eirugina
"A autoridade vem da razão certa
......nunca pela via oposta"
Assim sendo a demora em condená-lo
São Tomás de Aquino com a cabeça mergulhada num vácuo,
Aristóteles em qual vir num vácuo?
Sacrum, sacrum, inluminatio coitu
Lo Sordels si fo di Montovana
......de um castelo chamado Goito.
"Cinco castelos!
Cinco castelos!"
.....(o rei deu-lhe cinco castelos)
"E que diabo eu sei sobre tintas?!
Sua Santidade escrevera uma carta
....."CHARLES, o Sarnento de Anjou....
.. o modo como você trata seus homens é um escândalo...."
Dilectis miles familiaris...castra Montis Odorisii
Montis Sancti Silvestri pallete et pile...
In partibus Thetis....terra das vinhas
..................................................terra lavrada
..................................................a terra inculta
..................................................pratis nemoribus pascuis
..................................................com jurisdição legal
seus herdeiros de ambos os sexos
...venderam o maldito lote seis semanas depois,
Sordellus de Godio
.............Quan ben m'albir e mon ric pensamen.

Tradução de José Lino Grunewald

Canto XLV

Com Usura

Com usura homem algum terá casa de boa pedra
cada bloco talhado em polidez
e bem ajustado
para que o esboço envolva suas faces,
com usura
homem algum terá paraíso pintado na parede de sua igreja
harpes et luz
ou onde a virgem receba a mensagem
e um halo projeta-se do inciso,
com usura
homem algum vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas
pintura alguma é feita pra ficar
nem pra com ela conviver
só é feita a fim de vender
e vender depressa
com usura, pecado contra a natureza,
sempre teu pão será rançosas códeas
sempre teu pão será de papel seco
sem trigo da montanha, sem farinha forte
com usura uma linha cresce turva
com usura não há clara demarcação
e homem algum encontra sua casa.
O talhador não talha sua pedra
o tecelão não vê o seu tear
COM USURA
não vai a lã até a feira
carneiro não dá ganho com usura
a usura é uma peste, usura
engrossa a agulha lá nas mãos da moça
E só pára a perícia de quem fia. Pietro Lombardo
não veio via usura
Duccio não veio via usura
Nem Pier della Francesca; Zuan Bellini não pela usura
nem foi pintada 'La Calunnia' assim.
Angelico não veio via usura; nem veio Ambrogio Praedis,
Não veio Igreja alguma de pedra talhada
com a incisão: Adamo me fecit.
Nem via usura St. Trophime
Nem via usura Saint Hilaire.
Usura oxida o cinzel
Ela enferruja o ofício e o artesão
Ela corrói o fio no tear
Ninguém aprende a tecer ouro em seu modelo;
o azul é necrosado pela usura;
não se borda o carmesim
A esmeralda não acha o seu Memling
A usura mata o filho nas entranhas
Impede o jovem de fazer a corte
Levou paralisia ao leito, deita-se
entre a jovem noiva e seu noivo
...................CONTRA NATURAM
Trouxeram meretrizes para Elêusis
Cadáveres dispostos no banquete
às ordens da usura.

N.B. Usura: Gravame por uso de poder aquisitivo, taxado sem conside-
rar as possibilidades de produção; freqüentemente sem relação com
as possibilidades da produção. (Daí a quebra do banco dos Médicis.)

Tradução de José Lino Grunewald