Enterrada aqui, como oferta
deste chão, uma caixa-preta. Antes, esta mesma caixa, cubo sem erros,
existia aos nossos olhos, o que não existia era o objeto de grande
importância, mas de pequeno valor que ela continha, não nos via.
Enterrada, perdemos a caixa e o objeto velado. Não somos mais vistos por
ela nem por seu ventre prenhe de segredo. Porém, temos a memória: relume
que encerra uma luz capaz de descobrir caixas-pretas, corpos e lâminas
cegas de terra. Obra desaparecida. Assim, ao dobrarmos cada esquina,
desta ou de qualquer cidade, sabemos que, o que ficou ainda existe, o
que não vemos nem nos olha é uma grande tela cheia de
detalhes.
12:51
Manchamos o pano claro do dia
com sangue. Manchamos outro pano ao tentar limpar o primeiro. Não
limpamos o primeiro. A menina chinesa não tinha nenhuma mancha preta no
céu claro de sua pele, nenhuma revelação. Calçava botas ortopédicas.
Nenhum cego ri daqueles que enxergam (com o garfo, Borges ciscava o
prato tentando encontrar pedaços de carne). Ninguém incendeia objetos ao
tocá-los. Ninguém tem formigas deslizando nas veias. Nenhuma puta tem
mil bocas, pois só temos um pau. Ainda não tiramos a poeira das
coisas.
Deste outro
lado
1. Um menino chora em Pequim. O
olho não vê. Mas o corpo, certeza de sentidos, sente. Alguém lê num
livro vermelho: O inimigo morrerá por si mesmo. Ninguém entende o por si
mesmo. A monótona sussurração das moscas esconde o barulho das lágrimas.
Qual olho não vê? Qual corpo não sente o outro corpo morto? Medita
quarenta dias e quarenta noites as virtudes do homem, não são muitas.
Todo gesto exige cautela e toda cicatriz um pano para cobri-la.
2. Deste outro lado ninguém percebe
a sujeira debaixo das unhas, o cheiro ruim de enxofre que vem daqueles
lados. Um menino ainda chora em Pequim. Quarenta dias e quarenta
noites.
3. Toda cicatriz exige um pano para
cobri-la e todo gesto, mesmo o mais visceral, um pouco de
cautela.
(Do livro Céu
Vermelho, inédito)