FAROL

 

Flor amarela na praia,

farol à luz do sol.

 

Ir sem rumo, não explicar

porque luz amarela é farol.

 

As coisas são como são

e eu penso nelas sendo

 

como quero que sejam:

um farol e tudo o mais.

 

 

 

 

 

DISPERSÃO

 

Eu estava ali,

sem ficar, às tontas,

 

a mulher veio

de onde não sei,

 

de repente grita

"meu poeta" e se vai,

 

eu fico um minuto

longe dali,

 

sem saber o que

move certa gente

 

a ser tão dispersa

como eu.

 

 

 

 

 

DEFINIÇÃO

 

O poema

no avesso do som, 

no refúgio do silêncio.

Não espero sol

nos versos que gesto.

Defino a margem

na sombra.

 

 

 

 

 

CASTELO

 

O artista molda seu castelo na praia.

Que proveito tiras esculpindo a areia?

Nenhum, diz — e acompanha, no azul,

o silêncio do vôo infinito da gaivota.

 

 

 

 

 

SILÊNCIO

 

Meu silêncio é de dentro,

não ausência de sons.

Silva o vento e eu escuto o vento,

sem falar na sonoridade

de meus oblíquos passos.

 

Meu silêncio atroa nos cantos

escuros do ser aturdido,

ajunta-se a outros silêncios

que me acompanham na vereda

por onde caminho, perdido.

 

Meu silêncio deixa-me vígil,

como se mil tambores surdos

percutissem meus pobres tímpanos.

Meu silêncio retumba na estrada

e, um dia, ecoará na tumba.

 

 

 

 

 

GRITOS NA NOITE

 

Um grito cinde o crepúsculo

e gritos invadem o quarto.

A noite invade o domínio

dos gritos, sangra o crepúsculo,

rebelam-se as sombras das cores.

A cor dos gritos, a cor da noite

é selvagem como o crepúsculo.

O silêncio, o imprescindível silêncio

oculta os gritos dentro da noite.

 

 

 

 

 

METEMPSICOSE

 

         "Aí estava o gato, ... e pensou, enquanto alisava o pêlo

            preto, que aquele contato era ilusório e que estavam como

            separados por um cristal, porque o homem vive no tempo,

            na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade

            do instante".

                        (O SUL, Jorge Luis Borges, trad. de Carlos Nejar)

 

Cá de onde estou, vejo o gato

engalfinhando-se com uma bola,

lúbrico e estabanado, no pátio.

 

Deve ser da índole dos felinos

— alguma coisa de herança —

o fazer coisas simples e puras.

 

Na  manhã, nesta mesma manhã,

invejo o gato e a inconseqüência

de seu ato lúdico, sem escrúpulo.

 

Cogito que em outros tempos

o gato travesso talvez fosse

o poeta aflito que ora o espreita.

 

 

 

 

 

ILHAS

                   John Donne: "Homem algum é uma ilha

                        completa em sim mesma: todo homem

                        é um fragmento do continente, uma parte

                        do oceano". (Meditação 17)

 

Espaço acima, atrás,

adiante: mar — ilhas,

com tenção de açaimar

ondas, vigor de marés —

 

mares nunca navegados

nem dantes nem ‘pós.

 

Veleiros sem sextante,

ilhas do obstinado mar,

sempre a rechaçar ondas

adiante, acima, atrás.

 

 

 

 

 

INÉRCIA

 

Inércia, o ócio

lento, a gema

de onde brota.

 

Não há trégua

para o tempo.

 

Fuga, vertigem,

turbilhonamento.

 

A passo e passo

o instante, o fim.

 

 

 

 

 

FLAGRANTE

 

Pela rua vazia,

o homem curvado

Ao próprio peso,

 

para de súbito,

olha atentamente

o céu de chumbo,

 

abre o guarda-chuva,

à pressa, some

de meus olhos

 

sem que eu saiba

seu pensamento,

 

que eu saiba dele

alguma coisa.

 

 

 

 

 

O LEQUE DA CHUVA

 

Da janela, para fora, o leque da chuva,

o verde daquela árvore esmaecido

porque falta o brilho do sol, porque chove.

 

Através da gelosia, ávidas pupilas

caem sobre o pátio, as cores do arco-íris,

remanente do temporal, agora só luz.

 

Uma mulher sorri com olhos claros,

o lenço na úmida boca, colhe verde ramo.

Cismo sobre as possibilidades do amor.

 

 

 

 

 

NEM AÍ

 

A sombra da mulher no muro,

o revérbero do sol

na vidraça, o passo miúdo,

eu daqui posso ver

o lado cego,

os movimentos desviados,

ainda que pareça feliz.

Aproxime-se e confirme:

ela não está nem aí

para preocupações metafísicas.

 

 

 

 

 

UM ROSTO

 

Um rosto visto

na janela do trem

que partia,

 

nunca mais visto

apesar de todas

as janelas de trem,

 

desde então,

serem vigiadas

à exaustão.

 

 

 

 

 

QUE PENA!

 

Francelina, que decepção!

Foste a musa de meus oito anos,

ainda te vejo, airosa, com a sombrinha

de lado, o vestido curto mostrando

os bonitos joelhos, linhando comigo,

até doerem-me os olhos.

Nem me incomodava a comichão

dos micuims grudados nas partes.

 

Decepcionei-me, não com tuas rugas,

nem com o rosto besuntado de cremes

ou os lábios vermelhos de batom barato.

Foi com o desmancho da imagem

guardada com carinho, entre tantas outras,

nos escaninhos da memória,

que veio pela tua debochada voz de gralha:

pra você é de graça! Que pena, França.

 

 

 

 

 

CANTO DE PÁSSARO

 

Às vezes o canto de um escondido pássaro

diz tudo o que precisa ser ouvido.

Muitas vezes é um pássaro de verdade

entre as folhagens de densa floresta.

Nem sempre o pássaro é verdadeiro

e a floresta não passa de uma imagem.

Mas o canto de um pássaro sempre traz

muita claridade às trevas do mundo.

Seja pássaro de verdade ou não,

ou seja a floresta pura metáfora.

 

 

 

(imagens ©john foxx)

 

 

 

 

 

 

 

Fausto Valle (Fausto Rodrigues Valle). Médico, nascido em 1930, em Araxá, Minas Gerais. Enraizou-se em Goiás desde o primeiro ano de vida. Foi professor universitário, exercendo também cargos de direção na Universidade Federal de Goiás. Sua pequena produção literária da juventude perdeu-se no tempo e no espaço. Reativou-se literariamente no ano de 1988, quando publicou seu primeiro livro. Desde então, escreve regularmente. Sua obra: A fonte do sal (poesia, Zamenhoff Editores, 1988), Cravos sobre a mesa (poesia, Editora Kelps, 1992), Relógio de areia (poesia, Editora Kelps, 1998), Aldeia absurda (poesia, Editora Kelps, 1999), Confraria dos marimbondos (contos, Editora Kelps, 2001), Um boi no telhado (contos, R&F Editora, 2005), Poemas dispersos (poesia, EditoraKelps/Editora UCG, 2005). Escreveu uma peça de teatro, O escolhido. Escreveu textos para teatro de mamulengos. Tem artigos, poemas e contos espalhados na internet, em sites de outros escritores. Publicou poemas na revista portuguesa "Palavras em Mutação", a convite — e em mais duas revistas brasileiras. Recebeu os prêmios: Menção honrosa no extinto concurso José Décio Filho (1991), com o livro Cravos sobre a mesa; Bolsa de Publicações Wilson Cavalcanti Nogueira, versão 1997, da Fundação Cultural de Pires do Rio, com o livro Relógio de areia; Troféu Goyazes 2004 (Bernardo Elis, categoria conto), concedido pela Academia Goiana de Letras. Morreu em 12 de maio de 2010, em Goiânia.

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