©rommert boonstra
Desconhecia o vexame
da crença.
Não responderia
ao apelo externo.
Aprendeu a se deslocar parado.
Nos dados biográficos,
nunca largou o hospício.
E os apontamentos
listavam apenas o vegetar
dos cílios e a gradação
dos antibióticos.
Ocupado pela inércia,
descobriu o talento
de vadiar a verdade.

(As Solas do Sol, 1998)

Lavei a esposa doente. Lavei a esposa enquanto se ia.
Tirei suas roupas sem desejo, o imenso carregado
e posto em estreita banheira.
Ensaboar o que não se move, o que não se respira,
ensaboar o invisível.

Desmoronamos.
Cuidei do tremor dela com meu temor
e o desespero me reconheceu como seu pai.

Imaginava a morte lírica, a córnea forrada
de ervas, a lua laminando a barba de abelhas.
Quando é física, nenhum vocábulo ou pensamento é novo.
Empenhamos a mesma prece desde os imigrantes,
o mesmo grito afoito, o mesmo rito das gaivotas.
A morte nos conserva.

Encerrados na superfície
encerada, a fundura ilesa,
as juntas com as rodas represadas na areia.
O embarque é ligeiro, ao saque das notas do arco.

Ela se preparou ao desenlace,
restringindo gradualmente os territórios,
da cozinha a uma bandeja, da sala a uma gaveta,
do corpo ao túmulo.

(Terceira Sede, 2001)

Nasci vingativo,
negando
o que deveria perdoar,

omitindo
o que deveria mencionar,
exagerando para soar falso

o que de verdade sinto.
Falsifiquei-me para que fosses
próximo do real.

Ao escapar de tua figura
me tornei igual.
Tudo está perdido, então

tudo é necessário.
Sou a barca que fica
afiando as águas.

(Um terno de pássaros ao sul, 2000)

 

Fabrício Carpinejar poeta e jornalista, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS. Nasceu em Caxias do Sul (RS) aos 23 de outubro de 1972. É autor dos livros As solas do sol (Bertrand Brasil, 1998), Um terno de pássaros ao sul (Escrituras Editora, 2000) — objeto de referência no The Book of the Year 2001 da Enciclopédia Britânica —, Terceira sede (Escrituras, 2001), Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), Caixa de sapatos (Companhia das Letras, 2003), Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa (Alaúde, 2004), Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004), Como no céu e Livro de visitas (Bertrand Brasil, 2005) e O amor esquece de começar (Bertrand Brasil, 2005). Recebeu vários prêmios, como O Sul, Nacional e os Livros/2004, categoria Especial Poesia, por Cinco Marias, escolhido como o melhor livro de poesia do ano; Olavo Bilac/2003, da Academia Brasileira de Letras; Cecília Meireles 2002, da União Brasileira de Escritores (UBE); Marengo D'Oro, de Gênova (Itália); duas vezes o Açorianos de Literatura, edições 2001 e 2002; Destaque Literário Júri Oficial como melhor livro de poesia da 46ª Feira do Livro de Porto Alegre (RS) — e Fernando Pessoa, da União Brasileira de Escritores/RJ, em 2000. Mais em seu site e blogue.

A ânsia em reconstituir o passado
termina por olvidá-lo em definitivo.

Se me retirares a vaidade,
não terei memória.

(Biografia de uma árvore, 2002)