©allan grant

 

 
 
 
 

Mais disparates

 

Se o que a Folha de São Paulo diz está certo, então Antonio Cicero está errado.

 

O jornal transcreve o que seriam algumas afirmações suas em um seminário no Rio de Janeiro (são sempre seminários) entitulado, de modo jocoso, "O Silêncio dos Intelectuais", pois lá — é lícito supor — os intelectuais tagarelavam. Como, por exemplo: "A vanguarda chegou ao fim", e "Não vai haver progresso artístico. Não surgirá poeta melhor do que Homero, Dante e Shakespeare. Então o processo cognitivo da vanguarda chegou ao seu limite".

 

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Embora decretar o fim da vanguarda oitenta anos após ter acabado possa parecer graciosamente redundante, não está errado. O problema está na idéia de "progresso" em arte, e na bola de cristal embaçada que teria usado para a futurologia de que não surgirá poeta melhor do que o trio ilustre, e que, conseqüentemente, isso mostraria o limite do processo cognitivo da vanguarda.

 

Pardon?

 

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É verdade, por onde começar nesse amontoado de disparates?

 

Vamos pelo "progresso": nunca houve progresso na arte, porque a arte não é uma competição em busca do aperfeiçoamento de coisas que, na sua origem, andavam meio falhas ou defeituosas. A arte (qualquer arte) é uma representação formal da vida feita por pessoas em épocas específicas, segundo fatores psicológicos, culturais, etc., específicos. Nunca se pressupôs, nem se pretendeu, que a História nos levasse a um Superpoeta, com um S no peito, ao fim e ao cabo de todas as coisas. Talvez apenas no sonho mal-amanhecido dos positivistas, para quem a História era um varal estendido de uma parede (começo) a outra parede (fim), ou, possivelmente, algo assemelhado a uma corrida de cavalos.

 

Qual é o progresso na poesia, por exemplo, desde Homero? Há o surgimento de novas formas, novos modos de dizer, mas não me parece que alguém, na inteira posse de suas faculdades mentais, afirmaria: "Ah, a poesia progrediu bastante desde Homero, ? Aquilo era um negócio inicial, só."

 

Ou, a partir da proposição da tríade celestial Homero-Dante-Shakespeare (Pai-Filho-Espírito Santo) deveríamos concluir que surgiram juntos, grudados um no outro, ou que eram três cabeças de um mesmo corpo inseparável e insuperável?

 

Ou dantescamente: o Ódio, a Impotência e o Pecado?

 

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Corolário: nunca houve progresso em arte. Não há expectativa de que haja. Há fluxos e refluxos, como, de resto, em todas as coisas.

 

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Mas a verdadeira confusão aparece no restante do que Cicero teria dito, eventualmente.

 

Nem Homero, nem Dante, nem Shakespeare sabiam o que é vanguarda — fora, talvez, no sentido do destacamento que vai à frente nas batalhas — e certamente Dante não buscava superar Homero (Dante não escreveu poema épico), nem Shakespeare buscava superar Dante (Shakespeare era dramaturgo e escrevia sonetos ingleses).

 

Já a possibilidade de haver ou não escritores tão bons quanto aqueles gloriosos cavalheiros é, no mínimo, discutível, e não tem nada a ver com "processo cognitivo" nem com "vanguarda", uma vez que as vanguardas mal duraram meio século numa história da civilização ocidental que, a contar partindo de Homero, tem mais de três mil anos. Só no século XX tivemos obras como as de William Butler Yeats, Ezra Pound, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Derek Walcott (que continua vivo e escrevendo); no século XIX houve Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé, Arthur Rimbaud, J. Wolfgang von Goethe — o gentil leitor e a gentil leitora terão notado que, dessas, apenas a de Pound (e, menos acentuadamente, a de Pessoa) propunha vanguarda.

 

E assim por diante, citando apenas aqueles que vêm de imediato à mente. E apenas poetas.

 

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E diria ainda mais: por que pensar em Homero, Dante Alighieri e William Shakespeare, e não em Meleagro, Guido Cavalcanti e Robert Herrick? A resposta é: o primeiro terceto é formado por i colossi, aqueles cujos volumes de Obras Completas perfazem necessariamente um tijolo (ou mais), e, ao som de tais nomes, mesmo aqueles que não leram sequer uma palavra de suas obras assentem respeitosamente com a cabeça.

 

A perfeição e a excelência do segundo terceto são bem menos vistosas; ao ouvir seus nomes a maior parte das pessoas perguntaria, candidamente: "Quem?".

 

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Mas é evidente que Antonio Cicero pode ter dito aquelas coisas em tom de zombaria, pilhéria, ou sequer tê-las dito, e então o gentil leitor e a gentil leitora por favor considerem este texto como escrito na areia, fácil de a maré levar.

 

 

Mais Cícero (Marco Túlio)

 

Os sebos de São Paulo têm muitas atrações para aquele que gosta de livros, e aprecia edições velhas, novas em folha ou caindo aos pedaços. São essas mesmas pessoas as que colecionam histórias pitorescas ou simplesmente absurdas de passeios por lá.

 

Eu tenho a seguinte para o momento: há uma tradução de Cícero, Orações, fácil de achar na edição dos velhos Clássicos Jackson. Pois bem, o título capcioso levou alguns dos livreiros a decidir muito facilmente por seu lugar na estante, e esse lugar não foi ao lado do resto da obra do autor, ou de colegas oradores latinos.

 

Não: em dois dos sebos que visitei ultimamente, você pode encontrar esse livro na estante de religião. Orações.

 

 

 

 

outubro, 2005

 

 

 

chamaeleonte@yahoo.com