Anno Domini 2007

 

Ano que se anuncia particularmente importante para a poesia brasileira.

 

Anoto, entre outros, os lançamentos dos livros novos de poetas jovens como Fabrício Corsaletti, Angélica Freitas, Paulo Ferraz, Ricardo Domeneck e Ana Rüsche.

 

Fiquem atentos a todos.

 

 

 

Reedição de Alegoria, de João Adolfo Hansen

 

Há mais de uma década esgotado, Alegoria: Construção e Interpretação da Metáfora (Atual, 1985), de João Adolfo Hansen, professor de Literatura Brasileira da USP, é finalmente reeditado pela editora Hedra em coedição com a editora da Unicamp, no apagar das luzes de 2006.

 

Trata-se, simplesmente, de um dos melhores livros de crítica literária já escritos e publicados no Brasil, e tem como autor aquele que é hoje, provavelmente, o maior crítico brasileiro, o mais completo e mais erudito, com a mente mais atenta à diversidade de fatura dos textos.

 

Não é um livro simples: de escrita complexa que reflete a complexidade do assunto, Alegoria apresenta, discute e define as diversas aplicações do termo desde Cícero, Horácio e Quintiliano, passando pela Patrologia e pelos usos da Academia platônica florentina, e chegando à agudeza do século XVII, a Góngora, Camões, Shakespeare, Du Bellay.

 

E aí está um dos motivos por que é essencial, isto é, por tratar de aplicações específicas e intelectuais que pautaram as práticas letradas até meados do século XVIII, cumulativas e que se desenvolviam e se desdobravam num sistema que implicava gradações de engenho e sutileza. Para nós leitores modernos e desacostumados a ler a tradição, uma tamanha transposição mental seria bastante difícil sem a necessária ponte entre os tempos da leitura que esse livro proporciona.

 

Alegoria cita trechos dos autores que escreveram sobre o tema, e em tradução para o português; aplica os métodos a poemas e a exemplos; aplica também a pinturas e gravuras reproduzidas no volume; fornece preciosa bibliografia sobre o assunto. O que esse livro faz, portanto, para o leitor brasileiro, é inestimável; e, igualmente, sem subestimá-lo, num texto de escrita bela, cuidadosa e rica.

 

Livro único & imprescindível para quem quiser ler poemas, sermões, discursos filosóficos, políticos, romances, novelas, etc. com mais atenção, eficiência e maior fruição de beleza. Testemunho também de até onde pode ir um leitor e escritor extraordinário, mesmo num país depenado como o nosso. A propósito, também há humor no livro.

 

Evidentemente.

 

 

 

Zumbis. Os mortos-vivos.

 

Gisele Bündchen disse, à Folha de São Paulo, que as pessoas têm vivido como zumbis. Detalhou o que pensa que seja isso. Sucintamente, mas com bastante eloqüência.

 

Marcelo Rubens Paiva se aborreceu e, no Estado de São Paulo, resolveu ir à forra, usando aquele tipo de discurso, condenado por Schopenhauer em Como Vencer uma Debate sem Precisar ter Razão, o chamado discurso ad hominem.

 

Ou seja, você não discute a idéia da pessoa, você discute a pessoa. Atacou a senhorita Bündchen alegando que é riquíssima e tentou desqualificá-la a partir daí.

 

Que importa para esse particular, meu caro Marcelo, que ela seja riquíssima; que, para ser riquíssima, tenha desfilado e fotografado como modelo? Não entendo, me escapa.

 

E, ainda por cima, ela está certa: as pessoas — como eu mesmo disse nestas páginas há muitos meses, usando Shaun of the Dead como bom exemplo — têm vivido como zumbis.

 

Não, meu caro Marcelo, não é o dos Palmares, nem é a ótima banda dos anos 60: são aqueles outros, que saem das tumbas meio lerdos para tentar devorar os vivos. A analogia é bem simples, na verdade.

 

Consomem a vida dos outros, na falta de vida própria.

 

Se a manutenção das pessoas como zumbis paga o salário de alguém? Pouco importa para o que estamos discutindo, porque o fato que se apresenta, limpo de interferências e dolorosamente significativo, é: as pessoas têm vivido como zumbis.

 

E eu não tenho nem um tostão, caso seja a gorda conta bancária o dilema para quem usa o tal argumento.

 

Gisele Bündchen não poderia estar mais certa. Nem Marcelo Rubens Paiva mais errado.

 

 

Refinamento cruel

 

Em "The Oval Portrait" (1842), de Edgar Allan Poe, temos aquele artista que, obcecado pela beleza da modelo, obriga-a a posar indefinidamente até concluir o quadro, num desfecho de proporções assemelhadas às de The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde. Desde então, pelo menos, existe a ligação direta entre refinamento sensorial e artístico & crueldade desumana.

 

Recentemente, esse nexo foi muito reforçado no cinema por figuras como Hannibal Lecter, o refinado que devora os rudes, Lord Rochester, satírico que destrói as pessoas de sua relação e a si mesmo &, finalmente, Jean-Baptiste Grenouille, perfumista que, vindo do romance de Süskind, chegou agora ao cinema com seus belos e perfumados cadáveres, dirigido por Tom Tykwer, de Corra, Lola, Corra.

 

No caso do perfumista, como no de Lecter, a metáfora se aprofunda em relação aos primeiros exemplos: se o canibal purga a humanidade de sua grossura comendo-a, ao mesmo tempo que a satiriza em trocadilhos de humor negro, o perfumista concebe uma arte mais diáfana, invisível, feita quase que apenas de ar, mas extraída de uma violência fria, impessoal. A idéia é a de sutilizar ao máximo as potencialidades de beleza extraídas das coisas (às vezes bem desagradáveis), até não restar nada senão o vazio e poderoso aroma do paraíso.

 

O filme é muito inteligente de várias formas, eu menciono duas:

 

1) a cena em que Grenouille, se aproximando de Grasse, na Provença, dá com os imensos e famosos campos de alfazema. Hipnotizado pela visão, o público é levado a pensar que o olfato absoluto de Grenouille terá um êxtase, o que parece se confirmar na tela. Mas não, o que ele capta, em meio à desconcertante paisagem lilás, é a distinta fragrância de Laura Richis, a belíssima Rachel Hurd-Wood;

 

2) como transformar um mundo olfativo em película? Alguns torceram o nariz delicado para o que fez Tykwer, perfeito ao propósito: deu imagens contundentes de fedor & de olor ao público visual. Se tivesse reinventado o cinema, não teria contado a história.

 

E em um ponto foi sagacíssimo, o que não vi ser observado em críticas de mídia impressa: a ruiva vendedora de nectarinas, que, morta, reaparece de tempos em tempos em flashbacks, recebe um tratamento visual que emula as campanhas de perfumes bem caros, como as de Jean-Paul Gaultier com a também ruiva (mas muito viva) Karen Elson, incluindo a graciosa música vocal de sabor operístico (que no comercial de Gaultier é Casta Diva, ária de Norma, de Vincenzo Bellini).

 

Tykwer traça um paralelo entre a beleza extática do prazer absoluto (representada na propaganda) e a beleza estática da morte (da personagem).

 

Mais do que a arte imitar a vida ou vice-versa, o que está em questão é, ao contrário, o ruído entre vida e arte. E o preço de preservar a beleza é matar a vida, para se chegar a um paraíso artificial.

 

E eis aí, para nós que começamos com Poe, Baudelaire.

 

março, 2007