anágua
 
A Graça
 
A madureza me surpreende com a palavra anágua.

*

O dicionário diz do étimo taino, ainda recendendo a Antilhas; diz da travessia do Atlântico, quando as tormentas do espanhol — enaguas — para o português exigiram reparos na proa e o lançar ao mar o lastro do plural.
A moda diz de uma peça obsoleta ante o império da transparência, do corpo-vitrine, sem vincos, menos fusco que fátuo fulgor. Desvendado, desventrado, dissipado.
 
*
 
Na infância se escondia sob as saias que jamais levantei. Ou acenava do varal, com rendas e aromas. Cet clair objet du désir nunca estava no rol de roupas sujas. Não se misturava com panos de prato, fronhas e toalhas.
 
*
 
Na madureza, restou apenas a prosódia líquida da palavra. Um mundo animado de anas e águas, de avas e vagas. Vocábulo de tanque, de cisterna.
 
 
 

cadeira*
 
Fonética da cadeira — Quando não seja muda, trata-se de uma consoante ora oclusiva, ora fricativa.
Morfologia da cadeira — Os autores divergem quanto a classificá-la como artigo ou numeral (nas lojas e show-rooms), adjetivo ou pronome (nas empresas e repartições públicas), preposição ou interjeição (nos apartamentos de subúrbio). Sem embargo, predominam os que a consideram apenas conjunção.
Sintaxe da cadeira — Em geral sem sujeito, oculta o homem-nádegas. Pode-se atribuir-lhe incontáveis predicados, embora permaneça assento, braços e espaldar.
Estilística da cadeira — Se há estilo, declina para o não ser cadeira.
As leituras da cadeira — Manuais de instruções, bulas de antipiréticos, anais de congressos de lingüística, relatórios de guarda-chaves, resenhas do último livro do último filósofo francês.
 
*
 
Cadeira é oração para excomungar cama, porta e caminho.
 

*Do catálogo das cadeiras Kerouac, que as Lojas Beat fizeram publicar em Nova Iorque no verão de 1922.
 
 
 
 
espelho
 
De acordo com Clarice Lispector, "não existe a palavra espelho — só espelhos". Seriam todos idênticos, não fora o gerânio que medra em alguns.
 
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Quando na sala, são gentis, protocolares. Distantes até, embora atentos. Procuram indícios entre os móveis.
No quarto, mudam em assassinos suaves. Surpreendem as vítimas disfarçados de amantes ou livros de cabeceira.
Os mais perigosos, no entanto, não se deixam ver.
 
*
 
Criados em cativeiro, podem ser domesticados. Então se comportam como qualquer criança, à exceção de um dom natural para atravessar paredes e prever a morte de pessoas da casa.
 
 
 

flamboyant
 
Nem palavra nem árvore. Flamboyant é bote, boiando acima da tarde.
 
*
 
No período de floração, flamboyant é flama. Convém manter as crianças à distância.
Os amantes nem tanto.
 
*
 
Flamboyant cresce à margem do dicionário. Parce que il ne parle pas, il flambe
 
 
 
galo
 
Do galo não me agrada nem o bico nem as esporas. Ainda menos a crista. Rubra, rija, eriçada. Quase fálica. Espada ou glande manchada de sangue?
 
*
 
Dos galos, apenas o carijó. Parcimonioso nas cores. Discreto — o que é raro num galo. Quando parado, uma tela tachista à procura do zero da expressão. Em movimento, múltiplos dados lançados ao acaso, cintilações num lago turvo, camuflagem precisa para um mundo preto-e-branco.
 
*
 
No meu reduzido repertório de galos, o carijó tem no garnisé o seu antípoda. Reencenam no quintal o que Nietzsche, "dentro de suas sete solidões", denominou a moral do senhor e a moral do escravo.
 
 
 

linha
 
Quem leia saiba, linha ilude algum dentro. Pára em meio, recolhe o ar, o arco, o caracol. No contorno da maçã, disfarça a mão armada. Desvio longo, até onde?
Linha acode como apóstrofe ao espelho.
 
*
 
Lápis pássaro deslimita. Será varal ou meridiano? Rubrica sobre a água ou giz na calçada?
Linha turista quando a pele é o único disfarce.
 
*
 
Rabiscar esconde armadilhas no mapa. Olho não descansa até desmontar a lâmina.
Linha é leque ou libelo?
 
*
 
Em sendo uma máquina simples, linha acomoda do horizonte a medida, da ponte as aspas, da esquina o adeus, do caderno o entorno, do gesto a infância.
A garatuja basta, inteira paisagem.
 
*
 
O que é a linha senão um capricho do tempo: bifurcações sem sentido até que se realize o arabesco.
 
*
 
Linha erra: onde se lê autor, leia-se personagem.
 

*Excertos de anotações apócrifas realizadas durante as aulas ministradas por Paul Klee na Bauhaus, Weimar, em 1924. Manuscritas em inglês, as 149 páginas do original (em papel-linho branco, 33x22cm) incluem, além do texto, 26 desenhos a bico-de-pena, quinze deles com o autógrafo ST, o que levou alguns estudiosos ao equívoco de atribuir a autoria das notas ao desenhista romeno Saul Steinberg, à época com apenas dez anos. Traduzimos aqui fragmentos das páginas 11, 14, 40, 79 e 132.
 
 
 
 
 
 
 
nada
 
Esta palavra não assalta, espreita. Nenhum poema suporta ou existe sem sua matéria.
 
 
 

propugnar
 
A Denise Barbosa
 
Aluna pergunta por que propugnar. E ao invés de defender, a palavra ataca. A mim, que nada tenho a propugnar, senão a sobrevida de alguns vocábulos às margens do Letes lexical.
Esta palavra tem flechas, lanças, granadas?
Ainda pugna esta palavra — respondo, quase sem respirar.
 
 
 

torre*
 
Considerando que o labirinto seja a vertigem da geometria, o éden bárbaro, e a pirâmide, a domesticação desse abismo horizontal; considerando que o labirinto faz-se e desfaz-se em horizontes e a pirâmide se impõe como único horizonte, a ponto de negá-lo com sua matemática inumana; considerando que o labirinto nos habita antes de o habitarmos e a pirâmide nos coloca à distância; então, a torre aniquila qualquer geometria, qualquer curva, qualquer reta, para afirmar-se como ponto de vigia. A torre não dialoga nem com o horizonte nem com a mãe-pirâmide. A torre é monológica, intransitiva, inabitável para quem tem olhos. A torre é uma forma que só interessa quando abolida. Assim será digna das cártulas que um dia lhe dediquei:
 

Foi tua ruína
o olho ubíquo que pretendias.
 
*
 
Apenas antecipastes o tempo
em que as testemunhas
se tornaram réus.
 
*
 
Nerval, Brueghel, Kafka:
esses souberam a altura que te faltava.
 

*Excerto de uma carta do arquiteto fantasista Joseph-Ferdinand Cheval, "le facteur d'Hauterives", escrita ao editor da revista Magasin pittoresque, referindo-se aos postulados que nortearam a construção, em fins do século XIX, da Tour de Barbarie na fachada sul do Palais Idéal.
 
 

(Do livro Dicionário Mínimo — Poemas em Prosa)
 
 
 
 

(imagens ©regina saura)

 

 

 
 
 
 
FERNANDO Fábio FIORESE Furtado nasceu em Pirapetinga, Zona da Mata Mineira, no dia 21 de março de 1963. Residindo em Juiz de Fora (MG) desde 1972, participou do grupo de poetas, escritores, artistas plásticos e fotógrafos que, durante a década de 1980, editou o folheto de poesia Abre Alas e a revista d'lira. Poeta e contista, publicou em 1982 Leia, não é cartomante, ao qual seguiram-se Exercícios de vertigem & outros poemas (1985) e Ossário do mito (1990), todos de poesia. Em parceria com Edimilson de Almeida Pereira e Iacyr Anderson Freitas, publicou ainda Dançar o nome (2000), antologia bilíngüe (português/castelhano) acompanhada de um CD com a leitura dos textos pelos próprios autores. Dois anos depois, reuniu no volume Corpo portátil (São Paulo: Escrituras, 2002) toda a sua produção poética do período entre 1986 e 2000. Em 2003, publicou Dicionário mínimo: poemas em prosa (São Paulo/Juiz de Fora: Nankin/Funalfa) e Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, Blumenau: Edifurb). Doutor em Semiologia pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Comunicação Social e do Mestrado em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, colabora regularmente em coletâneas de ensaios e revistas especializadas. Participou da edição trilíngüe (português/inglês/húngaro) da coletânea de poetas brasileiros Pérolas do Brasil — Pearls of Brazil — Brazilia Gyöngyei, organizada e traduzida pela escritora Lívia Paulini (1993). E integrou ainda a obra Baú de letras: antologia poética de Juiz de Fora (org. José Alberto Pinho Neves), editada em 2000. Foi incluído por Assis Brasil na antologia A poesia mineira no século XX (1998), enquanto o poeta Amadeu Baptista fez publicar um conto de sua autoria no livro Quanta terra!!! — Poesia e prosa brasileira contemporânea, coletânea lançada em Portugal (2001). Participou também da Antologia da poesia brasileira/Antologia de la poesía brasileña, organizada por Xosé Lois Gacía e publicada na Espanha em 2001, e da coletânea Poesia em movimento, editada em 2002 sob a coordenação de Jorge Sanglard. Mais Na Berlinda.