Canção Outonal


HOJE sinto no coração
um vago tremor de estrelas,
mas minha senda se perde
na alma da névoa.
A luz me quebra as asas
e a dor de minha tristeza
vai molhando as recordações
na fonte da idéia.

.....Todas as rosas são brancas,
tão brancas como minha pena,
e não são as rosas brancas
porque nevou sobre elas.
Antes tiveram o íris.
Também sobre a alma neva.
A neve da alma tem
copos de beijos e cenas
que se fundiram na sombra
ou na luz de quem as pensa.

.....A neve cai das rodas,
mas a da alma fica,
e a garra dos anos
faz um sudário com elas.

.....Desfazer-se-á a neve
quando a morte nos levar?
Ou depois haverá outra neve
e outras rosas mais perfeitas?
Haverá paz entre nós
como Cristo nos ensina?
Ou nunca será possível
a solução do problema?

.....E se o amor nos engana?
Quem a vida nos alenta
se o crepúsculo nos funde
na verdadeira ciência
do Bem que quiçá não exista,
e do mal que palpita perto?

.....Se a esperança se apaga
e a Babel começa,
que tocha iluminará
os caminhos na Terra?

.....Se o azul é um sonho
que será da inocência?
Que será do coração
se o Amor não tem flechas?

.....Se a morte é a morte,
que será dos poetas
e das coisas adormecidas
que já ninguém delas se recorda?
Oh! sol das esperanças!
Água clara! Lua nova!
Corações dos meninos!
Almas rudes das pedras!
Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas
e todas as coisas são
tão brancas como minha pena.

Depois de passar



OS meninos fitam
um ponto distante.

.....Os candis se apagam.
Umas moças cegas
interrogam a lua,
e pelo ar ascendem
espirais de pranto.

.....As montanhas olham
um ponto distante.

O grito

A elipse de um grito
vai de monte
a monte.

.....Desde as oliveiras
será um arco-íris negro
sobre a noite azul.

...........Ai!

.....Como um arco de viola
o grito fez vibrarem
longas cordas do vento.

...........Ai!

(As pessoas das covas
erguem seus candeeiros.)

...........Ai!

©João Luiz Roth

Poema da soleá



TERRA seca,
terra quieta
de noites
imensas.

.....(Vento no olival,
vento na serra.)

Terra
velha
do candil
e da pena.
Terra
das fundas cisternas.
Terra
da morte sem olhos
e das flechas.

.....(Vento pelos caminhos.
Brisa nas alamedas.)

Fragmentos do Poema da Siguirya Gitana





A guitarra

COMEÇA o pranto
da guitarra.
Quebram-se os copos
da madrugada.
Começa o pranto
da guitarra.
É inútil calá-la.
É impossível
calá-la.
Chora monótona
como chora a água,
como chora o vento
sobre a nevada.
É impossível
calá-la.
Chora por coisas
distantes.
Areia do sul quente
que pede camélias brancas.
Chora flecha sem alvo,
a tarde sem manhã,
e o primeiro pássaro morto
sobre o ramo.

Oh! Guitarra!
Coração malferido
por cinco espadas.

E depois


OS labirintos
que cria o tempo
se desvanecem.

.....(Só fica
o deserto.)

.....O coração,
fonte do desejo,
se desvanece.

.....(Só fica
o deserto.)

.....A ilusão da aurora
e os beijos
se desvanecem.

.....Só fica
o deserto.
Um ondulado
deserto.

Povoado



SOBRE o monte pelado
um calvário.
Água clara
e oliveiras centenárias.
Pelas ruelas
homens embuçados,
e nas torres
veletas girando.
Eternamente
girando.
Oh! povoado perdido,
na Andaluzia do pranto!

A soleá



.....VESTIDA com mantos negros
pensa que o mundo é pequenino
e o coração é imenso.

.....Vestida com mantos negros.

.....Pensa que o suspiro terno
e o grito desaparecem
na corrente do vento.

.....Vestida com mantos negros.

.....Deixou o balcão aberto
e à aurora pelo balcão
derramou-se todo o céu.

.....Ai, aiaiai,
porque vestida com mantos negros.



Aurora


SINOS de Córdoba
na madrugada.
Sinos de amanhecer
em Granada.
Ouvem-nos todas as moças
que choram à terna
soleá enlutada.
As moças
de Andaluzia alta
e baixa.
As meninas de Espanha,
de pé miúdo
e trêmulas saias,
que encheram de luzes
as encruzilhadas.
Oh! sinos de Córdoba
na madrugada,
e oh! sinos do amanhecer
em Granada!

Quatro Baladas Amarelas


I

No alto daquele monte
há uma arvorezinha verde.

.....Pastor que vais,
.....pastor que vens.

.....Olivais sonolentos
baixam à planície quente.

.....Pastor que vais,
.....pastor que vens.

.....Nem ovelhas brancas nem cachorro
nem cajado nem amor tens.

.....Pastor que vais.

.....Como uma sombra de ouro,
no trigal te dissolves.

.....Pastor que vens.


II

.....A terra estava
amarela.

.....Ourinho, ourinho,
.....pastorzinho.

.....Nem lua branca
nem estrela luziam.

.....Ourinho, ourinho,
.....pastorzinho.

.....Vindimadora morena
corta o pranto da vinha.

.....Ourinho, ourinho,
.....pastorzinho.


III

.....Dois bois vermelhos
.....no campo de ouro.

.....Os bois têm ritmo
de sinos antigos
e olhos de pássaros.
São para as manhãs
de névoa, e sem embargo
perfumam a laranja
do ar, no verão.
Velhos desde que nascem
não têm amo
e recordam as asas
de seus costados.
Os bois
sempre vão suspirando
pelos campos de Ruth
em busca do vau,
do eterno vau,
ébrios de luzeiros
a ruminar seus prantos.

.....Dois bois vermelhos
.....no campo de ouro.


IV

.....Sobre o céu
.....das margaridas ando.

.....Nesta tarde imagino
que sou santo.
Puseram-me a lua
nas mãos.
Eu a pus outra vez
no espaço
e o Senhor me premiou
com a rosa e o halo.

.....Sobre o céu
.....das margaridas ando.

.....E agora vou
por este campo
a livrar as meninas
dos galãs maus
e dar moedas de ouro
a todos os rapazes.

.....Sobre o céu
.....das margaridas ando.
Poemas de Andaluzas



Adelina de passeio

O mar não tem laranjas,
nem Sevilha tem amor.
Morena, que luz de fogo.
Empresta-me teu guarda-sol.

.....Ficarei com a cara verde
— sumo de lima e limão —,
tuas palavras — peixinhos —
nadarão em redor.

.....O mar não tem laranjas.
Ai, amor.
Nem Sevilha tem amor!


Tarde

(Estava a minha Lúcia
com os pés no arroio?)


TRÊS alámos imensos
e uma estrela.

.....O silêncio mordido
pelas rãs se assemelha
a uma gaze pintada
com pintinhas verdes.

.....No rio,
uma árvore seca
floresceu em círculos
concêntricos.

.....E sonhei sobre as águas
com a moreninha de Granada.


É verdade

AI, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!

.....Por teu amor me dói o ar,
o coração
e o chapéu.

.....Quem compraria de mim
este cinteiro que tenho
e esta tristeza de fio
branco, para fazer lenços?

.....Ai, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!


[Arvoré arvoré]

ARVORÉ arvoré
seca e verdé.

.....A menina de belo rosto
está colhendo azeitona.
O vento, galã de torres,
prende-a pela cintura.
Passam quatro ginetes,
em éguas andaluzas,
com trajes de azul e verde,
com longas capas escuras.
"Vem a Granada, menina."
A menina não os escuta.
Passam três toureirinhos
de cintura fina,
com trajes cor de laranja
e espada de prata antiga.
"Vem a Sevilha, menina."
A menina não os escuta.
Quando a tarde ficou
morada, com luz difusa,
passou um jovem que levava
rosa e mirtos de lua.
"Vem a Granada, menina."
E a menina não o escuta.
A menina do belo rosto
continua colhendo azeitona,
com o braço gris do vento
cingido pela cintura.

.....Arvoré arvoré
seca e verdé.


Tradução de William Agel de Mello