Sopra-nos o vento a música de seu fulgor:

um elo de ecos, um verso de Gonzalo Rojas,

a espinha do universo no piano

de Thelonius Monk em Memories of you.

Lugar metafísico onde tudo combina

com seu diverso e outro latejo,

em um desses momentos por onde cruzamos

as gélidas ruas de Kafka.

A alma esplende em metamorfoses.

Por ali nos indagamos do equívoco do enigma:

— por que tudo é sempre o mistério do vir a ser,

a almofada do maravilhoso, seu estalo de trevas.

Sons de palavras: letras que surgem

do obscuro ritmo entrelaçado de nossos nomes

— do entreato da sagrada miséria às minúcias de nossa queda,

a um só tempo dialética e mundana.

Livros de sons: a voz deixada no oco da tradição,

notas do prodígio que é seguir vivendo

lendo o misterioso nas páginas de Bataille Blake Benn.

Por ali nos indagamos e a tinta não cessa não cessa.

 

 

 

 

 

 

Ergo o olhar sobre a árvore visível,

escolha difícil em vista da quietude

de suas folhas: alarde de espelhos

em uma manhã sem ventos. Síncope

risível de abraços entre ser e tempo.

Um ritmo binário consome o homem,

escravo do alvo e da tensão do arco.

Réplica de uma dor lapidada à beira

da imagem ideal de todos os arcos:

guarda consigo o relâmpago e a guia.

 

 

 

 

 

 

Dentro da memória se guarda o amor

silencioso das cinzas. Um mar secreto

que nos invade em insistentes dobras

do tempo. Provo de tua imortalidade,

um cinema tecido entregue a orações:

dá-me teu amor, oh dá-me teu amor.

Lembra-me o poeta que a dor não

passa de um minuto. Nada se iguala

ao vento de tua voz, festa de sombras.

Outro corpo que se esboça em plena dor.

Capela severa do mar dentro da qual

escrevemos e os versos nunca retornam.

Secreto vínculo com o destino — oh dá-me

que não se encontra nunca em casa.

 

 

 

 

 

 

 

Aquele que ama as letras desvela o argumento das trevas com serenidade. Assevera uma sentença árabe que o homem se dissimula atrás de sua língua. Moisés não encontrara senão em Aarão as palavras com que transmitir a seu povo as aspirações de uma união total com Deus. Schöemberg morrera sem concluir Moses und Aron. Que luz tão severa suprime a paisagem à nossa volta? Que dibuk penetra em nossa afligida alma e com um escândalo a arrebata? O definitivo rio que flui nos tecidos da linguagem conduz o homem a um abismo sem fim. Aquele que ama as letras supera a obsessão de revelá-las.

 

 

 

 

 

 

 

Soletro os dias em cada coisa que me olha

quando me sinto a vê-la. É tudo.

E não há desculpas para o que faço. 

 

                                    Rosa Alice Branco

 

 

Acender o fogo pela sombra da chama.

Atear luz no olhar do tempo esquecido.

Assim um corpo (dela) diz como deseja

ser escrito pelo outro (dele) que o visita.

Ensinar ao corpo como sair de si.

Traçar eqüidistâncias entre as quedas.

Os pormenores do fogo (ela afiança)

são o melhor regaço dentro do olhar.

E o fixa com tanto esmero que as dobras

do corpo se despem ante o ruído dos passos

(dela) que são vestígios da sumição

das roupas (dele). Por onde o enigma

apura suas harmonias? Por onde um corpo

aprende a soletrar o outro? (ela não diz)

Esvaziar a noite de vícios que a definam.

Deixá-la sem chance de reconhecer-se.

Estar a esboçar um tratado de trevas

requer a cegueira precisa em cada afeição.

Quem plagiaria o suicídio ou a ruína?

Os dons são mecânicos, uma fábula gasta?

Na balbúrdia dos corpos descobrindo-se

um soletra o dia, o outro deslinda a noite.

Qual risco a língua desenha ao passar

de uma boca a outra? Não há exatidão,

exceto no desejo. Um corpo (ela o tenta),

ao cair no outro, é em si que repercute.

O amor tateia entre nódulos (ele matuta).

Uma atração sublime pelas dissonâncias

parece iludir a queda dos corpos amorosos.

O que tens no ventre (diz ele) é o abismo

de que me sirvo para um dia alcançar-me.

Apenas o acaso resguarda tais planos (ela).

Os corpos sondam o pendor pelo extremo.

Atear luz no olhar do tempo esquecido.

Acender o fogo pela sombra da chama.

 

 

 

 

 

 

A mesma voz sempre indaga se tudo está escrito. Um ruído estendido à tua porta. Outro foco de fagulhas insiste em saber quantas são as colunas circulares. Rumores surgem da terra, erguem abismos por toda a noite. Uma furiosa atração por estrondos nos atormenta. Oh velho murmúrio, velha lei de escombros! Que me dirá o pai desconhecido anunciando a taça de seus enigmas? As raízes se perdem em portas carcomidas por ressurreições. A alma se multiplica em vermes que celebram seu degredo. Por vezes o homem se sente feliz em não ser nada. Ignoro lugar e instante em que me encontro contigo, o que se segue ao som de nosso impossível diálogo. Ouçamos o que diz a morte. Abre o talismã de teus lamentos. Mostra em teu peito onde está escrito que tudo se repetirá. Ouço a pancada seca do tempo em nossas vértebras. A última palavra nos fará a todos mendigos.

 

 

 

 

 

 

Em que condições se deve julgar um homem?

Remirá pelos ermos de seu banimento, e ali

eliminará de sua memória os atos que o levaram

ao catre? De que valerá o julgamento? A pena

santifica ou martiriza? O martírio sagra ou apenas

suplicia? Imensos os cabelos e a voz profunda,

como jamais se ouvira. Uma pausa medida

e logo seguia: Quantas dádivas nos negamos

enquanto condenamos alguém por crimes

dos quais todos somos cúmplices? Sacrifícios

de que ordem resgatam o convívio perdido?

O que esperar de homens que se sentem justos

ao julgarem alheio o que lhes cala tão íntimo?

Quantos a terão ouvido, em sua única visita?

 

 

 

 

 

 

 

Compra-a para teu gozo, disse-me o pai, desejoso de livrar-se de uma viúva, ainda que sua filha fosse. E o fiz, sem hesitar. Aqui me tens a teus pés, senhor, disse-me a filha, disposta a servir à ceifa de aflições que me velavam o corpo. A doce mulher parecia apegada a seu destino. Mantinha os olhos vivazes sempre arregalados em busca de algo. Ao banhar-se, no antepasto, entre óleos e vinhos, mesma doçura. E foi se servindo de tudo à sua volta, ela própria a serva incomparável da aquilatada condição. Os olhos saltitantes, por vezes longínquos, cadentes. Aos poucos compreendi: não era apenas queda ou sedutora suavidade. Buscavam uma brecha onde voltasse a ser a infatigável dama do abismo.

 

 

 

 

 

 

Lábios de seda

Um plantio dentro da pele

Se me amordaçasses ainda ouvirias o salmo de minhas ânsias

Pequenos lábios do mundo

Algazarra insepulta de falas que são lâminas que falos e abismos

Uma linguagem de coxas

Trapézio mobiliado pelo desejo

Lábios perversos que não se negam jamais

Lençol que aturde os movimentos do sigilo que acoberta

Lanterna de lábios lavrando a cena a ser escriturada

Por vezes o inferno não sabe onde cair

Será deserto como no princípio ou evocado por débeis ratazanas viciadas na vida eterna de um laboratório?

Mandinga entranhada em cada sílaba

O que dizem a mesma reza prelúdio gasto sobretudo do acaso guarda-sóis devassados por falta de uso

Tocas em mim

Lábios na pélvis no visgo que buscas

O que haverá de mais visionário que o temor?

Sussurro em teus lábios maiores que punição alguma me levará ao arrependimento de tocá-los

Lutuosa harmonia de quantos beijos?

Açoites que planejam mechas em devaneios de formas que se misturam entre si

O impossível lábio único intransitivo que ninguém o culpe por haver agido sozinho

 

 

 

 

 
imagem ©joão castela cravo
Floriano Martins (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. Dirige, com Claudio Willer, a revista de cultura Agulha.
 
Alguns livros publicados: Sábias areias (poesia). Rio de Janeiro, Mundo Manual Edições, 1991; El corazón del infinito. Trés poetas brasileños, traducción de Jesus Cobo (entrevistas). Toledo (Espanha), Cuadernos de Calandrajas, 1993; Escritura conquistada (Diálogos com poetas latino-americanos) (entrevistas). Fortaleza, Letra & Música. 1998; Poemas de amor (antologia poética), de Federico García Lorca. Rio de Janeiro, Ediouro Publicações, 1998. [tradução e prólogo]; Delito por bailar o chá-chá-chá (contos), de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro, Ediouro Publicações, 1998. [tradução]; Alma em chamas (poesia). Fortaleza, Letra e Música, 1998; Alberto Nepomuceno (biografia). Fortaleza, Edições FDR, 2000; Cenizas del sol (poemas y esculturas), com o escultor Edgar Zúñiga. San José (Costa Rica), Ediciones Andrómeda, 2001; O começo da busca — O surrealismo na poesia da América Latina (ensaio e antologia poética). São Paulo, Escrituras Editora, 2001; Nós/Nudos (25 poemas sobre 25 obras de Paula Rego), de Ana Marques Gastão. Lisboa, (Portugal), Editora Gótica, 2004. [tradução]; Un nuevo continente (Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América). San José (Costa Rica), Ediciones Andrómeda, 2004; Estudos de pele (poesia). Rio de Janeiro, Editora Lamparina, 2004.