..........Era
vermelho o carro que o matou e sumiu chispando, cantando os pneus.
Fendida a cabeça no impacto com o meio-fio, o sangue brotava
da base do crânio escorrendo na sarjeta, tingindo os veios imundos
dos paralelepípedos e empoçava-se viscoso refletindo
o sol abrasante do meio dia. Transeuntes puseram-no em decúbito
ventral, cruzaram-lhe os braços sobre o tronco, juntaram-lhe
as pernas e cobriram-no com folhas de jornal, as pontas presas por
pedras soltas do calçamento. A tudo assistira, da sua janela,
uma piedosa anciã levemente corcunda e muito magra, dessas
cujos ossos parecem estar a ponto de furar a pele enrugada. Ela acorreu
trazendo uma vela ajoelhou-se acendeu o lume tirou um terço
do bolso e a Deus encomendou sua alma.
..........Mais
curiosos chegaram, se aglomerando, se empurrando formando um círculo
compacto ao nosso redor. Um negro alto, espadaúdo, cabelo encarapinhado,
ventas arreganhadas, olhos injetados, tirou-lhe os sapatos e, sob
os protestos e vaias da platéia, abriu caminho a socos e cotoveladas,
levando de roldão ao chão os que se lhe interpunham
e, nas mãos, triunfante, o seu butim. Um velho desavergonhado,
magro, baixo, calvo, trajando um paletó puído nas mangas,
levantou com a ponta do guarda-chuva a gazeta que lhe amortalhava
o rosto, abanou a cabeça negaceando e foi embora. Foi essa
a última imagem que vi de papai: a face já macilenta
e os olhos negros arregalados, hipnotizados pelo terror.
..........—
Coisa feia de se ver menino — arrancou-me do epicentro funéreo
me puxando sem ternura pelos ombros uma balzaquiana gorda trajada
de organdi com escandaloso estampado floral e pestilento hálito
de alho e cebola.
..........Nas
portas das lojas, vendedores e clientes se espichavam nas pontas dos
pés para admirar o tumulto, cada qual especulando a versão
que lhe vinha à cabeça.
..........Formara-se
num átimo a algazarra.
..........Antes
que alguém se desse conta de mim, se desse conta de quem eu
era, se desse conta de que, daquele infausto, eu era a maior vítima,
me afastei caminhando a ermo, as pernas bamboleando, o raciocínio
embotado, um nó na garganta, os olhos congelados perdidos no
não sei onde.
..........Com
a Avenida Sete de Setembro parcialmente obstruída pelo desastre,
formou-se um grande engarrafamento dos veículos destinados
ao centro da cidade e o buzinaço ecoou-me como escárnio
da Praça da Piedade até à Rua do Forte de São
Pedro, por onde caminhei até o Campo Grande.
..........As
buzinas silvavam lancinantes, intermitentes umas, persistentes outras,
reboando no meu cérebro, lacerando-o. Não mereceria
meu pai o respeito do silêncio? Inutilmente tapei com as mãos
os ouvidos, mas a estridência me invadia pelos poros, pelas
frestas dos dedos, pelos olhos, pela boca e eu ouvia que as buzinas
me acusavam: "você correu", "você fugiu".
..........Ainda
entorpecido e confuso, me sentei em um banco de pedra próximo
da fonte luminosa e, enfim, chorei.
..........Uma
solícita senhora me perguntou se eu sentia alguma dor, eu disse
que não. Perguntou se eu estava perdido, eu disse que não.
Perguntou "então choras por quê?" Eu disse
que havia perdido o dinheiro do ônibus para voltar pra casa.
Ela me deu algumas moedas e seguiu em paz com a sua consciência.
..........Fiquei
ali até anoitecer e foram naquelas horas de dor, choro, desespero,
lembranças, autocomiseração e medos que decidi
não contar a Madalena, minha madrasta, nada do que acontecera.
..........Começava
a escurecer quando tomei o ônibus da linha Campo Grande —
Ribeira. O sol acabara de se esconder atrás da Ilha de Itaparica
quando descemos a Avenida Contorno para alcançar a Cidade Baixa.
Saltei no Largo de Roma, a cerca de meio quilômetro da minha
casa, e fiz o resto do caminho a pé, maquinando o que diria
quando chegasse. Talvez, pensei, a notícia me precedesse e,
por dor mais dolorosa, o esquecimento apagasse em Madalena a preocupação
com a minha ausência, poupando-me explicações.
..........Havíamos
saído, eu e papai, os dois gozando férias, às
dez horas da manhã daquela quarta-feira, para pedir na loja
onde ele trabalhava, e em outras, aos seus camaradas de ofício,
retalhos de tecidos, imprestáveis para o balcão, que
sempre sobram das vendas natalinas. Retalhos para Madalena cozer "colchas
de fuxico" e vender, de porta em porta, engordando o haver do
nosso parco orçamento doméstico.
..........Recolhêramos
uma boa quantidade de retalhos quando papai foi atropelado já
quase concluída a travessia. Eu, saltitante de alegria pelo
passeio ao centro da cidade, correra destemido na frente, entre os
veículos, livre das suas mãos enormes no meu pescoço,
porque ele tinha-nas ocupadas, carregando os embrulhos.
..........Chegando
na calçada, ouvi o guinchar de freios, o som surdo da porrada
do carro em papai e o da sua cabeça espatifando no chão.
Virando-me vi-o já cadáver, a massa encefálica
à mostra, seu sangue jorrando e, rompidos os embrulhos de papel
sob as rodas de outros carros, os retalhos irremediavelmente perdidos.
..........A
caminho de casa passei na de Guga, amigo de brincadeiras e colega
de sala na escola. Ele morava na melhor casa da rua, a única
com quintal, quase um bosque mágico habitado por fadas e duendes,
onde costumávamos brincar nos balanços atados aos galhos
altos de uma frondosa mangueira de frutos dulcíssimos. Balanços
que transformávamos em trapézios como os do Circo Garcia,
que armava a sua lona nos arredores por quinze dias a cada ano; ou
que desmontávamos, retirando-lhe as tábuas, fazendo
das cordas os cipós onde brincávamos de Tarzã,
o homem macaco, herói e paradigma, meu e de Guga, invencível
nas lutas contra leões, tigres, jacarés e homens maus.
..........Ainda
na porta, Guga me perguntou por onde eu andara a tarde inteira e me
informou que Madalena procurara-me. Menti-lhe dizendo que me perdera
de papai na Avenida Sete de Setembro e que voltara a pé desde
lá. Era a versão que preparara para Madalena e foi o
que disse quando ela me inquiriu.
..........—
Você não devia sair de junto dele, você é
muito traquinas! — ela recriminou-me — Onde já
se viu, se perder do pai. Geraldo deve estar lhe procurando como um
louco. — A notícia ainda não lhe chegara.
..........Tomei
a sopa que ela me serviu e não saí para brincar com
a molecada da rua, como era natural ter feito se outra fosse a situação.
Fui para o meu quarto de onde era perceptível a preocupação
de Madalena: ouvia-a ir e vir, trilhando várias vezes o curto
percurso entre a porta da rua e a cozinha, arrastando os pés
no corredor e praguejando com a demora de papai. Foi quando, pela
primeira vez, tive pena dela. Apesar de sempre me tratar com doçura,
abdicando de violências mesmo se eu não lhe obedecia,
via-a, até àquele dia, injustamente, como um estorvo:
uma mulher, que não era a minha mãe de verdade, me obrigando
a cumprir horários e tarefas.
..........Não
durou muito a aflição de Madalena. Passava pouco das
nove da noite quando bateu à porta um policial perguntando
se era ali a casa do Sr. Geraldo Freitas Alencar.
..........—
É, sim, mas não está — respondeu Madalena.
..........—
A senhora é o quê dele? — quis saber o policial.
..........—
A mulher. — do .quarto .ouvi
que a .voz de Madalena sufocava ganhando
um tom de pânico — Mas qual é o problema?
..........—
Sinto muito senhora, seu marido foi atropelado e está morto.
Precisamos que a senhora nos acompanhe ao Nina Rodrigues para fazer
o reconhecimento do corpo e para tomar as providências para
o enterro.
..........Atraída
pelo carro de polícia parado na porta lá de casa, a
vizinhança foi chegando para assuntar a novidade. Do quarto,
o som atravessando o compensado da porta, eu ouvia Madalena chorando
convulsivamente e invocando o Nosso Senhor do Bonfim, esperançosa,
ainda, talvez, que fosse um engano, que o corpo encontrado não
fosse o de papai. Pela janela entrava o alarido do povaréu
na rua e logo as vozes de consolo invadiram a casa. Uma delas perguntou
por mim e Madalena respondeu que eu estava dormindo. Temendo que alguém
se dispusesse a conferir, fiquei deitado, quieto, as costas voltadas
para a porta do quarto e adormeci.
..........A
bruxa vinha me pegar, eu queria correr, minhas pernas se moviam, mas
eu não saía do lugar, papai ria um riso de som áspero
como o do freio inútil, como o dos pneus cantando nos paralelepípedos,
como os das vozes estranhas, como os das buzinas dos automóveis.
Os urubus davam voltas em torno de mim e me bicavam. A bruxa, língua
bipartida, com mau hálito de cebola e alho, mortalha de jornal
negra e branca, já quase me pegando. Papai rindo, chamando
e rindo, não corra, não corra, venha Júnior,
não fuja...
..........Acordei
do pesadelo no meio da madrugada, com a casa silenciosa e totalmente
escura, o coração pulsando aos trancos. Levantei-me
para beber água e espantar o medo, acendi a lâmpada da
sala e, no corredor, a porta aberta do quarto de papai, a cama do
casal vazia, o lençol encardido espichado, indicavam que Madalena
ainda não voltara da sua triste missão. Passei insone
o resto da noite, rolando na cama, conjeturando um futuro sombrio.
..........Amanhecia,
somente os galos mais atrasados ainda cantavam quando Madalena chegou.
Ouvi o barulho da chave na fechadura da porta da rua e continuei deitado,
fingindo que ainda não acordara. Ela foi para a cozinha, coou
o café e foi me acordar com um copo de café com leite
condensado e o pedaço de pão seco de todo dia. Esperou
que eu me alimentasse e, não conseguindo mais conter as lágrimas,
comunicou-me a morte de papai.
..........Não
sei por qual mecanismo da minha psique, chorei como se fora coisa
não sabida, como se fora confirmação de algo
que, até então, pertencia ao universo do talvez.
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