©fani bracher

aladim, o alfaiate
 
Gostava de olhar o tecido muito bem estendido sobre a mesa, com as marcas de um giz especial, em forma de pequeno disco e, no chão, muitas tiras de tecidos já aparadas por uma tesoura enorme, que meu tio usava. Nos meus pequenos nove anos como desejava ter um giz daqueles!

E como era sonora a palavra alfaiate! Para mim, que freqüentava a escola primária, alfaiate era muito interessante, porque não terminava em "o", mas referia-se ao gênero masculino.

Ouvi muito cedo esta palavra, que associava a algo importante, pois meu tio estava sempre de gravata e quase sempre de paletó, mesmo nos dias de semana. Ele sabia fazer ternos para homens, e que ternos! Tão bonitos e bem desenhados, bem talhados e com tais acabamentos, ele fazia! Todos queriam ter seus ternos feitos por Aladim.

Logo que me chegou às mãos a fábula Aladim e a lâmpada maravilhosa, passei a perguntar a meu tio se ele conhecia alguma lâmpada com poderes mágicos, ao que ele sempre respondia com um paciente sorriso.

Todo dia, passava pela frente de nossa casa, muito quieto, com outros senhores que iam para o centro da cidade, trabalhar.

Quando vinha visitar sua mãe, com quem morávamos, às vezes, afrouxava a dentadura nas pausas da conversa, para nos fazer graça. Eu delirava com aquele sorriso adiantado, um pouco mais à frente. Dentes que riam sozinhos adiante do rosto, por certo, riam à toa. De graça, riam.

Nossa infância, vivida há uns quarenta e tantos anos, não incluiu pré-escola, nem festinhas de aniversário, nem colo de pais, tios ou avós. Os adultos absorviam-se excessivamente no trabalho e não sobrava tempo para diálogos ou paparicos com as crianças. Possuir uma bicicleta era um luxo impossível, tanto que foi inesquecível quando me equilibrei pela vez primeira na pequena bicicleta de duas rodas do nosso vizinho.

Era esse o universo familiar, um tanto limitado de recursos, quando meu tio Aladim adquiriu uma lambreta!

Naquele dia, pertinho de uma e meia da tarde, veio o alfaiate pilotando devagar. Gostei de ver que meu tio parou, estacionou diante de nossa porta e entrou para falar com minha avó.

Fiquei por ali, sem imaginar que Aladim me perguntaria se eu queria dar uma volta. Nem respondi e já fui sentando-me na garupa. Meu tio tomou seu lugar, ligou a ignição, guiou até o outro lado da rua, fez a curva e retornou ao meio-fio da calçada de nossa casa.

Eu não acreditava que havia andado de lambreta! E eu nem pedira! Afinal, jamais deveria pedir algo que nem aos filhos ele poderia proporcionar amiúde. Seu meio de transporte era para levá-lo ao local de trabalho e nunca para o lazer.

Ele soube adivinhar como o meu coração de criança ficaria contente com seu gesto. Naquele dia ele atrasara uns três minutos seu expediente, porém me levou em sua lambreta para dar uma voltinha. Rodamos uns 20 metros no máximo, mas foi o suficiente para que eu compreendesse a sua extrema gentileza. Para que o recordasse para sempre! Para que o conhecesse para a vida toda!

Hoje, lembrei-me de que o Aladim da lâmpada era chinês, que a palavra alfaiate vem do árabe e, por curiosidade, descobri que existe a palavra alfaiata, que designa a mulher que trabalha como alfaiate.

Minha mãe e minha avó também usavam máquinas de costura e eram exímias artesãs, mas elas não tinham uma placa assim tão impressionante (ao menos sob minha ótica infantil), na rua principal do centro da cidade. Onde se lia: "Aladim, o Alfaiate".

 

 
 
 
o filho da santa
 
 
"Posso ver o bebê?".
 
A  moça parou, olhou, ensaiou uma sorriso desconcertado, e afastou o cobertorzinho que protegia o recém-nascido, enquanto Rita procurava algum traço, quem sabe de um patrãozinho conhecido na cidade, ou de um sujeito bem empregado, de um vizinho... "Muito bonito o seu filho! Desejo-lhes tudo de bom!". Sendo bem sincera, pensava Rita ao afastar-se, a criança não parecia ter muita saúde, o menino era um tanto "amarelinho" considerou, compadecendo-se da jovem mãe com sua cria "sem pai", e sua labuta diária naquele emprego de varar noites.
 
O relógio fora colocado pra despertar às seis e quarenta e cinco, Rita precisava  sair pelo seu portão, no horário em que, antes da esquina, pudesse cruzar com aquela consumição. Diante do espelho, expressões de ameaça iam sendo treinadas no olhar. Nenhuma palavra seria pronunciada ao cruzar com a garota, mas dos seus olhos deveria saltar a frase: "Estou de olho em você, menina".
 
Com o pretexto de cansaço minha comadre Rita foi deitar-se mais cedo, antes, porém, tomou duas xícaras de café forte. Era sábado, a vizinha bonita não trabalharia, Rita já fizera um esquema e sabia em quais finais de semana a moça dava plantão.
 
Para chegar até o local onde podia ser visto pela vizinha, o marido da comadre precisava atravessar a sala e passar pela porta que abria a varanda, e foi bem ali, na porta da varanda, que a dona da casa esqueceu "Bicudo", o pequeno regador das violetas, com água pelo meio.
 
"Filho da puta!" disse bem baixinho o Téo, quando chutou o regador de plantas. A esposa manteve-se "dormindo" e logo que Téo iniciou o ritual da paquera, ela foi de gatinhas espiá-lo na penumbra. Dentes cerrados nas maxilas, para não soltar uma gargalhada nervosa, ainda mais em situação tão hilariante, Rita  esgueirava-se de vez em quando para ver também a vizinha. A noite era uma delícia de temperatura e silêncio. Rita não conciliava em sua cabeça aquela excitação que lhe acometia ao observar o marido sobre a mureta da varanda. Sentado feito Buda, encostado no pilar, enquanto a garota debruçada na janela ao lado, mostrava parte dos seios pelo decote da camisola curtinha. Na transparência do tecido dava para ver o restante.

Ela sorria naquelas horas mortas! A consumição sorria, justo ela, que à luz do sol ninguém ouvia dar uma palavra, ou via seus lábios se moverem para sorrir. Ela sorria!  Que sorriso convidativo ela dava pro marido de Rita... E ele ali. De vez em quando levantava-se, acendia um cigarro, a mão esquerda ocupando-se com o pito, a moça bonita sorrindo, sorrindo na noite quieta, uma delícia, a outra mão dele dentro da bermuda. Na janela aqueles peitinhos... quase tudo para fora da camisolinha.
 
A comadre, estranhamente excitada, de quatro, espiando. Que  coisa mais desgastante ter que dividir sua energia entre o ciúme que sentia do marido e a taquicardia que lhe vinha, ao percebê-lo cheio de tesão. Isso era o mais intrigante, Rita estava gostando do suplício! Téo ali, velhaqueando dentro do potreiro.
 
A noite não acabava nunca, a esposa de olhos secos, arregalados, com a alma partida, duas xícaras de café forte, e a vontade de estrangular a moça bonita.
 
Tudo transcorrera tão bem entre Rita e Téo, até que aquela família mudara-se para a casa azul. Aquela jovem, de dia calada, séria, e de noite, sorridente. E justo pro Téo! O pior, bem pior naquelas noites na varanda, foi perceber que o interesse do marido, guardado na mão direita dentro da bermuda, deixava a Rita cada vez mais excitada. Isto sim era humilhante! Ficar com a libido a mil naquela posição, naquelas circunstâncias!
 
Amanhã ela não trabalha, é dia de azaração... pensava Rita, enquanto tentava um jeito de abrir o jogo com o marido. Havia uma loba dentro daquelas noites, dando tirão nas amarras, furiosa, correndo por dentro da minha comadre, mas ela nascera sem tempo para o confronto, não queria sangue. Os trincos da porta da varanda foram deixados de maneira a denunciar a passagem de alguém, se fossem abertos.

"Téo, vou lá dar um abraço na Regina, que ela tá de aniversário e volto logo". Claro que os trincos haviam mudado de posição e claro que Rita esgotou naquela noite toda a disposição física que sobrou da estadia do Téo na varanda. Foi na mão, foi na boca, foi na própria gruta que ela surrou. Ela só parou de mexer no marido quando ele, esgotado, alegou que precisava acordar cedo. Quem acordou mais cedinho foi a esposa. Seis e quarenta e cinco.
 
Lá vem ela. É bem lindinha essa moça, pensava minha comadre. E como é sério seu rosto. Há um arzinho de tristeza misturado com algo que lembrava desejo. A garota andava macio, vinha pisando delicada e por trás tinha aquela bundinha perfeita, aquele reboladinho macio, ritmado, que nenhum travesti conseguiria imitar, por mais talentoso que fosse. Havia mesmo um arzinho de santa nessa menina, pensava Rita, enquanto caminhava em direção à mocinha vestida de calça branca, jaleco branco na mão... tudo branquinho. Foi muito, muito estranho, lá vinha a belezura e aquele ódio no peito de Rita foi amainando sem explicação. A consumição caminhava em sua direção, mas já não incomodava, ela era tão lindinha, tão seriazinha misturada com tristinha. Pronto. Rita passou por ela, olhou-a, e enxergou-a toda delicada, toda insone, assim toda de branco, retornando para descansar de uma noite de plantão. Rita voltou para a casa, compreendendo de uma vez por todas que tivera a graça de uma aparição. Era mais do que certo! Aquela moça era uma santinha! Uma santinha entranhara-se naquele corpinho lindo, naquela carinha sonolenta, doce, triste e com ares de saciedade temporária. Rita precisava colocar mais vezes a própria mão dentro da bermuda do Téo! Foi no estalo que a coisa fluiu.
 
Ela precisava insistir, mesmo quando sua mão parecia ter cãibras, ela precisava fazê-lo, obrigá-lo a pedir trégua nas madrugadas. Era a mensagem da santa! Justo ela, que não abria a boca para nada, dera o recado para Rita.
 
Em menos de um mês a família da casa azul mudou-se dali e a aparição foi vista ainda outras vezes por Rita, claro, a cidade era um ovo. Numa dessas oportunidades a moça bonita estava com um figurão numa festa, de outra vez, estava com outro senhor já menos famoso, depois Rita viu os dois senhores com outras mulheres. Pelo jeito, a santinha ainda vai padecer muito na mão desses hereges pecadores que não sabem a dureza que é criar filhos com salário mínimo, que eles nem sequer querem registrar. Não registram filhos, nem salários! Covardes e injustos! Sórdidos impunes! Até hoje Rita afirma pra quem quiser ouvir: ela foi uma santinha que apareceu na minha vida, ainda bem que a reconheci a tempo!  Ainda bem que o filho dela não se parecia com ninguém da minha rua!
 
Ainda bem que os filhos da comadre Rita não eram assim amarelinhos, com cara de doentes. Matutava eu. Aquela criança era só mais um pobrezinho dentre inúmeros que nascem pra viver largados, como guaipecas sem dono. Aquele era o filho da potra! Quer dizer, da outra. Da santa!

 
 
 

 
Fahtima Michels (Maria de Fátima Barreto Michels), catarinense, vive em Laguna-SC, onde é estudante de História da Arte. Publica seus poemas e crônicas no "Jornal de Laguna" e na Web. Interessa-se pelas diversas manifestações e linguagens artísticas, preferencialmente, pela música e literatura.