A UM PASSANTE

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Charles Baudelaire  

Num burburinho para entretenimento e abastecimento de títeres, os olhos especulares de um ser surrupiaram impulsivos umas heranças minhas (afetos malfadados, promessas nunca feitas, nem por mim nem por ninguém). Essas realidades dormentes delinearam-se bem suspensas dali, enquanto os olhos de catálise do belo desconhecido modificavam as velocidades do conjunto de reações que eu era naquele instante. Não sei se os olhos dele viram aquelas nuvens suspensas lá.


 

VERSOS LIVRES PARA BLAKE
 
guapo Tigre incandescente, nas negras florestas faísca luzente, que imortais mãos, que olhos te conceberiam em tua estupenda harmonia? que profundezas oceânicas ou celestes enfrentariam a brasa dos teus olhos? brasa móbil de vôo ágil, que mão aprisionaria teu fogo? com que esteio, com que mestria o artífice vergou em versos as fibras vigorosas dos teus músculos! com que arrimo, com que perícia captou em sons o pulso de tuas artérias! com que elos cingiu tua força e teu cérebro na fornalha de Suas rimas! com que possante punho manejou a pluma que revelou de ti o colossal assombro! depois de as estrelas dardejarem o céu com suas lanças e o firmamento com suas lágrimas, terá enfim o Poeta em repouso contemplado Sua obra com um sorriso? ou terá Ele criado O Cordeiro apenas para fazer-te mais Tigre? guapo Tigre incandescente, nas negras florestas faísca luzente, diz-me: que imortais motes, que outros versos te ousariam conceber em tão estupenda harmonia?

 

 
 
 
 

AVE-MARIA

 

Findas as fainas dos dias

o céu é uma pátria distante

projetada entre os vãos estreitos

de edifícios que assombram e iludem.

 

Eles parecem arranhar o infinito

mas lá só os pássaros habitam

e seu canto-conjunto é uma grande nuvem

que borrifa a Terra dia a dia

com melodias próprias para conservação da poesia.

 

Vidas engastadas umas sobre as outras

os fiéis rezam.

 

 

 

 

 

 

POEMA OCULTO

 

Plena de poesia a alma

à revelia

projeta nas plantas

suas paragens ensombrecidas

 

É a folia

 

Diz-se dela que se dá

quando

as sombras nas paredes

se compactam corpo

a corpo com o concreto

e armado sob os móveis

verifica-se o espírito invulgar

que habita cada objeto

 

Eles nos olham

— parecem duendes urbanos —

As plantas riem

As fotos andam

O telefone tange

 

Um deus oculto no poeta

chega e sopra o pó

das poltronas

 

Tudo se ceramifica

Algum mineral nos habita

 

 

 

 

 

 

RETRATO DOS AVÓS PATERNOS QUANDO JOVENS

(Lembrando-me Camões, Da Vinci e Wordsworth)

 

 

O casal desconhecido encara-me

seus olhos emudecidos dizem tudo

do tempo que foi

O casal — que tem nos braços

o primogênito já ausente fitando de viés o além

(deste sabe-se hoje que não permaneceria) —

fixa a câmera para melhor nos ver (agora):

a isto chama-se a posteridade

 

Ela

é bela

Monalisa por um triz

porém séria

mas traz ao fundo nebulosa natureza semelhante à da célebre tela

ainda que mais selvagem, pois sob os trópicos

(claríssima água corrente por entre morros sombrios —

aqui não há campos cultivados)

Ele

o pai do meu pai garoto

de terno preto

(The child is the father of the man)

é triste

sabia já quiçá

que pelas asas de Morfeu

(extinguiu-se tempos depois — em pleno sono — o avô)

logo iria ter às margens do Letes

para lá se esquecer e ser esquecido

 

Ela

sobrevivente única deste naufrágio

estava à terra quando cheguei

porém já outra: era avó

cabelos olhos mãos

boca pele ventre

cores e formas outros

 

Mudam-se os tempos mudam-se as paisagens

perdem-se os seres e os seus lugares

toda a vida é composta de passagens

deixando sempre vívidos pesares

 

 

AS COLEÇÕES DA TIA

"Todas essas velharias têm um valor moral".
Charles Baudelaire

A tia nunca jogava nada fora (e nisso era um personagem comum a muitas famílias abastadas). Ela nunca jogara nada fora. Comprava infinidades, guardava tudo. A casa da tia era uma espécie de palimpsesto irredutível da memória: latas de óleo e de sardinha com data vencida há décadas, caixas de sabão em pó de marcas desaparecidas do mercado, panos de prato e toalhinhas de crochê contados às centenas e que tinham resistido bravamente aos anos, ainda que bem amarelados, na espera de um hipotético casamento, deixando de cumprir assim sua missão de enxoval (pois não é precisamente disto que o verdadeiro colecionador extrai seu máximo deleite? Subtrair os objetos a suas funções primitivas, desviá-los delas para inseri-los numa organização enciclopédica do mundo em que a utilidade torna-se inútil, eis a lei do verdadeiro colecionador) —, rolos de papel higiênico decorados com motivos florais, alguns estrangeiros, caixinhas de fósforo oferecidas em hotéis, os ternos de casamento dos irmãos defuntos, o primeiro par de sapatinhos de cada um dos três afilhados, os primeiros sutiãzinhos de cada uma das sete sobrinhas, tudo isto tingido pela pátina inevitável que se deposita, com o passar das décadas, sobre os objetos dóceis. Toda a casa era um imenso aluvião em que se haviam acumulado a infinidade de detritos que produzem a erosão do tempo que passa e a vida que foge: três quartos, cozinha, sala, banheiro, um porão repleto de mistérios e a casinha dos fundos, nada tinha escapado à fúria colecionadora. A garagem coberta também servia: havia ali uma confusão de prateleiras e armários velhos, de caixas e bauzinhos curiosos e incrivelmente estragados. Num dos armários, a quantidade de sabonetes era inusitada. Havia 53 sabonetes! 53 sabonetes para uma única e solitária mulher! As marcas dançavam num festival de embalagens de outrora, com nomes evocadores de imagens nostálgicas, em branco e preto, da infância, do tempo em que os aparelhos de televisão eram uma raridade: Lux, o sabonete de nove entre dez estrelas de cinema, Palmolive, Granado, Rexona — este último já muito anos 70, a cores e para mulheres esportivas — e até mesmo um estóico exemplar da indústria cem por cento nacional, Nur, um verdadeiro e manuel-bandeiriano sabonete de Araxá, feito com a lama sulfurosa daquela para sempre misteriosa cidade mineira esquecida entre os morros semelhantes a grandes gigantas deitadas ao sol, Araxá, paraíso demodê de uma lua-de-mel que não houvera no pós- guerra getulista em cenário de Grande Hotel mussoliniano.

Em seus últimos meses, carcomida pelo cancro devorador, este outro insaciável colecionador de órgãos, tecidos, células, a tia fora obrigada a mudar de casa para findar seus dias. Não havia mais espaço ali para as novas coletâneas a vir com a panóplia dos cuidados médicos: camas especiais, três poltronas que talvez lhe aliviassem a dor porque assim ela poderia enfim sentar-se em certas posições, tapetes e esteiras mais, ou menos espessos para dormir no chão porque o desatino, aliado ao calor insano de janeiro, era tamanho, que só lhe restava prostrar-se no meio da sala, sem falar em outros apetrechos auxiliares como bengalas, três pares de muletas, ataduras de diversos tamanhos e cores, bacias para banhos de assento, meias elásticas que talvez ajudassem a suportar o peso das pernas mas que finalmente nunca serviram, diferentes tipos de cintas femininas também inúteis, pilhas de lençóis de linho e algodão para serem trocados incessantemente como se isso pudesse refrescar a brasa daquele martírio, irrigadores medicinais, clísteres, fumigadores, seringas e bolsas de água de diferentes feitios, além de um amontoado de vidrinhos abarrotando uma estante, contendo remédios à base de plantas vindas dos quatro cantos do Brasil: poções feitas segundo os saberes tradicionais dos índios do Sul, ervas nativas da Amazônia, plantas secas comercializadas por uns bugres no mercado local, tudo na tentativa vã de acalmar o indesejável morador de suas entranhas, o caranguejo implacável.

Mais espaço para as coleções da tia! Mais espaço! Simplesmente porque o sofrimento déspota do seu corpo pedia mais e mais espaço para se estender ocupando agora tudo na consumação daqueles dias terríveis. Avareza, decrepitude e velhice viveram em mui boa inteligência no corpo da tia. Coitada. Mas alguém já tinha mesmo dito que a necessidade de acumular é um dos sinais prenunciadores da morte nos indivíduos, bem como nas sociedades.

 

 

 

(imagens ©m/m paris)

 

 
Flávia Nascimento Falleiros é professora universitária e tradutora literária, autora de vários artigos publicados em revistas universitárias (sobre as literaturas francesa, portuguesa e brasileira). Publicou alguns poemas na revista Inimigo Rumor n° 17, é autora de uma plaquete de poemas inédita: Brasa móbil de vôo ágil, e de textos curtos em prosa, também inéditos. Paulista (mas também um pouco mineira), vive atualmente, desarraigada, na França. Escreve para trocar de pele, o que no fundo é uma forma bastante peculiar de desespero ligada, provavelmente, à constatação do caráter efêmero da existência.