CASA DOS AVÓS

 

Um tronco de árvore atravessado no quintal —

os homens, exaustos

em mangas-de-camisa,

gesticulam apontando para o tronco.

Na casa em silêncio,

miniaturas espalhadas pelo chão, deixadas ali

por oito crianças vestidas de preto.

Um dos meninos (meu pai)

passa correndo, agarra um soldado,

e o faz voar janela afora

para dentro da floresta tropical.

Nunca vira homens tão fortes.

Eles falavam em construir um caixão.

 
 
ALGAS À NOITE
 
O farol no fim da península,
dois vultos parados,
a sugestão de um beijo:
tronco retorcido caído na areia,
as raízes expostas como cabelos ao vento.
 
Noite sem vento.
O mar recolhe aos pés a noção de distância.
Caminho em direção ao mar
e para fora do ângulo do beijo.
As mãos em concha, encho-as
com água escura:
 
uma alga flutua (brilha) no vazio.
 
ALGAE AT NIGHT
 
The lighthouse at the peninsula's end.
Two still figures,
the suggestion of a kiss:
a twisted trunk on the sand,
its roots exposed, hair in the wind.
 
Night with no wind.
The sea at my feet gathers the notion of distance.
I walk toward the sea,
Losing the angle of the trunk.
My hands cupped, I fill them
with dark water:
 
algae float (sparkling) in emptiness.
 
URUBORO
 
Silêncio duvida de mim
deste lado do muro —
 
Tarde traça
em solo endurecido o modelo
de uma rotina adquirida
por um ciclo
de inadequações. Mudança
 
enrola-se num galho de hera
suspenso sem raiz:
agitação de folhas
faz bater o portão às costas.
 
URUBORO
 
Silence does not trust me
on this side of the fence —
 
Evening draws
on hardened soil the scheme
of a routine based
on a cycle
of inadequacies. Change
 
coils around an ivy branch,
suspended, rootless: 
        agitation of leaves
behind me shuts the gate.

 

TANGENTE 

1.

O som do rio

abafa o zunido de uma abelha

entre flores pequenas na outra margem.

 

No bananal, sombra ao meio-dia,

bananas ainda verdes.

 

Uma criança vai à frente, descalça,

distraída, colhendo pequenas flores brancas,

que crescem em mato cortante.

 

Bananas maduras nos mercados

e flores pequenas para um buquê.

 

 

2.

O anel brilha na mão

segurando o buquê. Carrega-o

sem esforço. Uma folha cai.

 

A mesa está posta: mel, leite, cereal

e bananas. Flores brancas num vaso.

 

Pela janela,

vê-se o apartamento oposto ao nosso,

uma criança dorme.

 

É meio dia, o sol alto.

Nosso prédio na sombra de outro.

 

 

3.

Um pêndulo acima da velha cadeira.

Apagamos as luzes, fechamos a porta.

Uma janela esquecida aberta.

 

Luz da tarde embranquece as flores.

Na rua, andamos mais devagar.

 

As fachadas vão perdendo

contraste. Uma curva à esquerda:

Nunca fizemos este caminho.

 

À noite, as ruas se parecem.

O rio corta o bananal.

 

 

4.

À porta do prédio, um estranho

detrás de um vitral olha para o pulso.

Não nos vê entrar.

 

A mesa desfeita: cereal, cascas

de bananas e farelos de pão.

 

As flores começarão logo

a murchar. Do prédio oposto,

uma criança nos observa.

 

Nuvens sobre o bananal.

Chuva cai na cidade.

 

TANGENT 

1.

The sound of the river

muffles the buzzing of a bee

in the little flowers on the other bank.

 

Shade at noon in the banana plantation,

bananas still green.

 

A child walks ahead of us, barefoot,

distracted, picking little white flowers

that grow in the sharp grass.

 

Ripe bananas in the market

and white flowers for a bouquet.

 

 

2.

A ring glistens on the hand

holding the flowers. It holds them

at ease. A leaf falls.

 

The table is set: honey, milk, cereal

and bananas. White flowers in water.

 

Through the window

we see the room opposite ours,

a child asleep.

 

It's noon, the sky is clear.

Our building in the shade of another.

 

 

3.

A pendulum above an old chair.

We turn the lights off, lock the door.

A window left opened.

 

Twilight whitens the flowers.

We walk faster on the streets.

 

The facades of the buildings begin

to loose contrast. A curve to the left:

we've taken this way before.

 

At night, the streets are alike.

The river runs into sharp grass.

 

4.

At the entrance, a stranger

behind glass is looking at his wrist.

He doesn't see us walk by.

 

The table to be cleaned: cereal,

banana peels and bread crumbs.

 

The flowers will soon begin to wilt.

From the room opposite ours,

a child watches us.

 

Clouds over the banana plantation.

Rain over the city.

 

LAPSO DE TEMPO

Uma cesta contém algo que se repete.

 

Na hora exata, o sol

forma quatro quadrados simétricos

na parede da cozinha, através da vidraça.

 

Todas as vezes que você escuta não,

é uma criança que passa debaixo da mesa,

deixando uma dobra perigosa no tapete.

 

Cada palavra insignificante

é uma tábua que racha, cada conversa

um teto que desaba.

 

Nunca puseram cortinas na janela da cozinha —

a luz entra e sai quando quer.

 

 

LAPSE OF TIME

 

A basket has something that repeats itself.

 

At the exact hour, the sun

makes four symmetric squares

on the kitchen's wall, through the glass.

 

Every time you hear no

it’s a child that runs under a chair

leaving the carpet dangerously fold.

 

Each meaningless word

is a plank cleaved, each conversation

a ceiling that falls.

 

They never hunged curtains on the kitchen's window.

Light enters and exits, as it ought to.

 

 
POEM WITH ORANGES

 

                    El niño come naranjas.

                   (Desde mi balcón lo veo.)

                                     — Lorca

 

A lizard in the sun

near a bush with tiny leaves.

(An orange-tree there

would form dark circular spots

on the ground, upon the lizard).

 

A lizard and a bush

near the well

in the garden of dragonflies.

 

Each time I pumped water

the lizard ran under a bush.

 

There were no oranges in the garden

but I was there

with a dragonfly stuck to my hair.

 

 

 

 

 

(versões para o inglês pela autora :::  imagens ©mkorb )

 

 

 

NOTA

 

Eu nunca disse. É como

se eu entendesse, subitamente,

o sentido das perspectivas.

 

Vôo de um pássaro reluzente desta árvore

para a mesma árvore mais atrás.

Nossas cabeças, uma figura

 

minimalista: duas linhas retas e um sol

no ponto de fuga. Janela aberta

para o poente fixo, a iluminar

 

com raios difusos, esta nota inacabada.

Galho quebrado trazido do fundo

no bico de um pássaro reluzente.

 
Flávia Rocha nasceu em São Paulo em 1974. Fez mestrado em criação literária (M.F.A in Writing) na Columbia University, em Nova York, e é uma das editoras da revista norte-americana Rattapallax. Em São Paulo, trabalhou como jornalista nas redações das revistas Bravo!, República e Carta Capital. Seus poemas, traduções, projetos editoriais e ensaios têm sido publicados em revistas no Brasil e no exterior. Desde abril de 2004, integra a equipe da Travessa dos Editores. Na área de cinema, é co-fundadora da Academia Internacional de Cinema de Curitiba.