CIDADE CINDIDA

 

 

Ruas 

 

e uma centena de sílabas

 

cifradas

 

furtivas

 

com desmoronamentos de casas

 

e feridas em suas calçadas.

 

Mas sempre haverá algo que o agrade;

como o vôo do pássaro sobre o parque

ou a companhia muda das árvores.

 

 

 

 

 

 

A VIBRAÇÃO DO RIO SOBRE A CIDADE

 

 

Temos visto árvores despidas na cidade

que levantam calçadas e reclamam seu espaço.

Suas raízes se abraçam como amantes subterrâneos

que sabem de sonhos e perdas.

 

É estranho estar aqui e ouvir o grito das gaivotas

que caem incertas sobre a água.

Esperar uma barcaça de madeira

ou a fuga do sol no oceano.

Seis e meia da tarde nas margens do Mapocho;

a inevitável cicatriz de Santiago.

 

Estes escritos se perderão com o fluir do rio

e seu eco será como ver-se num filme absurdo

cujos atores principais já não atuam.

 

 

 

 

 

 

SEM DESPERTAR A FOLHAGEM

 

 

Contemplamos as folhas das árvores 

onde estão nossos vestígios de humanidade 

com mais apreensão que quietude 

pois o vento tratará de apagar tudo,

inclusive o ventoso do teu cabelo

em cujo bosque desejo desaparecer.

 

Se a magia não fosse passageira, dirias:

"Espera-nos, tempo inexorável!

E deixa que a árvore diga árvore

quando move as folhas".

 

 

 

 
ANTES DE ESCREVER UMA CARTA
 
Até o rio que contemplamos essa tarde augurava o final, no entanto tivemos por um momento as chaves do paraíso; um quarto de hotel, palavras e promessas que logo será terrível recordar. Cada carícia, passo e expressão são epitáfio. Por algum motivo, a gênese do poema dizia nevermore. Partirias duas semanas depois a Bolonha, nem sequer imagino essa cidade, mas aquela tarde fomos dois náufragos navegando no tempo de nossos corpos. Também tinham razão o sol e o entardecer ao se apagarem. Saberás com essa vida que um dia se escapará? Saberei eu? O real é que já não nos perguntamos se vale ou não a pena nos escrevermos.
 
 
 
 
 
 

LINHAS SOBRE A CAPA DE UM DISCO DE STAN GETZ

 

Saímos do amor como de uma catástrofe aérea

depois de vagar por motéis e praias solitárias

onde nossas pegadas desapareciam após a maré;

dias e dias de nos banharmos com champanha

e de fazer amor enquanto gritavam as ondas.

Fomos uma rara espécie de animais

que escreviam sáficos imperfeitos

em seus corpos nus.

Assim, brincávamos de crer que dominávamos a língua

como dominávamos esse instante.

 

Hoje atesouramos manuscritos, discos de jazz, livros

e essa chama que quiséramos acender

como um profano que retorna à sua crença

e acende as velas de um oxidado candelabro.

 

Saímos do amor como de uma catástrofe aérea

sem bagagem nem passagens de volta.

 

 

 

 

 

 

ESCRITO ENCONTRADO NUMA MESA DO RESTAURANTE MIRAMAR (QUINTAY)

 

Se o abismo não nos chamara com seu silêncio

não poderíamos ler Trakl, nem permanecer horas

olhando estas lápides anônimas que golpeia a tempestade

como o grito da ave que acompanha os mortos.

Linhas de Sebastián en sueños no final de uma praia

de areias movediças como náufragos. Nosso tempo

deveria ser infinito como as areias dessa praia.

Mas toda cinza, toda embriaguez, toda permanência

é desnecessária porque perecemos. E na costa — como se sabe — segue

o incessante espetáculo das ondas. Caminhamos

sobre ossamentas dispersas que têm devolvido as ondas do mar,

caminhamos para abrir tantas portas;

portas de aço, portas de madeira, portas invisíveis,

— mudança interior da qual queremos nos desprender —

na qual uma palavra leva tudo o que possuímos.

 

 

 

 

 

 

OS AMIGOS JÁ NÃO SÃO ORIGINAIS ANTE A MORTE

 

A morte é a cinza do poema

A morte anda por toda a parte

A morte é a hóspede predileta

A morte é anáfora e punhal

A morte rabisca páginas diariamente

(e desordena os quartos de hotéis

que abandonamos ao amanhecer).

 

A morte se impacienta

e somos seus fiéis cativos.

Nos aguarda na cidade

com seres sombrios

que se buscam entre a multidão  

e comentam os jogos de azar 

perto de avenidas e pontes. 

 

Por isso, o melhor é nos protegermos à noite 

para chegarmos à eterna conclusão: 

os amigos já não são originais ante a morte. 

 

 

 

 

 

 

CICATRIZES E ESTRELAS

 

Sob a música de Duque e as páginas de Vian me escondo

entre a sombra de personagens que bailam até desaparecerem.

Magnífico lugar, como o país diminuto em que o gato

é monarca absoluto entre insetos e folhas secas.

Mas às vezes o universo de outros é preferível a esta tarde

de junho, em que vemos desfalecer as luzes

através da espuma dos dias, e um espelho enganoso.

Cascatas de big band, cicatrizes e estrelas.

 

 

 

 

 

 

(imagem ©bernard cohen)

 

 

 

 

 

Francisco Véjar (Viña del Mar/Chile, 1967) é poeta, professor universitário, colaborador permanente da "Revista de Libros" (do jornal El Mercúrio – Santiago) e da revista "PROA en las Letras y en las Artes" (Buenos Aires-Santiago). Vive em Santiago do Chile. Foi bolsista da Fundação Pablo Neruda em 1990. Autor de Fluvial (1988), País Insomnio (2000), Georg Trakl. Homenaje desde Chile (em co-autoria com Armando Roa Vial e Sven Olson, 2002), El emboscado (2003) e Bitácora del emboscado (2005), entre outros. Como jornalista cultural tem divulgado a obra da poeta brasileira Hilda Hilst no Chile. Coordenou a publicação do livro El molino y la higuera e selecionou os textos dos livros póstumos Hotel Nube, En el mudo corazón del bosque e Lo soñé o fue verdad do poeta chileno Jorge Teillier (1935-1996). Em 1998 fez a seleção de textos, notas e prólogo da antologia Imágenes Quebradas do poeta Armando Uribe Arce (Prêmio Nacional de Literatura, Chile, 2004). Seus poemas têm sido traduzidos ao italiano, inglês, croata e português. Sobre a sua obra, o crítico Hugo Mujica afirma: "o vento é o fio de Ariadne desta poética, sopro e hálito, inspiração e aspiração… em todos os lados sopra, sopra ou voa o que o vento varre, folhas, vida, isto é, escritura". Francisco Véjar diz que "as referências [em sua poesia] não aparecem como simples citações livrescas; ao contrário, são parte da trama do poema. Ou melhor, se estabelece a relação entre a linguagem, a natureza e o propriamente humano". Seleção e tradução: Cristiane Grando (poeta, fotógrafa e doutora em literatura – USP). Notas bio-bibliográficas: Leo Lobos (poeta e artista plástico chileno).