..........Não
sou tão velho assim. Mas admito que na minha carreira
de jornalista já vi coisa que até Deus duvida.
Essas e outras que me fizeram acreditar no fantástico,
ao qual me mantive descrente por muito tempo em minha vida.
Na verdade, era bom não acreditar. É como
acordar do pesadelo: você vê que não
era real, pega seus óculos, as chaves da casa e vai
trabalhar. Está tudo ali. A calçada, o asfalto,
o rádio. Mas não é nada disso. Na realidade,
o pesadelo não tem fim. Você apenas acorda
para um novo pesadelo.
..........A
Mulher Pela Metade foi uma das pessoas que me conduziu nesse
mundo do fantástico. Ela me ajudou. Me ajudou a não
ter tanto medo do pesadelo. Até mesmo a gostar dele.
..........Era
uma casa elegante. Cheguei no meu carro velho e sujo, munido
de gravador e minha timidez habitual. Um jardim de belas
flores, arquitetura clássica. Toquei a campainha
e fiquei gelado quando ela abriu a porta.
..........Era
realmente, uma mulher pela metade. Como cortada, ao comprido,
por uma lâmina afiada. Andava ajudada por uma espécie
de patim, que fazia com que ela deslizasse segurando nas
paredes. Muito habilmente, ela se locomovia com graça
pela casa.
..........Ela
me ofereceu duas xícaras de chá. Para ela,
duas doses de uísque, que depois resolvi aceitar
também. — Comigo é tudo em dobro —
disse. Eu, sempre meio de lado, porque temia ver o seu "meio":
o local onde supostamente teria havido o corte. O que haveria
ali? Carnes, sangues coagulados, estômago à
mostra? Cérebro? Eu sei, eu sei. Timidez e medo são
meus piores companheiros.
..........Minha
grande surpresa foi ver esse "meio" coberto por
uma espécie de tela feita sob medida para estar ali.
..........—
Sempre gostei muito de arte — ela disse. — Aqui
tenho pequenas reproduções de meus artistas
preferidos. Reconhece aí o detalhe de Bosch?
..........—
Não conheço esse. Não gosta de Van
Gogh? Não vejo nada dele.
..........—
Não é dos melhores — disse, com um sorriso.
..........Sabia
que minha situação era crítica. Mas
respirei aliviado quando vi que não teria que ver
um corpo humano por dentro. E continuei ouvindo ela falar:
..........—
Vítima de amnésia. Acordei assim, aos dezessete
anos, sem ninguém e com uma conta de alguns milhares
de dólares. Por sinal, acordei em um hotel barato
do centro velho. Não sei de nada, juro. Tenho sim,
algumas lembranças... o néon do hotel piscava.
Sei que tinha visto filmes com alguma coisa assim, quando
eles tentam criar aquele clima. Mas é difícil.
Sei que nunca encontraram alguém como eu, mas creio
que nasci assim, ao contrário não sobreviveria.
Imagino que eu seja de uma raça desconhecida. Gosto
de inventar histórias para mim. Eu estaria no hotel,
porque era a prostituta mais cara de uma grande rede. Para
gostos pouco usuais, coisas assim. Artigo de luxo. Foi quando
tive algum tipo de delírio que me roubou a memória
e me deixou apenas com minha nécessaire.
Maquiagem alemã, documentos e cartões de bancos.
Além de lingerie adaptada, claro. Para ser sincera,
não tenho nada a reclamar. Tenho uma vida boa. My
life is good. O pior para mim é que tenho um
sonho. Queria muito cruzar as pernas. Acho isso tão
sexy. Mas se esse é meu pior problema, deve ser porque
sou feliz, não?
..........A
Mulher Pela Metade. Talvez a pessoa mais inteira que eu
já tenha conhecido.
..........E
ele saiu.
..........Saiu
pela porta igual às outras portas dos outros apartamentos
do prédio. E ele estava feliz. A porta dele brilhava.
Era o dia que ele mais esperava e o dia em que ele realmente
era feliz.
..........E
ele chegou. Subiu as escadas do prédio velho do centro
da cidade. No térreo do prédio funcionavam
um cinema pornô e uma loja de roupinhas de bebê.
..........E
ele viu a Segunda Porta. A Segunda Porta era a que brilhava
para ele. Pouca coisa brilhava para esse funcionário
da burocracia.
..........A
garota que Brilhava atendeu. A garota cega, de 15 anos,
da qual a pele branca também brilhava, esperava o
homem.
.........."Apenas
a morte pode ser melhor do que essa menininha triste"
ele pensava.
..........Ela
sabia o que fazer com a faca, a vela e os cigarros, com
a dor que purifica. Seus olhos estavam cheios de amor. Deles
também saíam facas.
..........No
quarto negro e vermelho havia uma TV ligada sem som. Havia
também um anjo que tocava violino e assistia. E o
homem tinha quase certeza de que o que faziam não
era um pecado.
..........Os
três, no quarto, sabiam, em total cumplicidade, que
a dor é a melhor sensação e a última
tentação.
..........O
gosto de seu próprio sangue em sua boca fazia o homem
se sentir um pouco puro e podre.
..........Os
olhos vazios da garota estavam cheios de entusiasmo.
..........Havia
uma estranha harmonia entre o ritmo das dores do homem,
do violino que o anjinho tocava, dos sentimentos da garota
cega, do vento que entrava pela janela e da cortina que
balançava.
..........O
prazer do homem morava também no cheiro das rosas
um pouco mortas, que a garota esqueceu de trocar.
..........Na
hora do pagamento, o homem continuava feliz e os olhos da
garota estavam cheios de piedade.
..........Ele
saiu pela porta que já não brilhava tanto
e, na rua, viu a grávida na lojinha. E voltou para
o seu apartamento. Em Paz.