soneto redundante Pediram-me
um escândalo, e é pra já. |
engaiolado Os pássaros
povoam a visão |
decadente Existe
uma nobreza no declínio |
soneto político A esquerda
quer mudança no regime: |
soneto sádico Legal
é ver político morrendo |
acareado Pior será
ser cego ou invisível? |
altissonante Barulho
é o que se faz na poesia, |
Glauco
Mattoso, nascido na capital de São Paulo, em 1951, com o
prosaico nome de Pedro Silva, cursou Biblioteconomia e Letras, tornando-se
poeta ao adotar o heterônimo Glauco Mattoso, trocadilho com "glaucomatoso",
por ser portador de glaucoma congênito, que o levaria progressivamente
à cegueira no início da década de 90. Nos anos
70 integrou a chamada "Geração Mimeógrafo"
e participou da "Poesia Marginal", um dos baluartes da "resistência
cultural" contra a ditadura então vigente. Criou um fanzine
poético-satírico chamado Jornal Dobrabil (trocadilho com
o Jornal do Brasil e o formato dobrável do panfleto, publicado
em folhas avulsas) e colaborou em diversos órgãos da imprensa
alternativa, como Lampião (tablóide gay), Pasquim (tablóide
humorístico), Escrita (revista literária), Chiclete com
Banana (revista de HQ), Top Rock (revista musical), etc. Chegou a fazer
crítica literária e ensaio (em livros e no Caderno de
Sábado do Jornal da Tarde), mas sempre esteve voltado à
cultura underground e aos temas transgressivos, como o sexo bizarro,
o sadomasoquismo, a tortura, a violência no rock tribal e, sobretudo,
o lado "maldito" da poesia, em seus momentos mais escatológicos
e fesceninos. Com a perda da visão, foi abandonando a criação
de cunho visual (concretismo, quadrinhos) para dedicar-se às
letras de música e à produção de discos,
como sócio duma gravadora independente. Em colaboração
com o professor Jorge Schwartz, da USP, traduziu a poesia de estréia
de Borges, o maior autor cego do século. A obra poética
de Glauco está quase toda inédita ou esparsamente publicada
em livretos esgotados e suplementos ou fanzines e no seu site: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br Bibliografia: Jornal Dobrabil, 1977/1981 (coleção completa em um volume); Revista Dedo Mingo (dois fascículos suplementando o JD); Memórias de Um Pueteiro (poesia, 1982); Línguas na Papa (poesia, 1982); Rockabillyrics (poesia, 1988); Limeiriques (poesia, 1989); Centopéia: Sonetos Nojentos & Quejandos (poesia, 1999); Paulicéia Ilhada (poesia, 1999); Geléia de Rococó: Sonetos Barrocos (poesia, 1999); Panacéia: Sonetos Colaterais (poesia, 2000); O que é Poesia Marginal (ensaio, Ed. Brasiliense, 1981); O que é Tortura (ensaio, Ed. Brasiliense, 1984); O Calvário dos Carecas: História do Trote Estudantil (ensaio, EMW Editores, 1985);A Estrada do Rockeiro: Raízes, Ramos e Rumos do Rock (ensaio, encarte da revista SomTrês, 1988); Dicionarinho do Palavrão Inglês/Português (Ed. Record, 1990); Espírito de 69: A Bíblia do Skinhead (tradução da obra de George Marshall, Trama Editorial, 1993); Manual do Pedólatra Amador: Aventuras & Leituras de Um Tarado por Pés (autobiografia sexual ficcional, 1986); As Aventuras de Glaucomix, o Pedólatra (HQ baseada no Manual do Pedólatra Amador, desenho de Marcatti, 1990). |
soneto cacoépico
É má
cacofonia "heróico brado",
que faz o nosso hino ser por cada
macaco no seu galho de piada
motivo, mito presto profanado.
Galhofo quando grafo "deputado",
um réu por cuja mãe a pátria brada
e cuja nota tem que amar melada
a puta que a recebe de ordenado.
Por ti gela meu pinto, e por ti são
meus bagos esmagados qual sardinha,
ó língua de tão baixo palavrão!
Dos cacos que cuspi, calou Caminha.
A mim toca, contudo, uma questão:
Se já Camões fez caca em "Alma minha"...
kármico
Quinhentas e
cinqüenta e cinco peças
perfazem as sonatas de Scarlatti.
Nivelam-se, em altíssimo quilate,
à Nona, à Mona Lisa, qualquer dessas.
Farei tantos sonetos? Não mo peças!
É meta muito hercúlea para um vate!
Recorde desse porte não se bate:
no máximo se iguala, e nunca às pressas.
Já fiz mais que Camões, mais que Petrarca:
dois, dois, dois; três, três, três; de pouco em pouco,
que a lira também broxa... É porca. É parca.
Poeta que for cego, mudo ou mouco
compensa a privação com a fuzarca:
diverte-se sofrendo. É glauco. É louco.