VOCÊ:          Ha. Então eu sou um calhorda, então é isso que eu mereço...

        

EU:              Claro. Você é folgado, do contrário se acomodaria, esqueceria

                  do meu choro como quem esquece o bolo no forno

 

VOCÊ:          Não joga isso na minha cara. Sempre fiz bolo sovado

 

EU:              Verdade. Nunca fez algo que preste

 

VOCÊ:          Vc é perversa

 

EU:              Só medrosa, na verdade. Não haveria outra forma de te convencer

disso senão sendo perversa. Vc sabe, homens... Só aprendem na chibata

 

VOCÊ:          Ui. Cadê o espartilho que te dei?

 

EU:              Dei

 

VOCÊ:          Pra quem?

 

EU:              Dei pra outro, usando ele

 

VOCÊ:          Perversa L

 

EU:              Foi você quem foi embora

 

VOCÊ:          Calhorda. Mereço

 

EU:              Pára. Não combina contigo

 

VOCÊ:          ...

 

EU:              ...

 

VOCÊ:          Amor?

 

EU:              Não me chama assim

 

VOCÊ:          Tá sozinha?

 

 

Sim, você é um calhorda. Mas e daí? Penso no tamanho do desperdício disso, desperdício continuar, no fim sou eu quem me sinto a idiota diante de todo mundo.

 

Mas preciso disso. Absolutamente.                 

Desesperadamente, preciso ser a vítima.

           

...preciso mais que do próprio medo, o único capaz de impedir-me de ceder, de responder a maldita mensagem no computador.

 

 

EU:              Desde que vc se foi, sim

 

 

E então me pego pensando nas coisas absurdas de um passado para o qual desejaria voltar só para vivê-lo melhor. Só que não há tal coisa, voltar, e isso me tira a calma, isso e as muitas crianças que hoje dependem de mim.

           

— MÃÃÃÃÃE! — gritos irados ecoam pelo corredor, não quero saber. Só hoje, eu mereço! Eu me dou o direito! As crianças, coitadas, não tem culpa de nada. São só bichos sedentos, elas só querem, sempre querem mais e não se importam em exigir. Nem são tantas crianças assim, meu deus... Mas às vezes — só às vezes, quando o frio chega e a chuva não, sinto que são infinitas.

 

— Só um segundo filha.

 

E chega o marido.

 

— Oi meu bem.

— Oi.

— Tá no computador?

Tô traindo você...

— Oi?

— Já já vou pra cama.

— Tá bom. Não demora benzinho...

 

Beijo estalado na testa. Que tipo de macho corteja sua fêmea com a porra dum beijinho na testa? Me pega joga na parede e me enraba logo seu frouxo, seu viado...

 

— MÃÃÃÃÃE!

— Já vou, filha.

 

 

VOCÊ:          Eu jamais saí daí. Não de verdade

 

EU:              Vc não tá aqui agora, é só o que eu sei

 

VOCÊ:          Não estou? Dentro de você, não estou?

 

 

...e é sob a agonia de um chorinho longe que decido largar do passado. Tudo bem, deveria tê-lo aproveitado mais, mas e daí? O amanhã de ontem é o hoje, o passado não existe e o futuro é uma ilusão, só vivemos o agora. Meu deus... O cursor piscando, ninguém me come como esse homem, é só responder a maldita mensagem no computador.

 

— Mãe...

 

É só responder e começar tudo de novo, vida nova... Não! A vida é a mesma, só outra rodada. Mmm... Bem que uma rodada de bom vinho viria a calhar hein...

 

 

EU:              ...

 

 

Droga! Respondo? Não respondo? O cursor ainda está piscando, logo minha filha estará dormindo. O frouxo também.

 

 

VOCÊ:          Desculpa

 

EU:              Não posso. Você não quis casar comigo, outro quis

 

 

Não sei se devo, campo minado. Mas como preciso...

 

 

VOCÊ:          Se você quiser eu quero

 

 

Sei que devo, mas já não quero saber. Pouco importam as crianças, no fundo não passam de meros vestígios de outro passado. Pouco importam os gritos de "Mãe!" no corredor, eles uma hora param, desistem. Sempre há amanhã, isso não é ilusão. Cansei desse jogo de idas e vindas, não quero mais, não posso mais!

 

E a rodada de vinho ficará para depois, para nunca mais.

 

 

EU:              Por favor, não

 

 

Quando não tiver mais gritos, quando não precisar esconder meus passos nas pontas dos pés, quando não houver mais encontros e desencontros — aí sim rodadas e mais rodadas de vinho e outras rodadas e mais rodadas de tequila porque então eu vou querer dar, dar como uma vadia, égua barranqueira, cadelinha no cio. E o momento será completo, nenhum vestígio de sobriedade. Apenas a mais pura e absoluta entrega. Quando não existirem mais sombras...

 

 

VOCÊ:          Tô passando aí

 

 

A campainha toca, tremo —

Será ele?!

 

O tempo pára e o segundo contém minha angústia e minha vida:

 

só minha pizza, só isso.

Chegou fria, estou irritada, pago só metade. Ao menos as crianças pararam de chorar. Desistiram, como disse que desistiriam... E eis um pensamento cruel: são fracas de vontade, desistem fácil, assim como o calhorda do pai.

 

 

EU:              Já to indo pra cama

 

 

Ufa. Que maldade. Não sou uma mãe que mata. São só crianças... Mas o pai não. Ele sabia exatamente o que estava fazendo, ele presenciou cada soluço de sofrimento, cada pedido de clemência para que parasse, não mais fizesse jogos comigo, se abrisse para mim, demonstrasse o amor que sabia que tinha por mim, e por fim não me abandonasse — mas tudo nada significou e meu homem se foi. Eu não o conhecia e ele se foi, ele achava melhor guardar-se só para si. Talvez por prezar-se demais. Provavelmente, por ser um completo idiota.

 

 

VOCÊ:          Amo vc

 

EU:              calhorda

 

VOCÊ:          perversa

 

EU:              Ama de verdade?

 

 

E aqui está ele, de volta do mundo dos mortos. Ele. Ele e seu impertinente fálico cursor piscando... Não diz coisas como Oi! Taí? ou Olha, tô com saudade... ou Me dá atenção!... Nada. Web-silêncio, jogou a isca e só me espera. Se fosse um telefonema, seria um daqueles momentos onde a pessoa fica muda do outro lado, só ouvindo a respiração. Como é no computador, é só um cursor piscando. Coisas do mundo moderno. Medo virtual.

 

 

EU:              Boa noite

 

 

Decido.

Sem resposta, segundos depois ele está offline.

 

 

Como a pizza, camisetão e pés na escrivaninha, meu cetim iluminado pelo cálido da tela. Bebo coca, desejo a presença dele que adora pizza gelada, ele meu macho, logo ali do lado, longe um click — só pra confirmar que ainda sou dele — saiu do mundo dos mortos. Mundo que o faz chafurdar em atitudes nunca tomadas, que o faz escutar cada grito, cada protesto, cada voto contra, pois já não é mais acreditado por ninguém. Todos já desistiram dele, todos eu e as crianças. Porque não há um só que lute por ele, não mais, aquele cachorro! Não há qualquer um no mundo todo que esteja sempre ali do lado dele. E um dia virá à tona toda sua angústia, e neste momento ele se verá no espelho e chorará a verdade, e então ele pensará em mim. 

 

Os gritos não param, amores perdidos corações partidos e minhas crianças se fazendo presentes, melhor interromper a brincadeira antes que o castelo desabe. Eu, viciada em desabamentos, é importante saber a hora certa de parar.

 

E para não mais sofrer em nome do virtualmente impossível, me deixa sem resposta, sozinha comigo mesma no mundo real.

 

E para não chorar, desligo o computador.

 

 

(imagem ©taxky)

 

 

 

  

 

Guilherme Tensol tem 25, 12 e meio ou 50 anos, dependendo do clima lá fora. Vive com ambos os pés em dois mundos: num é bacharel em Direito e perito criminal frustrado, noutro um bardo-bufão louco que vive para contar estórias. Atualmente, escreve roteiros para Fátima Toledo, termina seu romance Buraco negro e dirige cinema independente, sempre em busca da receita da caipirinha perfeita. Mantém o site Máfia do Pão de Queijo.