©effi fotaki

 
 
 
 
 
 
 
 


Dia
O sol do sertão eu apenas enfrentava. Estendia-lhe meu rosto, para que o queimasse sem dó. Havia, certamente, nesta tendência a sentir prazer com o próprio sofrimento, algo de rústico, de agreste, como a natureza que me rodeava. Estendia-lhe também os braços, o peito, nas beiradas de rio, nas caçadas, nas caminhadas a esmo mata adentro. Havia alguma delícia em lamber os lábios ressequidos, quebrados, feridos até o sangue. A propensão ao martírio, que eu mesmo me punha a experimentar, servia-me como entendimento da fé desatada dos romeiros. Sentiam-se o próprio Cristo, ao desabar extenuados depois de dias de cruel jornada pelas caatingas espinhentas. Pagavam a promessa comprometida por ver alcançada uma graça, assim como Jesus pagara pela salvação alheia. O sertanejo é o mártir que o sol constrói dia a dia nas profundezas da alma, no calor da pele, na chaga da paixão, no padecimento. Embora seja sagrada, não lhes combina a chuva da Providência. O céu, paradoxal, está naquilo que mais lembra o inferno, o fogo, a ponta do espinho e o ferimento. Irmanam-lhe as cascavéis, a peçonha, o canto vaticinador das aves agourentas que percorrem a rapina à procura de vítimas. E que também sobrevoam a noite, assombrando-a com seus gritos densos.

 

 

Noite
O sol eu enfrentava. A noite do sertão eu amava. Em que lugar haveria mais sombras? Onde a alma poderia vagar mais íntima de mim mesmo? Bêbado desde novinho, não concordava em dormir com as crianças. Queria a lua, a companhia noturna, o ébrio falante, a música, a noite a noite. O vento notívago trazia-me de longe os batuques das festas caboclas. Perseguia o som dos tambores, mesmo sem lua, por estradas solitárias, quilômetros, léguas. Não descansava enquanto não visse ao longe a luz das lamparinas e não colasse meus ouvidos ao som alto dos instrumentos e não lhes ouvisse os cânticos imprevisíveis. Contracantos que jamais poderiam ser compostos pela educação formal. Poemas que nunca seriam escritos em razão do estudo mais profundo da literatura. No entanto, estavam lá, ecoando, equivalendo-se em sentimento e poder à cultura mais refinada. Cânticos noturnos, feitos para clarear os escuros mais remotos. Raios de som carreados às escuras pelos ventos.

 


Tempo
Só saudade.

 


Trilho
Mesmo já tendo uma clara descrição de como seria um túnel, quando o trem iniciou a travessia de meu primeiro túnel, quando se fez a noite em pleno dia, noite balançante, gritadeira, quase morro de susto. Senti imensamente pelo fato de, justo naquele instante, ter saído da janela de onde praticamente não havia me desgrudado desde o início do percurso. Hoje penso que talvez tenha sido melhor mesmo que meu primeiro túnel tenha chegado de surpresa. E ainda melhor por ter sido aquele o primeiro. Não tinha sido um qualquer, ligando apenas duas ruas ou passagem subterrânea sem valor nem poesia. Foi um túnel dos grandes, um furo e tanto nas entranhas de um mundo totalmente novo. Pude ver depois como era enorme a montanha do meu primeiro túnel. Da janela, para onde imediatamente fui me grudar novamente, logo veria outro mais se aproximando. Noite. Noite de novo. Não sabia que um túnel de trem podia ser tão escuro.

 


Rastro
Minha mãe deixou que eu visse o menino morto. Aproximei-me da mesa onde ele jazia vestido de azul-claro. Era um neném ainda. Alguém havia falado que era um anjo. Meu pai, do púlpito, em tantos sermões já havia dito aquilo: — anjo. Ora desciam dos céus, ora subiam, ora falavam, ora cantavam, tocavam, abençoavam, puniam. Aquele estava imóvel. Aos quatro anos, eu certamente não conhecia sequer uma dezena dos odores sem conta que memorizo hoje. Aquele, porém, foi o primeiro inesquecível. E o que primeiro me assombrou. No salão, em qualquer lugar, no centro, perto da janela, como um fantasma o odor flutuava acima de tudo e de todos. Mesmo antes de me aproximar, já lhe sabia a fonte. Ao ver o pequeno de olhos abertos, não compreendi a morte e talvez por isso jamais a tenha compreendido. O menino vestia azul-claro, olhava não sei pra onde e difundia o cheiro presente em toda parte. Quando o sinto de novo, volta-me a mesma impressão que tive naquele instante. O cheiro da morte, que experimentava pela primeira vez na presença do pequeno morto, subsiste como o rastro impalpável de um anjo que voou pra longe.

 


Pensamento expresso
Se viajar é fugir, devo ter complexo de culpa.

 


Do mar
Escrevo do Rio, de frente pro mar desde um décimo-quinto andar. O Atlântico, imenso, visto daqui, parece ainda mais majestoso. A cada navio que passa ao largo, tento colocar-me do ponto de vista do passageiro. Olha as praias distantes da cidade maravilhosa em que passou bons momentos, angustiado por estar partindo. Porém, carrega consigo a perspectiva de um novo porto. Logo que as praias desaparecerem na distância, logo que o oceano transformar passageiro e embarcação em ilha, a expectativa do próximo porto vai dominar os pensamentos. Penso às vezes que viajar é buscar e chegar é perder. Não deve ser à toa que o verbo inglês to miss, que significa perder algo, ao mesmo tempo quer dizer sentir falta ou ter saudade.  A gente desembarca e a saudade de pronto se põe em terra, apta a começar a tortura.

 

 

Do rio
Quando viajava pelos vapores do rio São Francisco, embora as dimensões do cenário fossem mais do que reduzidas, se comparadas ao marzão retratado aqui em frente, na alma o drama continha a mesma amplidão. Ó Januária das ruas de pedra, por que a deixo? Por que não me demoro mais? Por que não fico pra sempre sentindo a brisa fresca do cais, sonhando com a morena da cor-do-cinamomo que me encantou ao primeiro sorriso? Carinhanha dos são-gonçalos, Lapa do morro cinzento e cru, Xique-Xique do espinho, Barra da balaustrada enorme, serpenteando o rio, varanda-geral do meu coração. Por que vim aqui se tenho que partir tão angustiado e cheio de infelicidade? Pra sentir saudade, responde meu coração viajante. Pra amá-las ainda mais.

 


Do barco
O navio já sumiu de vista. Lá dentro o passageiro desgrudou-se do parapeito e cruza o olhar solidário com a profusão de olhares que refletem o mesmo drama interior. É tardezinha. Um silêncio estranho interliga todos os silêncios e estabelece, do tombadilho à ponte de comando, uma calada única e intensa, pesada. Mas logo o espírito será outro. Banhos tomados, a cidade flutuante se desfaz do choque da despedida. Uma cerveja no bar reúne uma moçada bonita, um papo animado entre duas senhoras, que se conheceram durante os passeios em terra, discorre sobre a alegria pintada de dor das favelas cariocas. Tocar para a frente. Voilà! Que despontem Floripa, Málaga e onde mais se possa deitar âncora, vadiar. E que os corações se preparem para quando surgir novamente aquela sensação nostálgica de desalento, que sempre embarca alma adentro toda vez que a última amarra se desgarra de um cais.

 

 

Visita fugidia
Jurei que tinha visto Papai Noel. Abriu a porta com muitíssimo cuidado. Mas eu estava acordado, olhar perdido nas sombras do quarto escuro, quando aquela sombra adicional abriu a porta, entrou e imediatamente recostou-a, permitindo apenas que uma nesga de luz penetrasse na penumbra. O vulto estranho agachou-se e veio até a rede onde eu estava deitado. Não deu pra ver se tirou ou pôs alguma coisa ali embaixo. Depois, fechou a porta com o mesmo cuidado com que a abrira e desapareceu.

 

 

História tola
Na manhã seguinte, saltei da rede sem me dar conta de que ali estava um presentinho. Quando surgi na sala de mãos vazias, minha mãe abandonou a xícara de café, esboçou um sorriso, mas logo o paralisou na face, dando lugar a um rosto preocupado. Imediatamente, levou-me pela mão de volta ao quarto. Só então vi o presente. Não lembro mais o que estava no embrulho vermelho. Mesmo assim, este Natal se tornou inesquecível por três motivos. Primeiro, porque os adultos me levaram a concluir, que tinha visto Papai Noel. Segundo, porque ao comentar em público que havia flagrado o entregador de presentes, minha mente aprendiz notou que, por trás da maneira zombeteira com que riam de minha história, julgavam-me um mentiroso. Arrependia-me pela primeira vez de ser levado na conversa.

 

 

Rede de nostalgia
Terceiro, porque só por esta lembrança recordo que, em minha infância, dormia em redes como os meninos sertanejos das casas que visito hoje, quando retorno ao sertão. Infelizmente, minhas desacostumadas costas não conseguiriam mais sobreviver a uma noite numa delas. No entanto, sempre que presencio uma família despertando num lar de camas oscilantes e aéreas — todos caminhando alegres e descansados depois de muitas horas entregues ao sono — ataca-me uma saudade digna de noite de Natal. E alguma nostalgia dos tempos em que iniciava a tirar o véu que encobria o mundo chamado maduro, crescido. Mas eu o apreciava melhor quando coexistia com ele nas sombras do que quando o enxergava às claras.

 

 

 

 

novembro / dezembro, 2005