©ryan mc vay
 
 
 
 


 

Revelação
Milton, meu mestre-fotógrafo aconselhava: "Esse negócio de pensar que a luz vermelha não é capaz de estragar um papel sensível, é um pensamento meio perigoso...". Daí, sempre que tirava uma folha de papel-kodak da caixa, recordava a advertência. Desse modo, expunha-o o menos possível à luz filtrada pelo vidro vermelho colocado no teto do caixote de fotografar. Tratava logo de imprensá-lo na prancheta, junto com o negativo, e reservá-lo de face para baixo. Depois puxava a portinhola do teto, deixando tudo às escuras. Era um momento de paz e reflexão antes de abrir novamente a portinhola num repente, desta feita empurrando também o vidro vermelho, para expor a prancheta com a face transparente para cima e deixar que a luz forte e natural do dia atravessasse o negativo e imprimisse a foto. Eu tinha 12 anos de idade.

 


Goiabada com revelador
Quem nunca fotografou nas antigas máquinas de caixote, não pode imaginar o que é calçar os braços nas mangas de pano preto que saem da caixa de madeira, vestir igualmente a cabeça, sem esquecer de ajustar bem o elástico em volta do pescoço para que não passe luz, e em seguida enfiar-se dentro do caixote com as mãos bem unidas, para que possam caber no espaço estreito. Lá dentro, um mundo. À direita, uma lata de goiabada com o líquido revelador. À esquerda, outra lata, com o fixador. No teto, a portinhola corrediça que tanto podia ser fechada com a tampa de madeira, para esconder a luz, quanto ser acionada apenas com o filtro do vidro vermelho — única cor que não corrompe os papéis sensíveis à luz. Puxada totalmente, empurrando-se de uma só vez a tampa de madeira e a de vidro, fazia passar a luz natural.

 


Santo de caverna
A parte do trabalho, porém, que eu mais gostava era a de tirar a fotografia. Na banca em que trabalhava, juntamente com Milton e Dudu — cunhado que, ao descobrir meu namoro com a irmã, findou a sociedade — havia um enorme cenário pintado com a figura do Cristo crucificado. Figurava ainda a imagem do morro calcário que, em uma de suas cavernas, abrigava a igreja em cujo altar reina o santo milagroso do sertão, São Bom Jesus da Lapa.

 


Coleção de figuras
Os romeiros chegavam e observavam as dezenas de fotos (as melhores de nossa coleção) tiradas de outros grupos, que exibíamos como propaganda de nosso trabalho. Perguntavam o preço. Acertavam-se numa vaquinha e, quase sempre, se dispunham a ser fotografados. Cabia a nós compor o grupo, ajeitar a pose. Chapéus em ordem, todos bem juntinhos, clique!

 


Fé parida
Guardava-lhes os olhos. Desde a hora do clique até a revelação, no espaço apertado, sempre fixava meu olhar no olhar dos romeiros. Uma estranha fé era parida por aquela luz. Velhos, mulheres, camponeses vindos de muito longe, de mundos solitários, pés das serras, veredas, traziam nos olhos a contemplação daquela fé ingênua, inexplicável. Por si só, um milagre.

 


Auto-retrato
Às vezes, quando vejo um avião riscando o céu, milhares de metros de alto, perco-me por tempos admirando os rastros compridos de fumaça. Flagro-me ali com os mesmos olhares que retenho na memória. Talvez pelo céu azul sem fronteira ou quem sabe pela fumaça significando o destino disperso. Não sei. É como se recebesse um sinal misterioso daquela fé ingênua, capaz de gerar milagres e esperanças, enquanto meus olhos viajam por mil retratos antigos. Se alguém me apontasse a lente de um caixote nessa hora, nem precisaria do cristo pintado. Eu já seria o próprio romeiro.

 


Amar e desamar
Amar é surgir, nascer — e até renascer. É ver, enxergar, descobrir — e até descobrir-se. É provar, sentir, tocar, falar, iluminar, sair, sonhar. Desamar é obscurecer, calar, afastar, esconder. A vantagem é que dá vontade de sumir. Acho que vou viajar.

 


Rumar e desrumar
Não sabia se dobrava à direita, se seguia em frente ou se dobrava à esquerda. Ou se voltava pra trás. Passou aquele casal que logo reconheceu por ter cruzado algumas esquinas antes. Resolveu segui-los. Iam pra esquerda. Logo os ultrapassou e tornou a ficar sem rumo. Tem gente que, se não seguir alguém ou alguma coisa, não chega a lugar nenhum.

 


Usar e desusar
Vieram seis garrafas de vinho. A caixa de madeira, muito bonita, fora aberta com expectativa e cerimônia. Três meses depois, quedava-se abandonada debaixo da pia do quintal. Começou a perder a graça, a atrapalhar. Ou apenas o vinho interessava, ou quem o tomou, não gostou do que provou, ou só queria mesmo ficar bêbado. A caixa foi se estragando aos poucos. Como um vestido de noiva de casamento que não deu certo, foi sendo esquecido. Enfim, a caixa que vestiu o vinho foi se despregando, virando mais esquecimento do que lembrança. Às vezes é melhor jogar fora o que a gente não quer guardar, logo no primeiro instante. É mais justo com o objeto. E, não raro, com nós mesmos.

 


Lembrar e esquecer
No dia 20 de janeiro o irmão aniversariou. Não se viam há muitos anos. Aliás, o mano jamais lhe respondera as cartas, e-mails, recados. Mas pensou nele com saudade. Jamais havia conseguido atinar por que, mesmo nascendo no dia do santo, não lhe haviam posto o nome de Sebastião. Ia ser legal ter um mano a quem pudesse chamar de Tião. Talvez o apelido engraçado lhe emprestasse algum humor, se tornasse um adulto menos introspectivo e lhe desse mais atenção. De toda forma, mandou mais uma carta. "Parabéns", etc. Novamente em vão.

 


A missão
"Mundo, mundo, vasto mundo". Não sei se meu pai inspirou-se neste poema de Drummond para definir seu destino. Mas, na década de 40, ainda rapazola, partir como missionário para fundar uma religião no interior do Brasil, foi uma amostra de que nem todo carioca é bunda-mole. A primeira parada foi em Pirapora, primeiro porto do Rio São Francisco, ainda em Minas Gerais. Lá fundou sua primeira igreja batista. O próximo destino, Barra, em pleno sertão da Bahia, onde nasci, já era um bispado católico. Acho que em virtude disto, foi onde o velho cortou o maior dobrado.

 


Pedras no caminho
Dobrado, quer dizer terreno muito irregular, difícil de transpor. E a missão do velho era cortá-lo ao meio. Ou, pelo menos, reservar uma fatia da terra para os batistas. Hoje, o bispado de lá é bem diferente. Quem o comanda é Dom Frei Luiz Flávio Cappio, que peitou o projeto de transposição das águas do rio São Francisco com uma greve de fome. Sendo o atual bispo este democrata inteligente, certamente não faria como seu colega, na época da missão do pastor Guarabyra, que mandou que apedrejassem a igreja batista, enquanto seus fiéis, comandados pelo rapazola determinado, cantava em louvor a Deus.

 


De paródia em paródia
Mas estou falando do velho quando quero mesmo é falar de mim. Desculpe o leitor a pretensão, mas é que, ás vezes, não sobra melhor assunto para um escritor do que falar de si próprio. Claro que não tenho nenhum episódio mais interessante para descrever do que sequer uma página de Nelson Rodrigues, quando relata sua própria história. Porém, naquelas coisas que todo ser humano pode sentir, mesmo sem ter por elas passado e que podem representar alguma informação ou um sentimento interessante, acho que vale a pena investir.

 


De paróquia em paróquia
E minha missão hoje é falar àqueles que nunca tiveram a ventura de ser criado pulando de paróquia em paróquia, para tentar provar que a experiência, apesar de maluca, é interessante porque você se aprofunda na arte da avaliação dos outros (trocar todo o rol de amigos aos cinco anos, aos sete e aos doze, exige isto). Mas você corre o perigo de acabar sendo um adulto incompleto.

 


Sentimentos cruzados
Talvez por isso tenho inveja da Mooca, da Penha e do Brás. Quando cruzo as ruas destes bairros onde velhos companheiros conversam animadamente, não mais distante do que um quilômetro de onde nasceram, numa solidariedade de grandes e pequenas harmonias, médias e altas incompatibilidades, todas diárias e contumazes, o sentimento é de inveja e de mais alguma coisa que jamais defini. Deveria ser uma vantagem inegável o fato de ter conhecido tantas situações desafiadoras e de ter aprendido a me virar na vida. Mas, e daí? E o que perdi sem ter como observar meus amigos crescendo, as árvores de minha rua dando frutos anos depois de vê-las sendo plantadas? Sem falar na intimidade que poderia ter criado com aquela pedra do calçamento (gosto de andar de olho no chão), com aqueles olhos...

 


Fim de missão
Não consigo livrar-me deste sentimento que não explico. Sendo assim, frustra-se minha missão. Lamento ter-lhes causado tanta perda de tempo sem que haja conseguido traduzir o que sinto — e que, eventualmente, poderia ser-lhes útil. Lamento mais ainda, porém, isso que trago comigo, que perdi dentro de mim e que não consigo reencontrar.

 


Tempo de recordações
Todo santo dia, quando a menina do tempo, na televisão, convida para olhar o clima no mapa, olho ansioso para o meio do Estado da Bahia, um pouco pro canto esquerdo, e adivinho Bom Jesus da Lapa. Está sempre ensolarado, dentro da mancha amarela. Quando o mapa muda, para informar sobre a temperatura, a cidade, sempre quente, é incluída dentro da mancha vermelha. Enquanto a menina continua falando, minha mente vai sendo bombardeada por uma espécie de soma de recordações, que formam um mosaico de minhas horas vividas ali, e tenta recriar, com as referências apontadas na tela, as condições vigentes na cidade naquele exato momento.


 

Interferência climática
Porém, por mais que me esforce em perceber uma mínima e abençoada brisa no meio de uma noite abafada, na praça em frente à igreja, surge sempre algum rosto interferindo na imagem, que me tira a concentração. Dessa forma, não consigo vestir apenas as impressões climáticas, acabo andando também com as pessoas, e fico imaginando o que podem estar pensando.

 

 

Clima exclusivo
O rosto que mais me aparece nessas horas é o de um senhor elegante, de chapéu e camisa social de mangas compridas. Coisa de quem, mesmo naquele inferno, faz questão de andar sempre impecável. Se deslizar os olhos para o chão, na direção dos sapatos, eles os encontrarão perfeitos e lustrosos. Trata-se de um personagem que minha mente criou somando dois sujeitos elegantes da sociedade. Apesar de ser do idêntico tipo capaz de fazer qualquer sacrifício para se manter chiques, são ao mesmo tempo muito diferentes.

 


Chapéu francês
Um é o 'seu' Kalil, que o povo pronunciava "Kalile". "Seu Kalile tá vindo aí na calçada", dizia uma de minhas irmãs. O velho olhava pro relógio e conferia, o convidado chegava novamente na hora aprazada. Abria-se a porta e logo ele se apresentava, de terno, gravata, chapéu Santos Dumont, sapatos cujo couro, mesmo debaixo do pozinho fininho das ruas, reluzia como novinho em folha. O comerciante de tecidos era um dos mais bem sucedidos. Trazia contratos, o velho dava assessoria, trabalhavam, depois Kalil fechava uma impecável pasta de couro, onde trazia os papéis, e o velho pedia o cafezinho. Daí em frente o papo era a política, a seca, pausa para um gole e pra Kalil efetuar a cruzada de pernas, com leveza extrema, e continuar o discurso que jamais era violento. A voz do libanês e seu sotaque engraçado invadia a sala, sublinhava a conversa das meninas na cozinha, misturava-se com o silêncio natural do sertão e virava uma nuvem, um acalanto, um fundo musical, a que o velho acompanhava quase aplaudindo de vez em quando.

 


Chapéu baiano
O outro elegante de Bom Jesus da Lapa, sempre em minhas recordações e que, somado a Kalil, constitui-se no terceiro personagem, usa igualmente um chapéu pra lá de elegante, confeccionado, porém, com palha sertaneja. Esqueci-lhe o nome, mas às vezes penso que é Luís. Se não fosse pai de Wilson Cai-cai, o melhor atacante que o sertão daquela época jamais tinha visto, talvez fosse nome fácil de lembrar. No entanto, diante da fama do filho, ficou conhecido apenas como o pai do jogador. Não tinha a riqueza material de Kalil, mas rivalizava nos modos, no trato, no jeito bom de ser, de falar, de ouvir, e tocava um excelente violão.

 


Sinal de trovas
Não fosse o dedilhar perfeito do violão, talvez Wilson Cai-cai não o tivesse puxado, não virasse também excelente tocador e, em conseqüência, minha carreira não me tivesse trazido até aqui, onde fico admirando o calor de Bom Jesus da Lapa queimando o mapa na televisão. Não foi ele quem me ensinou os primeiros acordes, pois estes eu aprendi sozinho, explorando o violão dos irmãos mais velhos, em cujas cordas, inclusive, havia sido proibido de mexer. Mas que, assim que os manos saíam pra trabalhar, eu tirava de cima do armário, com anuência de Cecy, minha mãe, que me era cúmplice na travessura. Mas foi Cai-cai quem me ensinou as manhas do instrumento. Se a gente estivesse hoje por lá, acho que a noite, pelo que informa a menina do tempo, se apresentaria ideal para uma serenata. De chuva, pelo menos, não há (novamente) o mínimo sinal.

 


Até Aline perdoa
— Alô! Olha, faz quatro anos que a gente se viu pela última vez. Esse tempo todo fiquei pensando em como tudo ficou. Meu amor ainda está aqui, e o seu? Você pensa que é fácil isso? Amar alguém que a gente sabe que talvez jamais vá encontrar de novo? É tão fácil amar. Difícil é deixar de amar sem que o amor tenha se ido embora naturalmente. Um dia, você acorda e pensa: puxa como está chato! E vai desamando. Agora, ser mandado embora, é ficar amando sem ter o quê. Estava chovendo, o que piorou muito. O tempo, debaixo da chuva, corre o tempo todo mais devagar. As luzes dos carros... Ah, e aconteceu à noite. Quanta sombra de uma vez só! Lembro que peguei o caminho de volta, fiz tudo pra não chorar. Mas as lágrimas foram caindo e se misturando com a chuva em meu rosto, feito filme romântico, letra de música popular. Tinha aquela casa na esquina, onde a gente sempre ficava apreciando o jardim. "Como é bem cuidado!". Lembra que você dizia isso? Passei em frente à casa e lembrei de ver se no jardim ainda estava aquela flor azul. Estava. No escuro, não se via a cor. Mas continuava bonita, tomando uma chuvinha, alegre como quê. E eu passando cabisbaixo, chorando. Fiquei com raiva da flor. Achei que era você zombando de mim. Mas não fiz nada. Estava bem à mão, estava escuro, eu pensei em arrancá-la, mas não o pude fazer. É impossível viver sem você. Daí, fingi por uns tempos que você estava ali na esquina, e que, por isso, eu não tinha perdido você. Até que viajei e, dias depois, quando voltei, ela não estava mais lá. Fui direto naquele retrato que a gente tirou dela com o celular. Sorte que não tinha precisado apagar. Aquele celular tem uma memória incrível. Levei ele na florista. Ela viu a foto e me disse que flor era. Mas não tinha naquele momento. Dias depois, telefonou, pro mesmo celular do retrato, pra dizer que havia chegado. Tenho comprado sempre e dado pra Aline colocar num vaso. Ah, Aline continua trabalhando em casa. Está cada vez mais estúpida, mas continua com aquela simpatia de sempre. A gente vai se perdoando. Eu perdôo as erradas dela, e ela perdoa minhas broncas. Sempre que a gente toma um cafezinho, acaba batendo um papinho e esquecendo. Mas, como eu ia dizendo, a cada dia que vivo, você está lá em casa. Em forma de flor. Me diz uma coisa: sua secretária eletrônica nunca acaba a fita, ou você está me ouvindo aí, parada ao lado do telefone? Se estiver aí fala comigo, vai... Me chama pra um café. Melhor ainda pra um vinho. Puxa, até Aline perdoa!

 


Juro que a flor tem seu cheiro
—  Olá! Ouvi você na minha secretária eletrônica ontem. Pena que era um recado que ficou lá, esquecido, e que eu jamais quis esquecer, e não de ontem, de hoje, que eu espero o tempo inteiro. Se continuar assim, vai ser fácil adivinhar nosso futuro. Seremos o único casal a se comunicar apenas através de uma secretária eletrônica. Não faz mal. Resolvi escutar todos os dias um recado seu, do tempo em que a gente vivia feliz. Nele, estamos juntos. Ao se despedir, você diz que me ama. É tudo o que basta pra mim. Fora aquela flor azul que eu disse que lembra você. Coloquei num jarrinho de cristal. Quem vai lá em casa, diz que ficou bonito e pergunta quem teve a idéia. Ficou tão feminino, tão com a tua cara, que digo que foi Aline quem escolheu o jarrinho. Que eu apenas achei a idéia da empregada tão boa que levei pro meu quarto. Você sabe que, pro pessoal hoje pensar que a gente é gay, é um pulo. Por isso, se é feminino, não fui eu quem fez. Até cowboy, dois revólveres, cara de mau, já existe no papel de gay. Você viu o filme? Aliás, você tem ido ao cinema? Ia perguntar com quem. Mas deixa pra lá. Passei a tarde ouvindo Billie Holliday, e estou muito lonely. Aquelas guitarras, aquele blues, aquele espaço enorme, vazio, as notas ecoando nas paredes. A gente só falta escutar o gelo do uísque, quando a ouve cantando. Como a voz já é meio bêbada, o cenário surge logo na cabeça. Um bar à meia luz, os copos tilintando com gelo e bebida. Se ela vivesse hoje, certamente diriam que era gay. Se desmentisse, poderia ser pior. Aí sim é que passaria por mentirosa. Se declarasse que era verdade, a imprensa elogiaria. Diria que era corajosa, assumida, etc. Nunca a mentira teve tanta cara de verdade como nos dias de hoje. Mesmo assim, acho que soaria gaiato aquele casal de cowboys se apresentado um dia, a um grupo de pessoas. Oi, olá, muito prazer, este aqui é minha esposa. Ninguém acreditaria. Nem que tirasse o chapéu e mostrasse umas trancinhas. Tem coisa que não dá pra acreditar. Por exemplo, você não acredita que eu esteja sendo verdadeiro. Todo mundo mente, mas em mim você pode acreditar. Digo o que sinto, sou o que sou. E me engano o tempo inteiro. Vou apagar o recado. Dar a flor de presente. Você não existe, nunca existiu. Mas juro que a flor tem seu cheiro.

 


Revisão
Quem não bebe não treme.

 


O microondas sorriu

— Hoje acordei feliz... Oi, alô... Sou eu. Bem, tive a impressão de que você finalmente iria atender o telefone, em vez de ficar aí em frente à secretária eletrônica me ouvindo. Aliás, hoje acordei tão feliz que até a parafernália eletrônica daqui de casa percebeu. O rádio, a televisão, o dvd, a geladeira, o microondas, o ventilador de teto, a cafeteira elétrica e até a secretária eletrônica — que continua guardando aquele último recado seu — deram bom-dia. Cada um à sua maneira. Pensei que não havia mais leite gelado. Tinha. Foi o bom-dia da geladeira. O perfume do café... Ah, esqueci de botar o computador na lista. Estava escrevendo nele quando o perfume do café invadiu toda a casa. Até deixei de escrever e fui à janela. Lá fora já existe uma promessinha de outono. Foi o bom-dia da natureza, da rua, da cidade. Mas aqui dentro só havia bom-dia de aparelhos. Nada de natureza. O dvd tinha esparramado pra fora a bandeja de cds. Exibia um disco em que constava o nome do filme: "Love Time", escrito com sua letra. Nem assim fiquei triste. A primeira coisa que pensei foi em telefonar e brincar que você tinha deixado um vestígio de sua fábrica particular de produtos piratas. Exigiria uma recompensa para destruir a prova, ou devolvê-la. Caso você resolvesse receber pessoalmente, não cobraria absolutamente nada. E, se me beijasse agradecendo, eu é que ficaria devendo. Só não entendi ainda o bom-dia do microondas. O rádio tinha me despertado com um jazz incrível. Daqueles que você sabe que eu adoro. O pessoal pensa que jazz é coisa de velho, mas a melhor banda que conheci tinha média de dezoito anos. Lembra?  Falei pra você, daquele bar de Boston. Não vai rir, era de "Boston", mas era ótimo. Os caras tocavam muito. Todos de terno e gravata. Todo mundo lá usa terno impecável e nariz empinado. O garçom deve ter achado que eu era canadense. Mas quando pedi o uísque, murmurou umas coisas e desapareceu. Quase não me serve. O ventilador de teto fez avoar um monte de papel que havia picado. Deixei. Fiquei olhando serem arrastados pelo ar e ir caindo pelos cantos, no sofá, no chão. Representou uma passeata de bons-dias. Um coral. O microondas foi o único que não deu bem um bom-dia. A sorte é que, de toda forma, tem uma cara engraçada e acaba contribuindo para o alto-astral. Enfim, graças a isso tudo, pela primeira vez vou desligar o telefone contente. Sem mágoas. Sem lições de moral (como sou babaca). Apenas vou desejar: bom dia!... Putz, seria melhor ainda se o arroz não tivesse acabado de queimar.

 


Mergulho no Arrojado
Quando fizer a última viagem, aquela em que nenhuma bagagem segue junto além da mala de si próprio, a última lembrança que terei será a imagem de um rio por onde passei. Uma ou duas ilhas. Uma imensa curva. A água prateada de sol. Estarei no cume de um pequeno monte, apreciando a paisagem. Abrirei os olhos, e um bando de médicos apavorados estará tentando trazer-me de volta. As máscaras talvez me remetam á infância ainda povoada de bandidos usando lenços escondendo metade do rosto. Como era fácil um disfarce. Mas logo minhas lembranças me remeterão de volta ao rio e às duas ilhas. Duas ilhas. Tenho certeza agora. Bem onde o rio aponta pro norte. É o Arrojado. Uma noite, o caminhão que nos transportava quebrou na beira do Arrojado. Havia uma casinha de fazenda perto. O dono acolheu as crianças. Os adultos dormiram sob a carroceria, abrigados do sereno. De manhã, nos banhamos no rio enorme, azul, barulhento de corredeiras. Mais tarde, quando infelizmente conseguiram botar o velho motor a funcionar novamente, partimos. Subimos pela estrada serra acima. Lá do alto pude ver o rio e sentir pela primeira vez a nostalgia de quem vai para alguma terra estranha. O Arrojado seria meu lar pra sempre, se a vida e os adultos mo permitissem. Será a última lembrança que terei comigo. Subirei a serra, mais uma vez em companhia de um sentimento nunca dantes experimentado. Um amigo poeta diz que, esta, é a hora do sentimento mais estranho. Que seja apenas, queira Deus, como um simples mergulho no Arrojado.

 


Pois
Pois era a pele. Pois era o cheiro. Pois era a companhia. Pois era a quietude. Pois era o andar macio. Pois era a ginga. Pois era o dengo. Pois era o sorriso. Pois era o calor. Pois era o olhar. Pois era a timidez. Pois era o tesão. Pois era o freio.

 


Revisão 1
Amarás ainda mais ao próximo quando morar bem longe.

 

 

Azul ditado
Aventura tem um quê de masoquismo.  As mãos esfoladas, o chão dezenas de metros abaixo. Os pés firmemente plantados. Mas num platô mínimo. Era preciso ter cuidado. Desceria pela esquerda, mais um pouco. Depois subiria na corcova aguda da rocha e a cavalgaria até o topo. De lá, andaria até a beira da cratera conhecida. Desceria pelas bordas, agarrando-se às raízes das árvores que só iriam desabrochar do lado de fora do buraco imenso. Antes de entrar na caverna, abaixaria as mangas compridas da camisa. Xixi de morcego é desagradável. E finalmente entraria naquele mundo onde moram aos milhares. Voariam tão perto de seu rosto, que pensaria que o haviam tocado. Curtiria por uns minutos, de olhos fechados. Levantaria os braços num repente, a ver se conseguiam desviar-se. Jamais o atropelaram. Sairia novamente para a luz do dia. Olharia as folhas das árvores refletindo a luz e redesenhando o céu a cada lufada de vento. Depois, subiria em direção ao Cruzeiro. Alcançaria o topo da cruz escalando a escada de segurança, feita de ferro liso pelo tempo. Sentar-se no topo pode ser muito perigoso. Melhor seria, ainda seguro à escada, colocar apenas meio peito acima da imensa cruz de cimento. E apreciar Bom Jesus da Lapa. O São Francisco rasga o horizonte de ponta a ponta. E some em direção aos destinos, aos nortes. Ao sul, a Serra do Ramalho dita um azul enquanto o céu do sertão já persegue o vermelho do cair do sol. "Com esses olhos que um dia a terra há de comer", o velho, de chapéu de palha, charuto mascado, afirmava no mercado. O cheiro do fumo. A terra também haverá de comer esse nariz. E apagará todas as lembranças.


 

Conjunção temporal
Seria péssimo se não fosse ótimo.

 

 

 

 

janeiro / fevereiro / março, 2006