©mari mahr
 
 
 
 
 
 


 

Cena

Uma senhora desconhecida, cerca de 47 anos, regou as plantas na varanda do apartamento, por volta de dez e treze da manhã. O semblante preocupado era o anti-retrato de uma flor. A mão esquerda sempre solta parecia segurar um cigarro, embora nada contivesse. Deixara-o queimando no cinzeiro da sala. Não tinha pejo do vício, mas não poderia invadir o espaço das flores poluindo tudo de fumaça. Passado um quarto de hora, deitou o regador de lado e ficou por dois minutos apreciando uma flor. E mais quatro dando uma geral nos vasos.

 

 

Telefonema

Estava no escritório à tarde quando chamaram de Nova Iorque. Era o irmão maluco. Ajeitou a gravata, pediu que aguardasse um momento, largou o telefone sobre a mesa e fechou a porta que o separava da recepção. Antes de voltar ao aparelho, ajeitou novamente a gravata como quem iria iniciar um discurso. Nem teve tempo de reclamar. O irmão maluco de Nova Iorque estava com a cabeça muito boa. Em vez de se aborrecer, deu imensas gargalhadas. E ainda mandou mais dinheiro.

 

 

Ave Maria

Quase na ave-maria, surgiu uma garoazinha e, ao longe, iniciaram os trovões e começaram a despencar uns raios. Mesmo sendo o primeiro da fila e precisando de dinheiro, torceu para que ninguém lhe pegasse o táxi. Justo quando a chuva piorou, apareceu uma senhora. Abriu a porta, cumprimentou-o muito secamente e mandou seguir pra Serra da Cantareira. Tem dias que não há quem nos livre do mal, amém.

 

 

Donaninha

Nem tinha amanhecido ainda quando Donaninha, 93, dormiu o sono mais profundo e eterno. De manhã, o arraial todo soube da notícia, que se espalhou até as outras praias. Vieram muitos amigos para o velório. Enquanto iam chegando, surgiu uma dezena de golfinhos seguidos por um enxame de gaivotas que realizavam esplêndidos giros no ar. Na porta da igreja, praticamente na areia da praia, ninguém sabia se velava Donaninha ou se admirava aquele bailado. Ali, naquele momento, ninguém comentou o fato. Depois do enterro, contudo, era só no que se falava. Ficou logo estabelecido que não tinha havido nenhuma coincidência. Amigos, golfinhos e gaivotas não comparecem a velório por acaso.

 

 

 

 

novembro/dezembro, 2006