O IRREMEDIÁVEL

 

Porque agora atravessamos o horizonte fixo do silêncio. Como outrora a luz ilumina a esperança de certezas rudimentares. Cálido é o amor, simples como a água dos cântaros. Saciamos a sede do afeto remido. Do amparo exímio. Isentos da solidão sedimentada, da graça exclusa, de alguma forma antecipamos a recompensa de ser. A lucidez de persistir ante o irremediável, de acreditar ante a perda do que nunca possuímos derradeiramente. Caminhamos sobre o infinito de nossos passos.

 

 

 

 

 

NO ÚLTIMO JULGAMENTO

 

Somente o amor e suas consolações. A minúcia das horas, o amparo dos dias. Em cada gesto, tributo ao tempo. Mãos que se unem em presença vivida. Lívido, incólume o olhar sobre o definitivo. As insinuações de outrora rememoradas em resignação, os equívocos destituídos de significação. No último julgamento não se prescinde da culpa.  Uma rosa fenece sobre o estio. Para a consumação de todas as esperanças.

 

 

 

 

 

 

SENDAS DO IMPONDERÁVEL

 

As sinuosidades do corpo, sendas do imponderável. Lícito é a conjunção dos desejos, a cumplicidade das expectativas. Lícito o dispêndio de sentimentos não compartilhados. Premissas do amor. Címbalo da sensibilidade, cilício da queda, com fúria e complacência estigmatizamos os ditames da aproximação. Haure o tempo seu ardor. Haure o sexo sua convalescença. Pode o espírito prescindir da carne? Abate-se um porco por não reproduzir. Ardem os homens o exílio do éden.

 

 

 

 

 

 

GOMORRA

 

Uma centelha de luz que se dissemina ao compasso das disparidades.  Caminhamos sobre Gomorra e o desejo de todas as injúrias. Na gratuidade das omissões, de ofensas não ratificadas, proliferam-se ossos e cicatrizes da meretriz usurpada. Não se preside o inferno e o amor, não se preside a cobiça e a ternura. Somente o indulto de fatos estabelecidos ante a insídia das próprias ilusões. Os que esperam os lírios famintos apodrecem no inestimável furor da aurora.

 

 

 

 

 

 

15 /01 /2010

 

A Marta dos Reis Valeriano

 

Como o vento, uma canção reincidente.

Afloram presságios, intentos.

Cálido amparo, minúcia do tempo.

— Instância premente de amor.

 

 

 

 

 

 

Circunstâncias

 

Vês a aparente necessidade de todas as coisas?

Aceite-as em sua fragilidade essencial.

 

Acolhimento e recusa aguardam

incautos andarilhos.

 

Vês a perplexidade de todos os fatos?

Aceite-os em sua precária alegria de ser.

 

Resignação e esquecimento aguardam

altivos andarilhos.

 

Acaso reclamas os despojos de tua derrota?

Soma de nulidades!

 

Todas as circunstâncias são inelutáveis.

 

 

 

 

 

 

Primeiro olhar

 

Para o Murilo, meu filho.

 

 

As coisas que são vistas,

são vistas naquilo que são.

Nisso guardam o mistério

na dádiva do primeiro olhar.

 
 
 
 
 
 
 
 
 

Cenas

 

I

 

sacos de lixo

ao chão

o pó

de passos

perdidos

homens caminham

em nenhuma

direção

 

 

II

 

restos

pútridos

alimentos

expostos

ao tempo

aos homens

vielas

e a água

da chuva

 

 

 

III

 

o semáforo

fechado

automóveis

atravessando

o canto inócuo

de pardais

a solicitude

daqueles

que esperam

 

 

IV

 

edifícios

opostos

enfileirados

calçadas

devolutas

presença inóspita

da lua

cães ladram

ante os ruídos

dos ratos

 

 

 

 

 

 

Pombos

 

No banco da praça,

entre mulheres

e crianças,

o homem lê.

Presença enfática

dos pombos.

 

 

 

 

 

 

O homem

 

Uma xícara

de café

e os dedos

entrelaçados

na mesa

a garçonete sorri

austero o homem

agradece

 

 

 

 

 

 

O sinal

 

No outro lado

da rua

mãos dadas

palavras

confidenciais

o casal aguarda

o sinal para

atravessar

 

 

 

 

 

 

Dias sem sol

 

Observação de fatos

que não convergem.

Uma vida por viver

e que não pode ser ignorada.

Inoperância do caos.

Dias sem sol

ao revés da madrugada.

 

 

 

Nihil

 

A propósito de nada

tudo se torna relevante.

Um olhar esguio,

uma pílula,

— ódio ao remorso

de amar.

 

 

 

 

 

 

Finis

 

"O homem morre sem ainda saber quem é".

Murilo Mendes

 

 

Nada convém à espera

da última justificação.

 

Tudo é limite.

 

 

 

 

 

 

*

 

As colisões do amor

e suas conseqüências.

 

Chagas da derelição.

 

 

 

 

 

 

Poética

 

Estabelecer relações.

Determinar ações.

Provocar reações.

 

Contrapor ao impróprio

seu antônimo.

 

Mover todos os dedos

e procurar agulha

no palheiro.

 

 

 

 

 

 

A poesia

 

A folha de papel:

branca

imaculada.

 

Vômito de palavras,

a poesia:

hemorragia linguística.

 

 
 
 

Hilton Deives Valeriano. Formado em Filosofia pela PUC/Campinas. Leciona na rede estadual de ensino. Vive em Hortolândia-SP. Tem poemas publicados no Jornal de Poesia e Sibila, entre outros. Escreve o blogue P-o-e-s-i-a-D-i-v-e-r-s-a.