posfácio

Abre-se um novo embate. Abre-se a musa.
Eis que o metro força o antigo engenho.
Devo encaixar o mundo numa blusa
e, pródigo, doar o que eu não tenho.
Devo encontrar outrora esse soneto.
Também medir com régua cada estrofe.
Não é fácil o risco em que me meto:
há que cuidar com fé, pra que não mofe
cada palavra. Cada ponto e acento,
cada elisão contida na fuzarca
de verbo e dor e luz em que me agüento.
Não busques aqui Camões ou Petrarca.
Não eleves tamanho experimento,
pois nem essa ilusão meu verso embarca.

no retrato

Toda a família se espreme
no retrato
ao lado do oratório.

Aninha está de vestido novo
e laço de fita no cabelo.
José surge da treva,
enfim lúcido e barbeado.
Filinto continua bêbado.
Laninha, essa ninguém convence,
permanece de mal com a vida,
como sempre.

Vô Chico não perde a esperança
de fazer as pazes com a bengala.
De quebra, sem que o vejamos,
limpa o coldre com a flanela.
João não esconde
sua dívida com o farmacêutico.
Zuleica parece ainda mais magra,
de coque alto
e luvas muito brancas.
Os netos fazem esforço
para que o retrato não atrapalhe
a festa. Bilico já estava morto
antes que entrasse na foto
o seu rádio de estimação.
Manolo não quis saber de posteridade.
A contragosto, comparece com a banqueta
feita em sua oficina
nos tempos da grande guerra.

Dona Cota também fugiu pela porta dos fundos,
mas arrumou bem arrumado
o jarro de flores
e por isso está no retrato.
André deu mão de cal na parede
e Lico, verniz brilhante
na cristaleira.
É de Catita a marinha
que se vê à esquerda (dela,
que morreu afogada, unhas ferindo
de crupe o crucifixo,
sem nunca ter visto
uma réstia qualquer de mar).
À esquerda, com moldura do Andrada,
esse mesmo
que alegou crise de asma
e fugiu com a costureira.
Solana repete o colar de pérolas,
agora no colo
da filha mais moça.
Hermengarda bordou a cortina de organdi.

Toda a família está no retrato.
Até o Arlindo, aquele sonso,
que colou a porcelana
que se vê ao centro.

Mesmo os que não quiseram ou não puderam comparecer
estão ali, todos, nos trinques, fotografados.
Seja de esguelha ou de estalo.

Por isso
é de lei
nessa casa
reverenciá-lo.

décimo mirante

Medir em tudo, do chão que se alarga,
o bosque e o muro, o quintal sem alarde,
a lembrança na boca, e tão amarga,
tão terrível, que dela o sol não guarde
rastro ou notícia. O negrume, a ária
de privações e ausências que me invade.
A paixão maior, e mais ordinária,
que arma em mim tamanha brutalidade.
Medir em tudo o verão que me enfada:
seus celeiros, seus moinhos, seus bois.
Uma história vivida e não contada.
Há dois caminhos, tão-somente dois.
Agora urge amar a vida, e mais nada.
Tudo o que desconheço vem depois.

augusta, seu marido e
................
seu amante

Ninguém sabe quanto me custa
por dois homens ser dividida,
mas com ambos fazer-me justa,
dando a cada qual minha vida.

Não em metades, mas inteira.
Tanto amor a muitos assusta.
Para o marido, costureira,
deusa do lar, de nome Augusta.

Para o amante, uma qualquer,
feita somente para a cama,
que melhor revela a mulher
em tudo mais puta que dama.

Andança de esposa até gueixa
ninguém sabe quanto me custa.
Às vezes tanto amor me deixa
assim na maior saia justa.

trilogia do gato

1.

O gato no telhado: olho fixo
na manhã, no ar,
nessa renúncia de existir, tocar
o sal e o açúcar de existir.

Fixo na brisa
que arreda os sentidos:
estátua em mutação para o salto
sobre o nada
de si mesmo.


2.

Onde o real?
O homem, a mecânica celeste
no talo de um crisântemo?
Onde
a vida? O abalo da vida
contra o muro, o muro
entre a cal e a formiga?

Que peso
o do sol sobre o século?
Que noite traz
o caramujo em sua concha?
Qual o avesso de um besouro?
Em seu passado
de touro portátil
teve fortuna, ouro?

Qual o sinal da morte?
Qual o som, o sismo,
a sístole, o cisco
da morte?
E a linguagem dos juncos,
dos rios secos
em desuso?

Tem o limo grandeza e fuga?

Nada disso acorda o gato
do alto
de seu salto.


3.

Pergunta é cerne de homem,
mas o vazio que se come

é bem o daquele embargo
posto ao gato em seu cargo:

vazio não previsto, não julgado
quando do salto no telhado.

os dois relógios

Não importa o tempo lá fora,
a brisa nas unhas do limoeiro.

O azul tão vivo
que fere a vista.

Pouco serve o sobejo de vida
nos pássaros, nas formigas
que trazem a custo
um graveto perdido na infância.

Nem ao menos a perfeição de tudo.
A claridade que cresta a paisagem.

Ao fundo de teu corpo
esses excessos não chegam.
Há um cofre: perdeste a chave.

Uma música dentro insiste.
Ao lado um relógio marcando
duas horas da madrugada.

Eis que nesse teu cofre
são sempre duas horas.

Por isso
de nada adianta o tempo lá fora.

Por isso
fica essa coisa triste,
indefinível, no ar.

E em teu corpo, e nesse cofre
diante de um relógio
às duas da madrugada.

Logo, resta esperar
algo que não se sabe ao certo
o que é, caso exista — e por que virá.

Algo maior que essa hora última, terrível.

E que possa fazer
o relógio girar.

o anúncio apenas

Tudo é sempre despedida.

Nenhuma hora
é própria para a dança.

Os bilhetes de passagem,
a sinalização das ruas,
as avenidas e os parques
indicam apenas a partida.

Caminho nenhum
é caminho de volta.

Esse sol já se perdeu,
o minuto em que escrevo
(em que alguém
do outro lado desta página
apalpa o fruto avesso que escrevo)
esse minuto também já se perdeu.

Só essa tristeza
sem sentido ou forma
permanece a meu lado

e me guia pelas mãos
desde o azul primeiro
dos primeiros dias.

Essa tristeza
como o anúncio de algo terrível,
mas anúncio apenas,
sem conseqüência ou crime.

Sem despedida:
eis que estará sempre aqui,
enorme, devorando cada palmo
de entrega, cada manhã
ante o amor que não cessa,
com o seu sono tomado
de aguda indiferença.

Agora é quase um barco
na direção da noite,
diante dos muros altos de febre

e sobre um mar
eternamente aberto para o passado.

Aberto à indiferença que somos e seremos.
Espelho vivo
de onde rompe essa tristeza.

Sem conseqüência
ou crime.

as mãos de meu pai

Só agora vejo crescer em mim
as mãos de meu pai.

Decerto não tão rápido assim:
um salto,
o desfolhar de muitas noites sob a pele
e, de repente,
as mãos de meu pai

(o seu gesto esquivo
de nuvem
fixou-se antes
e agora ruge).

Hoje vou desfolhando minha pele,
retirando o limo, o círculo de urzes,
mas as mãos de meu pai
não surgem.

Permanece ainda
a velha imagem
com seus santos no sepulcro.

A velha imagem
de algo meu, que se foi
gastando aos poucos.

Desfolhando-se até o osso.

Até que outras mãos
saibam colher, do ar mineral,

a flora silenciosa
e úmida de meu corpo.

pequeno diário da palavra

Toda palavra tem um oco
uma fenda uma avessa
claridade
de onde as formigas emigram.

Há gravetos, conchas vocabulares,
acentos à paisana, vírgulas úmidas e bivalves.

Um vento antigo
tange as crases desse poema, arrasta
os pontos de exclamação pelos cabelos.
Estende-os para secar
o sol mais triste de seu nome.

O meio-dia a esmo
bate a sua orelha na cancela.

Toda palavra tem sexo e sintaxe,
um amarelo em luta
com as folhas mortas no terreiro.

Alfabeto crivado de dízimos
onde não se pode tagarelar
sem doer um grão de arroz
por sob a língua.

Palavra carece de pátria
lugar de raiz e eleição.

Onde adensa sua espera, duas borboletas
grifam a giz a paisagem.

Iacyr Anderson Freitas nasceu em Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, em 22 de setembro de 1963. Formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora, obteve também, pela mesma instituição, o título de mestre em Teoria da Literatura. Publicou quatorze livros de poesia, três de ensaio literário e um de contos, tendo recebido diversas premiações no Brasil e no exterior. Sua obra se encontra bastante divulgada em outras línguas e países (Colômbia, Espanha, Argentina, Estados Unidos, França, Chile, Malta, Itália e Portugal). Além de colaborar intensamente com a imprensa brasileira, já publicou poemas e textos críticos em Serta (Espanha), Saudade (Portugal), Private (Itália), Comun Presencia (Colômbia), Punto di vista (Itália), O comércio do Porto (Portugal), Los rollos del mal muerto (Argentina), International Poetry Review (USA), Ricerca research recherche (Itália), Fokus (Malta) e Rimbaud Revue (França), entre outros.

Poesia: Verso e palavra (Juiz de Fora: Ed. do Autor, 1982), Pedra-Minas (Juiz de Fora: D'Lira, 1984), Colagem de bordo & outros poemas (Juiz de Fora: D'Lira, 1986), Outurvo (Juiz de Fora: D'Lira, 1987), Pedra-Minas & Memorablia (Juiz de Fora: D'Lira, 1989), O aprendizado da figura (Juiz de Fora: D'Lira, 1989), Sísifo no espelho (Juiz de Fora: D'Lira, 1990), Primeiro livro de chuvas (Juiz de Fora: D'Lira, 1991), Messe (Juiz de Fora: D'Lira, 1995), Lázaro (Juiz de Fora: D'Lira, 1995), Mirante (Juiz de Fora: D'Lira, 1999), Oceano coligido (antologia poética. São Paulo: Viramundo, 2000), Messe (edição revista. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura, 2000), Dançar o nome (em co-autoria com Edimilson Pereira e Fernando Fiorese, contendo CD com leitura dos poemas. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2000), A soleira e o século. São Paulo: Nankin/Funalfa Edições, 2002; Duo.
Magdalena (Argentina): Edición Artesanal, 2004. Volume bilíngüe e bipartido, contendo também poemas de Victoria Asís;
 Terra além mar (antologia poética). Lisboa: Ardósia Associação Cultural, 2005.

Livros de ensaio e de outros gêneros: Heidegger e a origem da obra de arte (Juiz de Fora: D'Lira, 1993), Quatro estudos (Juiz de Fora: D'Lira, 1998), O artista e a cidade (Juiz de Fora: Funalfa, 2000 - álbum comemorativo dos 150 anos de emancipação política de Juiz de Fora, com tiragem de cem exemplares, contendo texto autobiográfico do poeta e uma serigrafia de Dnar Rocha), As perdas luminosas: uma análise da poesia de Ruy Espinheira Filho (Salvador: EDUFBA e Fundação Casa de Jorge Amado, 2001).

Contos: Trinca dos traídos (São Paulo: Nankin/Funalfa Edições, 2003).

Livros de poemas para crianças: O cavalo alado e outros poemas (Juiz de Fora: Mary e Eliardo França Editores/Zit Editores, 2004, em co-autoria com Leo Cunha e Elias José); Eu tinha um gato branco que fugiu. (Juiz de Fora: Franco Editora, 2004).

Antologias e participações diversas: Antologia da nova poesia brasileira (Org. Olga Savary. Rio de Janeiro: Hipocampo, 1992), Pérolas do Brasil / Pearls of Brazil / Brazilian Gyöngyei (Org. e trad. Lívia Paulini. Belo Horizonte: AFML, 1993), International Poetry Review: Brazil Issue (Greensboro, USA: University of North Carolina, spring 1997. Antologia org. e trad. por Steven White), A poesia mineira no século XX (Org. Assis Brasil. Rio de Janeiro: Imago, 1998), Anto (número 3, especialmente dedicado ao Brasil. Amarante, Portugal: Edições do Tâmega, 1998), Fui eu (Org. Eunice Arruda. São Paulo: Escrituras Editora, 1998), Reflexos da poesia contemporânea do Brasil, França, Itália e Portugal (Org. e trad. para o francês por Jean-Paul Mestas. Lisboa: Universitária Editora, 2000), Ricerca research recherche (Lecce, Itália): Dipartimento di Lingue e Letterature Straniere - Universitá degli Studi di Lecce, nº 4, 1998. Seis poemas do autor foram traduzidos, para esta revista, por Vera Lúcia de Oliveira), Baú de letras (Org. José Alberto Pinho Neves. Juiz de Fora: Funalfa, 2000), Quanta terra!!! — Poesia e prosa brasileira contemporânea (Org. Amadeu Baptista. Almada, Portugal: Casa da Cerca, 2001), Antología de la poesía brasileña (Org. e trad. Xosé Lois García. Santiago de Compostela, Espanha: Laiovento, 2001), Letras da cidade (Org. Leila Barbosa e Marisa Timponi. Juiz de Fora: Funalfa, 2002), Poesia em movimento (Org. Jorge Sanglard. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2002).

Principais prêmios literários recebidos: 1989 - Menção Especial no Prêmio Nacional Jorge de Lima, promovido pela União Brasileira de Escritores (RJ), por seu livro Sísifo no espelho; 1990 - 1º lugar no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte (Poesia), promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte, por seu livro Messe; 1993 - 1º lugar no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte (Poesia), promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte, por seu livro Lázaro; 1997 - Diploma do Mérito Cultural, conferido pela União Brasileira de Escritores (RJ), por seu conjunto de obra; 2000 - Prêmio Nacional Eduardo Frieiro (Ensaio), promovido pela Academia Mineira de Letras, por seu livro Quatro estudos; 2001 - 1º lugar no Prêmio Nacional Joaquim Norberto, promovido pela União Brasileira de Escritores (RJ), por seus livros Messe e Oceano coligido; 2002 - 1º lugar no Premio Internazionale Il Convivio (Poesia), promovido pela Accademia Internazionale Il Convivio (sediada na Itália), por seu livro Oceano coligido; 2001 - 1º lugar no Prêmio Nacional Centenário de Oscar Mendes (Ensaio), promovido pela Academia Mineira de Letras, por seu livro As perdas luminosas; 2003 - 1º lugar no Premio Internazionale Il Convivio (Poesia), promovido pela Accademia Internazionale Il Convivio (sediada na Itália), por seu livro A soleira e o século; 2003 - 1º lugar no Prêmio Nacional Centenário de Hely Menegale (Poesia), promovido pela Academia Mineira de Letras, por seu livro A soleira e o século; 2004Menção Honrosa no Prêmio Vivaldi Moreira (Poesia), promovido pela Academia Mineira de Letras, conferido a um livro inédito do poeta; 2004 Hors-concours no Prêmio de Poesia Centenário de Carminha Gouthier, promovido, em conjunto, pela Academia Mineira de Letras, pela AFEMIL e pela AMULMIG, por seu livro A soleira e o século;
2005 Menção Especial na 46ª edição do Premio Literario Casa de las Américas, em Cuba, por seu livro de contos Trinca dos traídos. Mais Na Berlinda.
confissão

Sejamos sinceros, meu bem,
dispamos o pijama
das mitologias:

a eternidade não conhece o amor.

O amor também não sabe
verdadeiramente
o que é o amor

e, no fundo, nós nunca acreditamos muito
em parto
sem dor.