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Este  artigo faz parte de uma série escrita no início de 2007, quando o autor

foi guia e intérprete para ocidentais nas Índias

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Ao entrar no campo da gastronomia indiana, como sabido vegetariano que sou, a minha primeira tentativa é de deixar com que cada um faça as suas próprias descobertas, afinal estamos aqui entre estrangeiros que pela primeira vez têm contato com a culinária local. Mas, para o meu deleite, mesmo em restaurantes ocidentalizados, é muito raro escaparmos de um menu vegetariano. A carne bovina é tabu, assim como em alguns hotéis simplesmente não é permitido o consumo de bebidas alcoólicas. Há poucos dias eu me divertia ao perceber que alguns jovens indianos não sabiam indicar ao motorista do nosso ônibus onde se localizava uma lanchonete do mais famoso fast food de hambúrgueres do mundo.

 

Daqui do Sul da Índia, onde a pesca é base da subsistência de muitas famílias, acompanho então os bastidores de uma querela entre vegetarianos e budistas ocidentais. Os primeiros não conseguem entender como membros do segundo grupo teriam comido peixe. Eu, leigo que sou no budismo, penso ter entendido que neste sistema filosófico e religioso, um dos Cinco Preceitos (panca sila) — abster-se de prejudicar qualquer ser vivo — é vagamente vegetariano.  Mas confesso que esta afirmação pode ter interpretações diversas. Afinal, entre definir o que vem a ser ou não prejudicar um ser vivo, há uma multidão de budistas que come carne e outra que não.

 

Do ponto de vista ecológico, é mais do que óbvio que a produção de carne — bovina, principalmente —  é responsável por grandes desastres ambientais, como devastação de florestas, efeito estufa, destruição da camada de ozônio, poluição de rios e lagos, etc.  É sem dúvida a  forma mais cruel de exploração da vida animal. Basta uma visita a qualquer granja ou matadouro. Do ponto de vista espiritual, porém, tenho conhecido vegetarianos coerentes e iluminados ao mesmo tempo em que cruzo com outros, sectários e arrogantes.

 

De volta ao peixe, um adepto budista do nosso grupo relatou ter sentido que, ao banhar-se no mar em Goa, o  peixe que havia comido no dia anterior teria, por fim, retornado às águas, numa poética simbiose. Lembrei-me dos índios brasileiros da época do Descobrimento que tratavam bem o guerreiro prisioneiro antes de comê-lo, admirando e tentando absorver, através do canibalismo, a coragem do inimigo. Reside também a crença de que o couro de instrumentos musicais, em algumas culturas ancestrais, traz em si a alma do animal. Assim, a voz do sacrificado se perpetua e se faz ouvir em todos os rituais onde há música.

 

A bela fala sobre o peixe e o mar fez com que, nos dias seguintes, alguns integrantes do grupo, budistas ou não, comprassem ou salvassem das redes os peixes dos pescadores nativos, devolvendo-os às águas! Simultaneamente, eu ouvia explicações de que, no budismo, estamos todos interligados, que aquele que come o animal se torna uno com ele e que os monges mendicantes, quando presenteados com o dana, a sua refeição diária, não podem recusar nada de que lhes é oferecido, nem mesmo carne. Tudo muito interessante, embora eu teimasse internamente nas minhas convicções empíricas sobre o vegetarianismo e a Índia. 

 

No vôo de volta, alguns carnívoros foram surpreendidos com refeições vegetarianas que não haviam solicitado, ao passo que vegetarianos, como eu, tivemos de trocar nossas marmitinhas aéreas cheias de carne com nossos vizinhos de bordo. Todas as minhas certezas morais (e não as ecológicas) pairavam embaralhadas! Foi então que pude jurar ter visto uma espécie de saci-pererê indiano, muito arteiro e bem à vontade, no semblante daquela aeromoça, a me dizer: — bom ou ruim, deixe que cada um cumpra o seu karma.

 

 

 

 

fevereiro, 2007