©j. gardney
 
 
 
 
 
 
 
 
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Este  artigo faz parte de uma série escrita no início de 2007, quando o autor

foi guia e intérprete para ocidentais nas Índias

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Rumo a Goa

 

Obcecado, desejava lembrar-me da bizarra história do cachorro atropelado. Abordado por uma senhora, um rapaz é informado que ele a faz recordar-se de seu cãozinho morto. Descobrem os dois que o acidente ocorreu exatamente no dia do nascimento do jovem. Ele e o animal, um só espírito reencarnado. Acompanhei com atenção a narrativa e achei que ela teria aqui o mesmo efeito de suspense que teve no  cinema.

 

A platéia era composta por seis estrangeiros, naquela cabine de trem indiano, tentando contar histórias para distrair uma moça que acabara de ser furtada. O trem ainda parado na plataforma, uma mochila descuidada, um indiano com o poder da invisibilidade, mais rápido do que o vento. Localizado um suspeito, enquanto eu me espremia no corredor, tentando acomodar trinta pessoas em outras cabines diferentes das quais elas haviam se instalado, acompanhei a sua captura. A cena remetia a Hollywood — um trem que começa a deixar a estação, ainda lento — o réu querendo pular, enquanto dois dos nossos homens o pressionam por uma confissão. Eles desistem. Ele salta. O trem segue.

 

São duas da manhã. Abortei, frustrado, o conto do cachorro. Das piadas iniciais, ficaríamos só com o mórbido, de gente enterrada viva a náufragos moribundos. Alguém se esqueceu de jogar a escada de embarque antes de pular na água. Contou-se que o barco foi encontrado assim, com o casco todo arranhado pelas unhas dos seis tripulantes que boiavam, todos mortos, ao seu redor. Tento dormir.

 

No dia seguinte, sanduíches com pimenta no café-da-manhã. Depois de quinze horas de trem, chegamos à portuguesa Goa.

 

 

Os trens na Índia

 

Fazem parte de uma estatal que controla todas as linhas. Herança dos ingleses, ligam os mais longínquos pontos. Pode-se comprar a passagem para um trecho específico, antecipadamente, de qualquer parte do país. Há classes e trens diferenciados. Os de viagens mais longas contam com beliches — às vezes, camas triplas — que se transformam em bancos durante o dia. Os do tipo express têm assentos convencionais. Todos têm serviço de bordo.

 

Há listas de espera nas paredes externas dos vagões ou da estação. Uma vez não tendo conseguido um lugar nestas listas, embarquei dissimuladamente na primeira classe. Foi a minha única na vida. Asséptica, com muito ar condicionado e famílias de classe média, me deu saudade dos vagões cheios de gente de verdade e ventiladores ruidosos.

 

Nas estações, pode-se comprar frutas, omeletes, pastéis, água, jornais, enfim, qualquer coisa. Sempre cheias, não é incomum encontrarmos passageiros dormindo no chão ou macacos nas vigas.

 

Os indianos somos  curiosos e conversadores. Diz-se que, no final dos anos setenta, um idoso acercou-se do célebre Marcos Rojo numa dessas viagens de trem. O professor, cansado de tanta indagação, fingiu dormir, monossilábico. Ao descer, o indiano, que estava emocionado em estabelecer contato com um estrangeiro, comprou bananas — caras para o seu padrão — e ofertou-as ao brasileiro. Apesar de toda a relutância, Marcos teve de aceitar as frutas, encabulado. E afirma-se que, na consciência, carrega aquelas bananas até hoje.

 

Tendo passado mais de quarenta horas dentro do mesmo trem na Índia, e outras tantas espalhadas pelos anos, gosto de pensar naquelas linhas férreas todas como as Veias da Índia, por onde circula seu povo, suas religiões e comidas, seus idiomas e roupas lindas e esquisitas, turbantes, chás e varredores de chão.

 

 

Expresso do Oriente

 

Se, na Índia, podemos esperar hospitalidade e amizade eternas, o mesmo muitas vezes não recebe o indiano que viaja ao exterior. Suas idiossincrasias, comidas, tom de pele e roupas logo o tornam um alvo fácil, nestes anos pós 11 de setembro. Creio que a Inglaterra seja a campeã em ocorrências racistas, algumas que terminam, infelizmente, em mortes. Um exemplo atípico é o do cantor e vegetariano Morrissey — do extinto The Smiths — que entabula um diálogo com um bengalês, na canção Bengali in Platforms, em seu primeiro trabalho solo. De maneira bem pragmática, Morrissey convida o indiano a retornar ao seu país de origem.

 

Lembro-me do impacto que senti ao ouvir esta canção pela primeira vez. Exalava xenofobia. Morrissey, exilado já duas vezes, nunca foi muito coerente quanto a esse assunto, mas sempre agiu honestamente. O cantor dizia, em bom tom, que a vida no Reino Unido seria dura àquele estranho, e pedia para não ser odiado por ser o único a ter coragem de dizer isso:

 

Don't blame me

Don't hate me

Just because I'm the one to tell you

That life is hard enough when you belong here

 

Mas as suas boas intenções eram abafadas pelo zombeteiro sotaque indiano com o qual ele pronuncia alguns verbos:

 

He does not want to deprrrrress you

he only wants to embrrrrrace your culture,

and to be your friend forever

 

A canção não cita nenhum trem, mas gosto de pensar naquele bengalês, chegando com as malas num país completamente diferente, numa estação férrea (platforms). Teria tido mais sorte do que Gandhi, desfenestrado da primeira classe por um caucasiano na África do Sul? Acabamos de constatar, mais uma vez, o racismo nos telejornais daqui — uma famosa e jovem atriz indiana de Bollywood, integrante de um reality show inglês, foi vitimada por outras companheiras da mesma casa em que habitam, para o deleite do vergonhoso voyeurismo televisivo que tomou conta do mundo. Um mea culpa coletivo tentou abafar o fato. A indiana acabou vencendo todos os paredões e saiu vitoriosa, Tony Blair pediu desculpas publicamente pelo episódio e, dentre as caucasianas, a mais racista foi convidada pelo governo a visitar a difamada Índia. Em meio à tanta hipocrisia, prefiro ser extraditado pelo sincero Morrissey.

 

 

O último metrô

 

Nosso último trecho até o momento, de algum lugar até Delhi. Cansado e satisfeito, penso naqueles que, vindo a Índia, preferem aviões a trens. No Brasil, parece-me que não há mais trens, ou não como antigamente, disseram-me. Em meu país, não corremos este risco. Gosto de acariciar, em pensamentos, a minha aposentadoria, a ser gasta nos trens daqui. As futuras aventuras daquele velho, porém indiano, Pandit.

 

 

 

Serviço

Morrissey. Viva Hate. Sire Records Company, 1988
Nair, Anita. Cabine para Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001

 

 

 

 

março, 2007