Mil
e uma desculpas
Errou quem pensou num
pacote de viagens, ao estilo "Índia Mística em 17 dias". E também, os
mais fervorosos da velha guarda, talvez se decepcionem em não encontrar
aqui um Dr. Paul Brunton1 e sua Índia Secreta. Com a boa vontade dos leitores
interessados no assunto, iremos nos entendendo e descobrindo, aos
poucos, outras possibilidades de abordagem. E uma delas foi a de não iniciar este texto com a
tradicional saudação hindu "namastê"2, um tanto
banalizada. Mas, cá entre nós, sintam-se saudados do mesmo jeito.
Índia, teus
cabelos...
Quando acordei, já estava aqui. Não sabia
mesmo se tinha ido ou voltado. A comissária de bordo avisa que chegamos.
Desembarco, aquela vontade louca de comer não sei o quê, gulab jamun3 ou brigadeiro? Brasil. Quando chego à Índia,
sempre sei que estou voltando. E quando chego ao Brasil, idem. Descobri
que nunca vou a nenhum dos dois lugares. Sempre volto.
Há mais de um mês, desde que recebi o
convite e me propus a escrever sobre a Índia, me vejo às voltas com a
tela em branco. Assunto não falta, obviamente. Mas, de alguma maneira, o
fardo de mais de 5000 anos de história me pesa. É como se algum
ancestral me vigiasse, esperando por uma vírgula indevida minha para
poder protocolar diretamente com Shiva4 o requerimento
do minha cabeça, separada do resto do corpo. Felizes eram aqueles da
época da tradição oral, onde ninguém mesmo tinha total responsabilidade
sobre um texto...
Como espero ter um espaço de, digamos,
muitos dias de Brahma5 nesta tão simpática e agradável
edição eletrônica, começarei sem pressa, com o
karma6 de
provar que, apesar das suas idiossincrasias, a Índia não é um país mais
extraterrestre do que os outros. Nem menos.
O
aniquilador de estereótipos
Ao mesmo tempo em que elegem a Índia como
sinônimo de refinamento, sabedoria, saúde (yoga, medicina
ayurvédica7, vegetarianismo...) elegância, etc., os
ocidentais a imaginam como uma enorme poça de lodo (às vezes seca,
poeirenta), com o caos de vacas, pedintes, crianças desnutridas e
acidentes de trens. Todo um país que se resume a um rio sujo onde se
banha matinalmente. Templos dedicados aos mais esquisitos animais, ao
vivo e presentes, como ratos e macacos. Ok, confesso que a Índia tem de
tudo isso. Mas não é só isso.
Que interesse teria a mídia ocidental em
mostrar mais freqüentemente um país avançado tecnologicamente, com
Estados (como Kerala) onde há taxa zero de analfabetismo e onde,
digamos, se vive tão bem quanto em Curitiba (e com muito menos
dinheiro)? Onde o nível das universidades é altíssimo e quase todos são,
no mínimo, bilingües? Há metrôs, a indústria cinematográfica é uma das
maiores do mundo, Mumbai (Bombaim) e Delhi estão entre as grandes metrópoles
internacionais. No show de horrores que é a televisão, muitas destas
coisas não cabem. E seguimos, reforçando estereótipos. Aliás,
sempre que começo a
defender algum ponto de vista sobre o assunto, percebo que eu estou
incorrendo no mesmo erro. Ao querer mostrar uma Índia moderna, também
estou sendo excludente. E se me permitem os helenistas presentes, debruçar-se sobre este tema,
isso sim é que é um trabalho hercúleo.
Asiandubfoundation
"Brothers and
sisters of the soul unite! We are one, idivisible and strong!".
Estas palavras de ordem
poderiam ser o início de um novo hino indiano apaziguador de conflitos, considerando-se a
diversidade de religiões, etnias e idiomas dos habitantes, mas trata-se
apenas de um clássico da nova
música sem fronteiras: Naxalite. O grupo em questão é o Asian Dub
Foundation, umas das mais criativas forças (em todos os sentidos) que
emergiram da Índia nos últimos anos. Se são conhecidos entre os próprios
indianos jovens, duvido. Numa grande loja de cds, perto da estação
Victoria, em Mumbai, cansei de explicar ao vendedor quem eram estes
rapazes, mas tudo o que ele me tentava vender era um
trance8 de quinta categoria. E com vários amigos,
universitários classe média do sul e do norte, descobri que o grupo
praticamente não existe. Afinal, as letras do Linkin Park são ouvidas
por toda parte, e quem mesmo quer saber dos problemas do mundo, não é?
Trata-se de um grupo (uma fundação?) com
músicos fixos e outros nem tanto,
o que inclui desde a aposentada Sinead O'Connor até colaborações
com os brasileiros do Rappa. Deméritos à parte, eles têm conseguido
manter uma coesão inimaginável em seus cds, considerando o contigente de
pessoas e idéias.
Ao escolher o tema para este artigo, quis
algo que, necessariamente,
pudesse iniciar o desmoronamento de visões estereotipadas, ao mesmo
tempo em que estabelecesse uma relação (ainda que não direta) entre
Índia e Brasil (que realmente têm muitas similaridades, que vão além do
inusitado Filhos de
Gandhi9 do Ministro da Cultura). O Asian
Dub Foundation (ADF) tem lutado com armas de altíssima qualidade (como a
sua música ou o caráter de seus integrantes) contra o racismo, a
exclusão social e cultural, injustiças generalizadas (como a violência
doméstica, tanto na Ásia como no resto do mundo) e outras formas de
abuso. Soa familiar? Inaugurar uma coluna sobre a Índia falando não exatamente sobre a
Índia (sim, pois o ADF é formado por britânicos de origem indiana) pode
até parecer paradoxal, mas têm sido eles o meu cartão de visitas quando
quero dizer que não temos só sitar e tabla10. Quando
se pensa no moderno e eletrônico indiano, raves em
Goa11 e trance até soam alternativos se os compararmos
com a cena de Bollywood12 (de gosto duvidoso, porém
irresistível), seus vídeoclipes dublados e suas coreografias. O ADF porém não tem nada a ver com
isso.
Now
watch this!!!
Anunciam-se como uma combinação de ritmos.
Jungle, ragga, indo-dub, rock, guitarras que soam como sítaras, vocais
femininos indianos ao fundo, rap, etc. Tudo inimaginável até a primeira
audição. Começaram em 93, em Londres, numa organização chamada Community
Music, com propostas radicais e anti-racistas. Afinal, não facilita
muito a vida ter a pele
escura num país europeu. A França foi a primeira a descobri-los, mas
depois de dois discos lançados e com o apadrinhamento visionário do
Primal Scream, ganharam também o Reino Unido. Nos EUA, a força veio
pelos Beastie Boys, e estava então consolidado o plano de mostrar ao
mundo novas possibilidades de música asiática. De 98 para cá (quando os
conheci), já lançaram mais 4 álbuns oficiais e excursionaram pelos mais
bizarros rincões, desde
Iugoslávia e Bulgária até Cuba (!). Seu último álbum, The enemy of the enemy, contou
com a colaboração do guitarrista do Radiohead e da cantora indiana Sonia
Mehta.
Empenham-se em
proporcionar aulas de música para quem não pode pagar, e também se
envolvem em projetos de habitações populares. Deeder Zaman, o lendário
rapper e principal vocalista que começou na banda com 14 anos (!) de idade, resolveu
dedicar-se mais a grupos e organizações de direitos civis e
anti-racistas. Em
2000, deixou a
banda, que tem se virado bem nos vocais, surpreendentemente.
Brasil,
Índia e ADF
Em abril de 2001
estiveram no Brasil. Os shows contaram com o interesse engajado do ADF
em promover workshops e conhecer favelas, participar de atos públicos a
favor do desarmamento e ser audiência dos Meninos do Morumbi.
Encantaram-se com a mistura de ritmos e danças (Nação Zumbi, Afro
Reggae), apesar de todos os problemas sociais que viram por aqui, o que
os deixou apreensivos, porém interessados em colaborar. Compuseram uma
música a respeito do massacre do Carandiru e a incluíram em português no
seu último álbum. Nos shows em São Paulo, mostraram-se preocupados com
platéia insana, e chegaram várias vezes a pedir calma para que o pessoal
do gargarejo não fosse esmagado, apesar da impressão positiva que
levaram dos brasileiros. O guitarrista Chandrasonic chegou mesmo a
afirmar que moraria em Olinda (!), condecorando-a como a capital mundial
da música, arte e dança.
A imersão deixou marcas profundas na banda,
não só em seu som como em sua política de inclusão social. Ensinaram e
aprenderam com músicos daqui, em performances inusitadas das quais
fizeram questão de participar. Algo que me incomodava neles era essa
crença de que a música pode realmente mudar o mundo, um tanto ingênua
para quem já não é mais um adolescente. Mas, tendo conversado com eles
ali mesmo, após os shows, senti algo tão positivo e verdadeiro que
abandonei meu ceticismo no primeiro banheiro que encontrei. O baixista,
Dr. Das, chegou a escrever que "a turnê brasileira reafirmou nossas
razões de termos nos envolvido com música em primeiro lugar e o porquê
de nos mantermos engajados: é a última possibilidade de comunicação".
Através de um novo selo, o I.R., o grupo se
dedica a ajudar atualmente comunidades indígenas em lugares tão bizarros como
Ilhas Salomão, Papua-Nova Guiné e... Brasil. O foco é o de reforçar a
resistência dos nativos contra a exploração dos "civilizados". Pode
parecer utópico, mas quando alguma ação social muda para melhor a vida
de outras pessoas, mesmo que sejam poucas, para elas a utopia é algo
mais do que real, palpável. É a própria
existência.
Epílogo
Haveria muito mais para
falar, tanto sobre o ADF quanto sobre a Índia. Cinema, literatura,
música e culinária terão o seu papel garantido nas próximas edições. Um
pouco de história e filosofia também. Aguardem...
Sobre
o ADF, aconselho que os mais animados comecem pelo Rafi's Revenge, de 98. E, é
claro, o site www.asiandubfoundation.com, onde
há dados mais precisos do
que a minha memória. E já que comecei com uma saudação hindu, sintam-se
incluídos cristãos,
muçulmanos e sikhs13: que Deus te acompanhe! — khudaa haafiz! — sat shrii akal!