A
apologia
Normalmente, escrevo
pensando na Índia. Acredito que aqueles que irão ler, têm um mínimo de
curiosidade sobre o país. Por respeito a estes e um pouco constrangido,
peço desculpas, então, por tratar novamente do não exatamente indiano
ADF, expoente, entretanto, da música ocidental com influências
indianas. (Para saber mais, leia "A Desconstrução de Clichês e
Outros Barulhos", deste mesmo autor, disponível no índice).
O
Rio
Uma
simpática senhora caucasiana de olhos azuis ronca a noite toda no ônibus
leito. Chego de manhã, um pouco destruído, digamos. Vou para o sol da
praia de Ipanema. Almoço com amigos cariocas. City tour. Siesta. Rendido
aos encantos naturais e arquitetônicos do Rio, não consigo traçar
paralelo com nenhuma cidade que conheço.
ADF
1
É
pouco provável que aquele que compra revistas de meditação com CDs new
age em bancas de jornal venha a gostar do ADF. A Índia deles não é um
país "zen" e é por isso que, novamente, utilizo a palavra barulho no
título. Eu, de minha parte, escuto músicas barulhentas há duas décadas
(desde que meu pai não esteja por perto) sem maiores preconceitos
nem seqüelas, o que não me impede de apreciar Ravi Shankar ou Schubert
com a mesma reverência. Se ao final, você estiver curioso, ouça e talvez
goste. Talvez seu irmão mais novo ou filho adolescente venham a
gostar.
22h00
Visto minha
indefectível camisa oficial da seleção de críquete da Índia boné verde
calça folgada tênis surrado para o festival de música patrocinado por
uma multi de telefones celulares propõe-se moderno o evento (bocejo)
mais de dez atrações entro num hall chamado Om experience (?) mas o que
mais me lembra a Índia é o incipiente mau cheiro dos banheiros abundam
pufes coloridos bolhas transparentes instalações com eletro-domésticos
estrelas no teto tiro fotos mando torpedos recebo chamadas com o celular
oficial para eles eu também sou uma instalação: é o que chamam de
Arte!
ADF
2
Estes músicos
perceberam que o discurso inicial anti-racista em defesa dos indianos no
Reino Unido transformou-se numa linguagem universal das minorias
oprimidas. Vieram o massacre do Carandiru, o 11 de setembro (não o do
Chile), a ocupação do Iraque, os índios brasileiros expulsos de suas
terras e tudo o ADF incorporou em seus álbuns. Poderia ter dado bem
errado. Correram o risco.
23h15
Com
um olhar duplamente estrangeiro, faço o restante do reconhecimento do
local. Estamos num armazém do cais do porto, um enorme galpão, com um
imenso navio atracado ao lado. Aproveito a brisa do mar, enquanto DJs e
música eletrônica se espalham pelos diversos ambientes. O festival lança
o desafio de integrar Rio e São Paulo por meio de telões simultâneos,
mas tudo parece não combinar com o Rio. Noto que quase todos os
seguranças e subalternos são brasileiros descendentes de africanos. O
público é classe média branca. Pergunto-me como seria num baile funk,
mas não me arrisco a ir além da pergunta.
O
show
Tudo
tinha sido morno neste festival até a entrada do ADF. Forma-se uma
grande platéia minutos antes. A banda em si é a própria integração
racial (Filipinas, África, Índia, Brasil, Iraque e há uma camiseta da
Jamaica no palco), o que reforça o discurso de igualdade entre os povos.
No último álbum cantam que Índia, Sri Lanka, (Bangla)desh e Paquistão
são uma só nação. Gandhi não morreu em vão, penso.
Os
músicos demonstram um domínio de palco incomum, com entradas e saídas
surpreendentes. Spex, Lord e Ghetto Priest já não deixam mais saudades
de Deeder, o primeiro vocalista da banda. Chandrasonic é o próprio
demônio com sua guitarra, injetando rock no rap dominante, assim como
Cyber nas tablas e percussão evoca a música tradicional indiana. O meu
xará John Pandit mantém a competência esperada nos decks. Noto a
ausência do ex-baterista Singh. Já Dr. Das (baixo) não se insurge,
mostra-se visivelmente cansado e reserva para si um canto mal-iluminado
do palco, apesar de tocar bem.
Os
novos integrantes são genuinamente a adrenalina contagiante do ADF,
assim como Dr. Das, Sun J e Pandit formam a parte pensante. Chandrasonic
mostra fôlego para estar nos dois times.
As
peculiaridades
Reconheço no palco,
estampado numa tela, o busto do poeta indiano muçulmano, Nazrul Islam,
que lutou também pela independência da Índia a partir de 1920.
O
brasileiro assassinado pela polícia britânica ao ser confundido com um
terrorista é homenageado por Spex, quando tocam Round Up: "When you hear
the marching drum you know your time soon come".
Imagino que já é lugar
comum para os brasileiros as bandas estrangeiras que tocam aqui com a
camiseta da seleção de futebol e que ficam falando obrigado em
português. Spex faz o mesmo. Só não decepciona, pois veste a camisa do
Brasil mesmo quando toca em Amsterdã e fala "obrigado" em português,
mesmo num show na França (!).
O
repertório (não nesta ordem)
Blowback (abre o show),
Tank, Take back the power, Round up, Taa Deem, Rise to the challenge,
Enemy of the enemy, Fortress Europe (tenho a impressão de que o cais vai
afundar), Hope, Oil, Powerlines (Brazil, Brazil, Brazil...), Flyover
(que a platéia acompanha no refrão). Fecham com a eterna Naxalite.
A atenção
plena
Chandrasonic mostra-se
disposto a um bate-papo após o show e, como velhos amigos que não somos
ainda, apresenta-me sua bela e simpática namorada francesa. Quando
pergunto sobre Sun J, diz que ele não veio, pois passa por problemas de
saúde em família. Pede desculpas por não ir tocar em São Paulo, quando
se intera da minha viagem insone (na verdade, precisam de alguém que
banque a ida).
Pergunta-me sobre
lugares para visitar no estado do Rio nos cinco dias que vai passar ali.
Fala calmamente, nem parece o mesmo guitar hero do palco. Sorridente,
solícito e acessível, percebo um ego quase extinto. Pela sua música,
quer levar consciência política a uma grande parcela desmiolada da
juventude mundial (é só olharmos em volta!), mas não banca o ativista
chato. É como um yogue às avessas, embora pareça bem consciente do
"aqui/agora". No palco ou fora, Chandrasonic mostra intereza no que diz
e faz e, num kriya todo seu, toma água mineral e transpira atenção
plena. E eu, que sempre achei que o rock desequilibrasse os
chakras...
O
epílogo
Eu e
minhas duas simpáticas companheiras de show — que conheci via
orkut/celular no dia anterior — nos jogamos num gigante pufe vazio,
depois de algumas tentativas de acompanhar o restante das atrações.
Alguém consegue dormir. Espero o dia amanhecer, mas ele vem cinza.
Ao
chegar em São Paulo, lembro-me do sol que já nasce na Índia. Vejo
as fotos que tirei e meu sorriso esboça um bom-dia em outro idioma.
A tela do computador em branco me diz que a semana começa e a vida
segue. Naya zindagi naya jeevan!
outubro,
2005
panditgaram@yahoo.com.br