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A missão

 

A proposta era tentadora. Afinal, ir ao Rio cobrir o show do Asian Dub Foundation (ADF)  para a Germina — Revista de Literatura e Arte, no final de setembro, era mais do que obrigação. Eu teria assim a oportunidade de aliar a perfomance da visceral banda anglo-indiana à cidade dos braços abertos sobre a Guanabara. Topei, mas fingi um certo profissionalismo blasé. Só até chegar ao Rio, é claro.

 


A apologia

 

Normalmente, escrevo pensando na Índia. Acredito que aqueles que irão ler, têm um mínimo de curiosidade sobre o país. Por respeito a estes e um pouco constrangido, peço desculpas, então, por tratar novamente do não exatamente indiano ADF,  expoente, entretanto, da música ocidental com influências indianas.  (Para saber mais, leia "A Desconstrução de Clichês e Outros Barulhos", deste mesmo autor, disponível no índice).

 


O Rio

 

Uma simpática senhora caucasiana de olhos azuis ronca a noite toda no ônibus leito. Chego de manhã, um pouco destruído, digamos. Vou para o sol da praia de Ipanema. Almoço com amigos cariocas. City tour. Siesta. Rendido aos encantos naturais e arquitetônicos do Rio, não consigo traçar paralelo com nenhuma cidade que conheço.

 


ADF 1

 

É pouco provável que aquele que compra revistas de meditação com CDs new age em bancas de jornal venha a gostar do ADF. A Índia deles não é um país "zen" e é por isso que, novamente, utilizo a palavra barulho no título. Eu, de minha parte, escuto músicas barulhentas há duas décadas (desde que meu pai não esteja  por perto) sem maiores preconceitos nem seqüelas, o que não me impede de apreciar Ravi Shankar ou Schubert com a mesma reverência. Se ao final, você estiver curioso, ouça e talvez goste. Talvez seu irmão mais novo ou filho adolescente venham a gostar.

 


22h00

 

Visto minha indefectível camisa oficial da seleção de críquete da Índia boné verde calça folgada tênis surrado para o festival de música patrocinado por uma multi de telefones celulares propõe-se moderno o evento (bocejo) mais de dez atrações entro num hall chamado Om experience (?) mas o que mais me lembra a Índia é o incipiente mau cheiro dos banheiros abundam pufes coloridos bolhas transparentes instalações com eletro-domésticos estrelas no teto tiro fotos mando torpedos recebo chamadas com o celular oficial para eles eu também sou uma instalação: é o que chamam de Arte!

 


ADF 2

 

Estes músicos perceberam que o discurso inicial anti-racista em defesa dos indianos no Reino Unido transformou-se numa linguagem universal das minorias oprimidas. Vieram o massacre do Carandiru, o 11 de setembro (não o do Chile), a ocupação do Iraque, os índios brasileiros expulsos de suas terras e tudo o ADF incorporou em seus álbuns. Poderia ter dado bem errado. Correram o risco.

 


23h15

 

Com um olhar duplamente estrangeiro, faço o restante do reconhecimento do local. Estamos num armazém do cais do porto, um enorme galpão, com um imenso navio atracado ao lado. Aproveito a brisa do mar, enquanto DJs e música eletrônica se espalham pelos diversos ambientes. O festival lança o desafio de integrar Rio e São Paulo por meio de telões simultâneos, mas tudo parece não combinar com o Rio. Noto que quase todos os seguranças e subalternos são brasileiros descendentes de africanos. O público é classe média branca. Pergunto-me como seria num baile funk, mas não me arrisco a ir além da pergunta.

 


O show

 

Tudo tinha sido morno neste festival até a entrada do ADF. Forma-se uma grande platéia minutos antes. A banda em si é a própria integração racial (Filipinas, África, Índia, Brasil, Iraque e há uma camiseta da Jamaica no palco), o que reforça o discurso de igualdade entre os povos. No último álbum cantam que Índia, Sri Lanka, (Bangla)desh e Paquistão são uma só nação. Gandhi não morreu em vão, penso.

 

Os músicos demonstram um domínio de palco incomum, com entradas e saídas surpreendentes. Spex, Lord e Ghetto Priest já não deixam mais saudades de Deeder, o primeiro vocalista da banda. Chandrasonic é o próprio demônio com sua guitarra, injetando rock no rap dominante, assim como Cyber nas tablas e percussão evoca a música tradicional indiana. O meu xará John Pandit mantém a competência esperada nos decks. Noto a ausência do ex-baterista Singh. Já Dr. Das (baixo) não se insurge, mostra-se visivelmente cansado e reserva para si um canto mal-iluminado do palco, apesar de tocar bem.

 

Os novos integrantes são genuinamente a adrenalina contagiante do ADF, assim como Dr. Das, Sun J e Pandit formam a parte pensante. Chandrasonic mostra fôlego para estar nos dois times.

 


As peculiaridades

 

Reconheço no palco, estampado numa tela, o busto do poeta indiano muçulmano, Nazrul Islam, que lutou também pela independência da Índia a partir de 1920.

 

O brasileiro assassinado pela polícia britânica ao ser confundido com um terrorista é homenageado por Spex, quando tocam Round Up: "When you hear the marching drum you know your time soon come".

 

Imagino que já é lugar comum para os brasileiros as bandas estrangeiras que tocam aqui com a camiseta da seleção de futebol e que ficam falando obrigado em português. Spex faz o mesmo. Só não decepciona, pois veste a camisa do Brasil mesmo quando toca em Amsterdã e fala "obrigado" em português, mesmo num show na França (!).

 


O repertório (não nesta ordem)

 

Blowback (abre o show), Tank, Take back the power, Round up, Taa Deem, Rise to the challenge, Enemy of the enemy, Fortress Europe (tenho a impressão de que o cais vai afundar), Hope, Oil, Powerlines (Brazil, Brazil, Brazil...), Flyover (que a platéia acompanha no refrão). Fecham com a eterna Naxalite.

 


A atenção plena

 

Chandrasonic mostra-se disposto a um bate-papo após o show e, como velhos amigos que não somos ainda, apresenta-me sua bela e simpática namorada francesa. Quando pergunto sobre Sun J, diz que ele não veio, pois passa por problemas de saúde em família. Pede desculpas por não ir tocar em São Paulo, quando se intera da minha viagem insone (na verdade, precisam de alguém que banque a ida).


Pergunta-me sobre lugares para visitar no estado do Rio nos cinco dias que vai passar ali. Fala calmamente, nem parece o mesmo guitar hero do palco. Sorridente, solícito e acessível, percebo um ego quase extinto. Pela sua música, quer levar consciência política a uma grande parcela desmiolada da juventude mundial (é só olharmos em volta!), mas não banca o ativista chato. É como um yogue às avessas, embora pareça bem consciente do "aqui/agora". No palco ou fora, Chandrasonic mostra intereza no que diz e faz e, num kriya todo seu, toma água mineral e transpira atenção plena. E eu, que sempre achei que o rock desequilibrasse os chakras...

 


O epílogo

 

Eu e minhas duas simpáticas companheiras de show — que conheci via orkut/celular no dia anterior — nos jogamos num gigante pufe vazio, depois de algumas tentativas de acompanhar o restante das atrações. Alguém consegue dormir. Espero o dia amanhecer, mas ele vem cinza.

 

Ao chegar em São Paulo, lembro-me do sol que já nasce na Índia. Vejo as fotos que tirei e meu sorriso esboça um bom-dia em outro idioma. A tela do computador em branco me diz que a semana começa e a vida segue. Naya zindagi naya jeevan!

 

 

 

 

outubro, 2005
 

panditgaram@yahoo.com.br