*
há uma dor peninsular
nas
arestas das casas, nas fissuras
e na palavra de memória feita de
chaminés.
a renda pontilhada
de bilros traça a
paciência
do cimento que enfeita a açoteia
onde se
vê os cornos da lua
a brincar na janela da vizinha
no cenário
de mil e uma noites.
o olhar alcança as pequenas luzes
que o
mar dispensa na navegação
dos peixes, na cintilação das
estrelas
de noites quentes, graves e dolentes.
uma península,
estreita passagem.
*
a conversa é o intruso da
ternura
que as mãos dispensam através do olhar.
assim, a dor
persiste nas areias
e remanesce no quebrar das ondas
a espuma
de um sorriso dividido
pelos milhões de gotas de água simples;
tão breves que reflectem rostos frágeis
nas margens da
península deserta
de espanto e natural admiração.
intrusos são os pássaros que vão
nas rotas dos
pássaros que vêm
aleando a dobra dos caminhos velhos
presos na
língua deste mar alheio.
asas que ferem vão sarando a
terra.
*
e na iluminação do corpo
tens
a viagem, o começo navegado,
uma paisagem estreita, sem
palavras,
onde a semente se cobre de limos
na suspensão
da água em capela.
na fronteira da areia imerge a dor,
capricho da maré, e de passagem,
com o rosto reflectido na
península,
passagem única para a memória
que a sepultura
funda, tão profunda,
se descobre na lájea
reparada.
encarrega-se a morte de seu ofício;
cobrir de pedras
outras pedras feitas
de pedra, sem saber que tem arestas.
*
o silêncio é a essência
molhada
onde a palavra cresce numa água
de fogo; a península
coberta
de escrita adormecida nestas dunas.
há vozes e
sussurros, mar antigo,
que vieram na paciência do tempo
magoar os olhos limpos pelos limos
quando nas mãos se tem o
mundo vasto
sem perceber a fuga entre os dedos.
o fogo que
consome ao mesmo tempo
na cinza, o pó da criatura solta,
brisa
de deus imperceptível no
corno de areia apontado ao mar
onde,
transversalmente, a dor se tece.
*
na rua há uma palmeira
pendurada
de pássaros e de memória viva.
acoitam-se nas folhas
as palavras,
ventos do sul, espuma e sal cristal
na
andança dos dias férteis, fitos
na admiração do tempo
carcomido
pela voz do piano velho, rouca,
na solidão
que se percebe única
e se prolonga numa areia
aberta
à frase contorcida pela maré.
língua de fogo,
península acesa
de mortos e algum pó que a escrita tece,
com o
equilíbrio e a nova claridade,
e se vincula às margens
acessíveis.
*
um dia vi a minha avó, em
áfrica.
lúcida, e tal e qual um meteoro,
desertou da península
encontrada.
dos arcos das janelas rostos
rondos
traçam a minha avó; circunferência,
cara redonda
alongando a rua
por tempo interminável, à espera
de
ulisses regressar à bela ítaca.
a graça atena já o sabe, há
muito,
que o nauta caminheiro está em hades.
dos
arcos da janela vê as sombras
dos homens, dos navios que
regressam
da meia-lua do mar, e aos três apitos
um cheiro a
maresia dói o tempo.
*
na transparência luminosa e
frágil
os corpos, os contornos, os contornos
dos corpos restam
na linguagem ferida
uma sobrevivência do lugar.
é
por isso que os pássaros desenham
na subtileza da areia, a
língua
molhada de água e espuma, enquanto raivam
as
intempéries; o pó da memória
na ínsula escondida nas
profundas
águas suspensas de pequenos lábios,
que
guardam, sim, que guardam tranquilas
uma passagem estreita entre
o sopro
e a voz serena que lateja o istmo
da vida que preguiça
o voo das aves.
*
alisa a pele das ondas na
contagem
da infância. sete vezes sete é
o resultado certo,
cabalístico,
em que perversamente a dor da
ilha
procura uma passagem, o tal istmo
que a linguagem tem
através da escrita,
onde se vê o voo das garças
brancas
arquitectando as dunas da península.
milhares de
banhistas, musculosos
e com a forma de sereias
gregas,
desenham os hieróglifos na areia,
no ócio de quem sabe
ganhar tempo
só na memória dos dias que vêm,
mas que se perde
o rasto no ir das águas.
*
porque vens, olhos noivos,
fáceis, lúzios,
descubro para ti a água pura
na mais serena
fonte descoberta;
onde os reflexos das palavras,
nossas,
respondem nuas, sobre e sob as águas.
somos os dois,
narcisos incompletos,
porque revêmo-nos em cada um,
o rosto do outro
que nos fixa aberto.
e se tu contas as estrelas, conto
as estrelas que estão na água límpida.
e se tu
vives numa planta eu olho
para os teus olhos que me gravam
cego;
e se és a fonte, todos os inícios,
em ti sobeja todos os
meus fins.
*
modelo os esqueletos com a
argila
e o fogo desta areia acesa e rubra.
partiram todos para
as margens lúdicas
e no teu dorso acaricio o sol
no
voo grácil, seguro, dos pássaros.
por vezes cobre-se de água a
terra estreita
onde as raízes queimam a saliva
da
língua feita de algum sal do sul
e os frutos, se eles nascem são
agrestes
na seiva torpe de passar dos anos.
por isso
é que as coisas simples dão
outro significado à vida feita
até
de olhar o pouso da gaivota
no bordo da barcaça, ancorada.
*
um gesto no cabelo vem de
longe.
traz o sabor silvestre das amoras,
os caminhos
estreitos onde as mãos
entrelaçadas ficam lendo as
margens
adolescentes, e na cor da língua,
os frutos rubros que
a manhã aquece.
aduelas velhas prendem o jardim
nos
olhos do menino que persegue
o voo da gaivota na
península.
no fascínio da areia, só a mão
retém a
água na clepsidra com
o dispensável fogo que consome
os ossos
calcinados pelas dunas.
do vento surge a cinza do
princípio.
*
eu sei que tens a dor à tua
espera.
a água vaza da península é
de uma clepsidra a
transformar a mão
pedinte que, na noite
iscariote,
degola a tua fala, nudez da
língua recolhendo a
areia surda
no movimento de uma duna fria.
és capaz
de ter algum fel que reste
da prova de uma flor aberta ao
pólen.
talvez, por isso, te recolhas mudo,
colado ao
alcatruz no fundo negro,
e esperas, impossível, a palavra,
a
que germina no coito de um búzio,
e sopra sob a pele da noite
nua.
o país das
águas
*
promontório aberto é a
fuga
para o país das águas.
a península é a lembrança
rasteira
duma carícia de afectos
que atravessa o
corpo na idade da areia.
por isso, na sede interminável,
o
líquido envelhece nos olhos
enquanto as mãos tacteiam a copa das
árvores.
há sorrisos na passagem das aves.
*
há um rio no país das
águas.
nas margens, o meu pai
dá-me a explicação dos
pássaros;
aponta sempre para além das nuvens
uma palavra
anunciadora.
fico a saber que há sempre um começo e um
fim,
porque uma ave levanta voo e pousa,
e não sabemos nunca o
caminho
que as aves levam, no meio, entre os dois
inícios.
o meu pai, a substância e o espelho.
eu
tenho um deus comigo e eu não
sei.