©joan miró
 
 
 
 
 
 

travessia
 
 
 
 
AS QUATRO ESTAÇÕES ERAM CINCO
 
O verão passa e o estio se anuncia
que o outono se há-de ser e logo inverno
de que virá nascida a primavera.
Mais breve ou longo se renova o dia
sempre da noite em repetir-se, eterno.
Só o homem morre de não ser quem era
(epigrama de jorge de sena in Poesia III)
 
 
 
*
 
há uma dor peninsular
nas arestas das casas, nas fissuras
e na palavra de memória feita de chaminés.
a renda pontilhada
de bilros traça a paciência
do cimento que enfeita a açoteia
 
onde se vê os cornos da lua
a brincar na janela da vizinha
no cenário de mil e uma noites.
o olhar alcança as pequenas luzes
que o mar dispensa na navegação
dos peixes, na cintilação das estrelas
de noites quentes, graves e dolentes.
uma península, estreita passagem.
 
 
 

*
 
a conversa é o intruso da ternura
que as mãos dispensam através do olhar.
assim, a dor persiste nas areias
e remanesce no quebrar das ondas
a espuma de um sorriso dividido
pelos milhões de gotas de água simples;
tão breves que reflectem rostos frágeis
nas margens da península deserta
de espanto e natural admiração.
 
intrusos são os pássaros que vão
nas rotas dos pássaros que vêm
aleando a dobra dos caminhos velhos
presos na língua deste mar alheio.
asas que ferem vão sarando a terra.
 
 
 

*
 
e na iluminação do corpo tens
a viagem, o começo navegado,
uma paisagem estreita, sem palavras, 
onde a semente se cobre de limos
na suspensão da água em capela.
na fronteira da areia imerge a dor,
capricho da maré, e de passagem,
com o rosto reflectido na península,
passagem única para a memória
que a sepultura funda, tão profunda,
se descobre na lájea reparada.
encarrega-se a morte de seu ofício;
cobrir de pedras outras pedras feitas
de pedra, sem saber que tem arestas.
 
 
 

*
 
o silêncio é a essência molhada
onde a palavra cresce numa água
de fogo; a península coberta
de escrita adormecida nestas dunas.
há vozes e sussurros, mar antigo,
que vieram na paciência do tempo
magoar os olhos limpos pelos limos
quando nas mãos se tem o mundo vasto
sem perceber a fuga entre os dedos.
o fogo que consome ao mesmo tempo
na cinza, o pó da criatura solta,
brisa de deus imperceptível no
corno de areia apontado ao mar onde,
transversalmente, a dor se tece.
 
 
 

*
 
na rua há uma palmeira pendurada
de pássaros e de memória viva.
acoitam-se nas folhas as palavras,
 
ventos do sul, espuma e sal cristal
na andança dos dias férteis, fitos
na admiração do tempo carcomido
 
pela voz do piano velho, rouca,
na solidão que se percebe única
e se prolonga numa areia aberta
 
à frase contorcida pela maré.
língua de fogo, península acesa
de mortos e algum pó que a escrita tece,
com o equilíbrio e a nova claridade,
e se vincula às margens acessíveis.
 
 
 

*
 
um dia vi a minha avó, em áfrica.
lúcida, e tal e qual um meteoro,
desertou da península encontrada.
 
dos arcos das janelas rostos rondos
traçam a minha avó; circunferência,
cara redonda alongando a rua
 
por tempo interminável, à espera
de ulisses regressar à bela ítaca.
a graça atena já o sabe, há muito,
 
que o nauta caminheiro está em hades.
dos arcos da janela vê as sombras
dos homens, dos navios que regressam
da meia-lua do mar, e aos três apitos
um cheiro a maresia dói o tempo.
 
 
 

*
 
na transparência luminosa e frágil
os corpos, os contornos, os contornos
dos corpos restam na linguagem ferida
 
uma sobrevivência do lugar.
é por isso que os pássaros desenham
na subtileza da areia, a língua
 
molhada de água e espuma, enquanto raivam
as intempéries; o pó da memória
na ínsula escondida nas profundas
 
águas suspensas de pequenos lábios,
que guardam, sim, que guardam tranquilas
uma passagem estreita entre o sopro
e a voz serena que lateja o istmo
da vida que preguiça o voo das aves.
 
 
 

*
 
alisa a pele das ondas na contagem
da infância. sete vezes sete é
o resultado certo, cabalístico,
 
em que perversamente a dor da ilha
procura uma passagem, o tal istmo
que a linguagem tem através da escrita,
 
onde se vê o voo das garças brancas
arquitectando as dunas da península.
milhares de banhistas, musculosos
 
e com a forma de sereias gregas,
desenham os hieróglifos na areia,
no ócio de quem sabe ganhar tempo
só na memória dos dias que vêm,
mas que se perde o rasto no ir das águas.
 
 
 

*
 
porque vens, olhos noivos, fáceis, lúzios,
descubro para ti a água pura
na mais serena fonte descoberta;
 
onde os reflexos das palavras, nossas,
respondem nuas, sobre e sob as águas.
somos os dois, narcisos incompletos,
 
porque revêmo-nos em cada um,
o rosto do outro que nos fixa aberto.
e se tu contas as estrelas, conto
 
as estrelas que estão na água límpida.
e se tu vives numa planta eu olho
para os teus olhos que me gravam cego;
e se és a fonte, todos os inícios,
em ti sobeja todos os meus fins.
 
 
 

*
 
modelo os esqueletos com a argila
e o fogo desta areia acesa e rubra.
partiram todos para as margens lúdicas
 
e no teu dorso acaricio o sol
no voo grácil, seguro, dos pássaros.
por vezes cobre-se de água a terra estreita
 
onde as raízes queimam a saliva
da língua feita de algum sal do sul
e os frutos, se eles nascem são agrestes
 
na seiva torpe de passar dos anos.
por isso é que as coisas simples dão
outro significado à vida feita
até de olhar o pouso da gaivota
no bordo da barcaça, ancorada.
 
 
 

*
 
um gesto no cabelo vem de longe.
traz o sabor silvestre das amoras,
os caminhos estreitos onde as mãos
 
entrelaçadas ficam lendo as margens
adolescentes, e na cor da língua,
os frutos rubros que a manhã aquece.
 
aduelas velhas prendem o jardim
nos olhos do menino que persegue
o voo da gaivota na península.
 
no fascínio da areia, só a mão
retém a água na clepsidra com
o dispensável fogo que consome
os ossos calcinados pelas dunas.
do vento surge a cinza do princípio.
 
 
 

*
 
eu sei que tens a dor à tua espera.
a água vaza da península é
de uma clepsidra a transformar a mão
 
pedinte que, na noite iscariote,
degola a tua fala, nudez da
língua recolhendo a areia surda
 
no movimento de uma duna fria.
és capaz de ter algum fel que reste
da prova de uma flor aberta ao pólen.
 
talvez, por isso, te recolhas mudo,
colado ao alcatruz no fundo negro,
e esperas, impossível, a palavra,
a que germina no coito de um búzio,
e sopra sob a pele da noite nua.
 
 
 

o país das águas
 
 
 
 
 
*
 
promontório aberto é a fuga
para o país das águas.
a península é a lembrança rasteira
duma carícia de afectos
 
que atravessa o corpo na idade da areia.
por isso, na sede interminável,
o líquido envelhece nos olhos
enquanto as mãos tacteiam a copa das árvores.
 
há sorrisos na passagem das aves.
 
 
 

*
 
há um rio no país das águas.
nas margens, o meu pai
dá-me a explicação dos pássaros;
aponta sempre para além das nuvens
uma palavra anunciadora.
 
fico a saber que há sempre um começo e um fim,
porque uma ave levanta voo e pousa,
e não sabemos nunca o caminho
que as aves levam, no meio, entre os dois inícios.
 
o meu pai, a substância e o espelho.
eu tenho um deus comigo e eu não sei.
 
 
 
 
*
 
na policromia da língua
o sol viaja no pólen da árvore;
o tronco, o arco-íris da folhagem,
a seiva da pronúncia no limbo
da semente regenerada.
navegam sons, antigos,
da geografia adolescente,
que poisam na concha da mão.
esperam o sopro, a réstia iluminada
para que a sombra se estenda
na corola do jardim.
 
a sobrevivência da água
no rocio das flores adormecidas
 
 
 

*
 
ainda hoje, quando penso olhar para ti,
no espelho, revejo o teu gesto, o modo de
alisar o cabelo,
até o tom de voz que, no princípio,
achava sempre inoportuno.
no abraço das águas, a regeneração do corpo
em vigias nocturnas, no acoitar das estrelas,
onde a iluminação se prolonga  até
ao início das folhas das árvores.
 
a circuncisão é um novo dia
na busca do país dos pássaros,
onde a água renova a sede
de reflexos longínquos, simples búzios, sopro
a ondular a extensão líquida,
sem um único grão de areia molhado,
que traga aos olhos neófitos
o suor da península perdida.
 
 
 

outra escada de jacob
 
na árvore, de improviso,
inclino a criança dos olhos;
as sombras e as estrelas e uma casa
à deriva, com a rosa-dos-ventos
no telhado de circunstância.
 
subo degrau a degrau os degraus da escada,
e conheço a mobília no espaço que desconheço.
isentos os gestos, só resta à escrita
a criação do movimento imponderável sobre as
águas.
 
as plantas têm o sentido das coisas úteis;
o movimento diário dos vasos, um pequeno toque
nos livros,
a consciência de existir com os objectos.
o equilíbrio insuspeito de beijar uma flor
crescida na floreira.
 
o pó já não é o pó da casa.
é outro pólen, infértil, que cega
a luminosidade das folhas,
limpa as raízes, provisórias,
dos caminhos para a seiva, a memória das
sombras.
o nitrato de prata na mesa redonda, os olhos
espelhos de quem vê.
 
resta apagar os passos na escolha de outro lugar,
e sobre o sangue do cordeiro degolado,
um país de água e fruto
canta na vertigem das pedras apátridas.
 
 
 

*
 
carrega o búzio na concha
do ouvido, habituado
 
ao som sincopado, antigo,
da península perdida
 
numa réstia de sol.
gaivotas loucas passeiam
 
na areia, pele ferida
de uma ilha de circunstância,
 
e sob, as águas descansam
ávidas, de sede e sol.
 
brinca o desejo na borla
da ilha, numa construção
 
periférica e inútil,
perdida que é a semente
 
na seiva seca da árvore.
a argila, país das águas.
 
 
 

*
 
entro na água como saí do ventre
de minha mãe. imponderável, suspenso
no líquido primordial, procuro a semente fértil
o decúbito de uma árvore em construção.
 
desenho na humidade as formas efémeras
que a sede impele devagar na proa da areia
uma casa de paredes destruídas
onde o corpo banha a água
e a mesa, limpa, seca, levitada
com o pão da páscoa à espera de ser repartido.
 
a remissão da viagem esconde
o rosto nas mãos de sangue do cordeiro degolado.
persiste a culpa da promessa, e uma
casa não é uma casa
na fonte do desejo com corpos apodrecidos
 
dentro dela.
 
 
 

*
 
cumprimentei-te, e disseste-me
que tinha morrido uma flor no jardim.
 
há dias em que a água nos impele para as
pedras
e o sexo delas seca o desejo à distância de um
sopro.
 
cumprimentaste-me e disseste adeus
como quem embarca no último vento.
 
há barcos, destroços de mastros e redes e
alcatruzes
e um par de amantes que se beija na proa
desfeita
de um navio.
 
as gaivotas, silenciosas, esperam.
 
 
 

*
 
não sei onde vivo. não sei onde durmo.
o incêndio da casa continua a chama
na mão aberta de vento e sol e água.
 
e o meu corpo está aonde vai a água
o meu corpo está no vento
no ventre da casa conquistada à palavra
rude e simples e grávida.
 
tenho todos os cantos da casa
no corpo de fogo. a água
a própria sede não apaga
a chama o tronco aceso de uma árvore
 
iluminada.
 
 
 

*
 
correm os dias como cavalos doidos
e na crina do tempo
o cheiro das flores raras rasga
as narinas com restos de maresia adolescente.
 
a alegria plantada nos galhos das árvores
colhe o sol e a água e longe
no fio do horizonte equilibra o olhar
 
no arco-íris da tarde desenhada.
a propósito. são líquidas as palavras
no molde da infância soterrada
 
na casca dos troncos visionários
que no simples roçar do veludo da mão
escorre saliva para a língua de fogo.
 
a seiva da geografia reinventada.
 
 
 

*
 
a água é o princípio do lábio
submerge o corpo do sangue do cordeiro
na pronúncia da primeira terra.
 
na gávea dos sentidos há o país das águas
ancoradouro arbóreo onde as folhas
e os frutos crescem na carícia
de um sorriso.
 
 
 

*
 
em esquéria há frutos todo o ano
e se houve tempo em que pude amar
ao som das espingardas, hoje eu quero
uma árvore de jacarandá
 
florir lilás. na abóbada florida
ando pelo caminho de telémaco
com as asas de atena; beijo o mar
como se é o ventre de minha mãe.
 
sem deus sicário, áugure ou conciliábulos
da mais ridente e vã  feitiçaria
demoro na colecta da semente
 
e no apetite da voragem morro
abraçado ao tronco do esquecimento;
enfim, chegado à terra da alegria.
 
 
 
 
 
 
José N. Félix, natural de Angola, nascido em 1946, em Luanda. Vive em Lisboa. Licenciado em História pela F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa.
 
Obra literária
Geografia da Árvore
(a reinvenção da memória), Col. Poéticas de Lav(r)a, Múchia Publicações, Lda., Funchal, Outubro de 2003.
 
Antologias
Antologia Horizontes do PD-Literatura, Brasil, 1999; Poiesis II, Poiesis III da Editorial Minerva (MNA), Portugal, 1999, 2000; Antologia Incomensurável — Poesia a treze, Editorial Minerva, Portugal, 2000; Inspiração Erótica — Antologia da Associação Cultural de Jundiaí, Brasil, 2000; Espelhos da Língua da Sociedade de Escritores de Blumenau, Brasil, 2001; Quatro Poetas da Net, Edições Sete Sílabas, Setembro, Lisboa, 2002; Prosa & Verso, Projecto Palavra Azuis, Vol.2, da Sociedade de Escritores de Blumenau; Antologia de Escritas Nº1, Lisboa, 2004; Antologia de Escritas Nº2, Lisboa, 2005.
 
Prefaciou a Antologia www.3poetasemleiria.pt de José Gil, Don Lackewood e Constantino Alves; Laços & Lazos, um livro bilingue, de José Gil e Sónia Regina; De cada poro um poema, de Antoniel Campos, Brasil; Catavento de Everardo Torrez Getz, autor mexicano; Esfinge Lunar de Goulart Gomes, poeta da Bahia, Brasil.
 
Promove a frequência de listas de discussão poética na Web, tendo criado a lista Escritas suportada pela página Encontro de Escritas, com entrevistas, divulgação de poemas e novos poetas de língua portuguesa. Escreve o blogue ATeia de Aranha.